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Cobiça

Enquanto acompanhava o vulto encorpado de seu amigo Vincent se afastando na plataforma de trem, Gregory Goyle novamente se lembrou daquela tarde. Tudo o que acontecera entre eles, enquanto estavam sob o efeito da poção polissuco há algumas semanas atrás. Ele não conseguia esquecer, não conseguia evitar. E desejava mais, ele queria muito mais.

O ano letivo havia terminado, e agora eles teriam dois meses em casa até que o próximo período recomeçasse, em setembro. Ele não sabia como seria a escola agora que Dumbledore perecera, mas provavelmente logo o Lorde tomaria o ministério e as coisas certamente ficariam melhores para seus seguidores.

Para o jovem Goyle, tudo já estava muito bem. Ele passava seu tempo geralmente na companhia de seu inseparável amigo Crabbe, e quase todos os dias se lembrava daquela tarde. Crabbe, por sua vez, mantinha uma distância segura, não permitindo que Goyle tocasse diretamente no assunto. Ambos haviam gostado, ambos desfrutaram daqueles momentos juntos. Mas para Crabbe, aquilo estava enterrado no passado, em uma tarde fria onde ele encontrara seu grande amigo com um corpo de garota.

Para Goyle, havia muito mais. Havia o desejo que o dominava cada vez que Crabbe se aproximava. Havia a cumplicidade construída ao longo de todos aqueles anos juntos. Havia também o gosto dos beijos e o toque das mãos que sentira por breves instantes sobre a sua pele. Não, aquilo não era o suficiente. Ele precisava de mais. Mais carinho. Mais sexo. Mais Crabbe.

As tardes quentes de julho encontravam sempre os dois amigos juntos. Eles não tinham muito o que fazer; o Lorde Negro realmente estava tomando o controle, seus pais passavam a maior parte do tempo fora, ocupados, e eles se ocupavam em vagabundear por aí ou ficar em casa, comendo e falando besteira.

Em uma dessas tardes ociosas, Goyle conseguiu trazer o assunto à tona pela primeira vez desde aquele dia, há quase três meses. Ambos estavam na cozinha de sua casa, assaltando a despensa.

- Você não gostou, foi isso?

Crabbe olhou confuso para ele:

- Do quê? Do sanduíche? Achei que tinha muito molho, mas estava bom.

- Não, besta – respondeu Goyle, com um sorriso sarcástico no rosto redondo. – Daquele dia, da poção polissuco.

Crabbe imediatamente ficou sem jeito.

- Er... não, é... ah, cara, sei lá – ele respondeu, levantando-se da cadeira, limpanto a boca nas costas da mão e se dirigiu ao quarto do amigo, onde eles costumavam ficar.

- Então é o quê? Tipo, acho que você não gostou de alguma coisa. Porque não falou mais nada, e tal. Daí eu fiquei achando ah, sei lá – tentou explicar Goyle, se enrolando nas palavras.

O outro rapaz suspirou e olhou para baixo, passando a mão nos cabelos curtos e arrepiados. Então ele se endireitou na cama, onde havia se sentado, e falou olhando seriamente para o amigo.

- Eu nem curto ficar com um cara, sabe? Tipo, é que era uma menina... Então deu pra encarar. Mas de outro jeito, acho que não rola. Sério mesmo.

Crabbe então se levantou, espanou uns farelos de pão que haviam caído sobre sua blusa e disse:

- Ó, eu tenho que sair agora. Depois a gente conversa mais – e se foi.

Goyle não respondeu nada, nem levou o amigo até a porta. Ele saberia achar o caminho sozinho. Ao invés disso, se esticou na cama onde Vincent estivera sentado até o minuto anterior e cruzou os braços sob a cabeça, fitando o teto. Não poderia deixar as coisas acabarem daquela forma. Ele queria ter Crabbe. E ele teria.


Uma semana se passou, e Crabbe quase não apareceu. Da janela, Goyle via o rapaz sair com o pai de manhã, ir até a cabine telefônica da esquina e aparatar para algum lugar desconhecido. Vincent começara a sair com seu pai logo no dia seguinte àquela conversa, e Goyle ficou com a desagradável sensação que ele o estava evitando.

As tardes eram cada vez mais longas e quentes. E aborrecidas, sem a companhia de Vincent. Tudo estava tão chato que, contrariando tudo aquilo em que acreditava, Goyle se viu de repente parado em frente à sua mala de escola, folheando um livro, sem nem saber por quê.

Ele não conseguia parar de pensar no que fazer para ter Crabbe em seus braços mais uma vez. Ele era seu amigo, porra! Não podia ignorar seus sentimentos daquela maneira! Goyle já havia cogitado a hipótese de tomar mais uma vez a poção polissuco, de modo a se aproximar dele novamente como uma garota, mas não só não tinha os ingredientes para sua fabricação, como não queria que Crabbe transasse com outra pessoa. Queria que fosse com ele! Uma outra garota qualquer não poderia roubar seu momento de glória.

Com a mente vagando ao longe, o rapaz folheava o livro de transfiguração pousado sobre seus joelhos. O "Guia Avançado da Transfiguração" era o novo livro que sua mãe já havia comprado, seria usado no ano seguinte pela profa. McGonagall, "aquela coruja velha empalhada", pensou Goyle. "Ainda bem que é o último ano em que teremos que ver aquela cara murcha... Se é que ela vai agüentar até o fim do ano."

Entretanto, no meio de todas aquelas palavras mágicas e encantamentos, algo chamou sua atenção repentinamente. Aquilo até que poderia funcionar, mas teria que convencer Crabbe; algum dia ele teria que ficar em casa para que pudessem conversar a sós.


Pois o dia chegou, e nem demorou muito. O Sr. Crabbe sabia, embora se orgulhasse de levar o filho para todos os lugares, que seus encargos de Comensal não podiam ser completamente partilhados ainda. O rapaz não tinha a marca negra, e embora possivelmente em breve poderia ostentá-la por aí, o momento não havia chegado.

No dia em que o Sr. Crabbe saiu sozinho de casa pela manhã, deixou seu filho desanimado no quarto. Vincent já estava se acostumando a sair com o pai para resolver assuntos para o Lorde, e isso o enchia de orgulho. O que faria agora, sozinho em casa, o dia todo? Será que teria coragem de ir até a casa de Goyle?

O rapaz esticou as pernas sobre a cama, pensando. Por que o amigo tinha que ficar insistindo naquele assunto? Porra, será que o Gregory não conseguia notar que ele não era viado? Não era. Não tinha jeito. Não achava graça naquilo. Tudo bem que eles sempre foram próximos, amigos mesmo. Eles dividiam tudo, todos os momentos bons e ruins. Todos os fiascos e sucessos em Hogwarts. Goyle foi o primeiro a saber quando ele conseguiu levar uma garota para o bosque, em Hogwarts. Naquela hora, o besta já devia ter entendido que Crabbe gostava era de meninas.

Então pela primeira vez em meses, ele se pegou pensando em uma menina baixinha, bonita, que beijara no corredor em frente à sala precisa. Lembrou daqueles peitinhos macios, daquela pele branca e aveludada, daquele gosto doce de seus beijos. Mas mais importante, lembrou da urgência com que fora beijado por ela, de quanto carinho e desejo havia naqueles lábios.

"Porra, o que que eu tô fazendo?" ele pensou, se levantando impetuosamente do leito e caminhando a passos largos até a sala. "Eu tô viajando no Goyle! Cacete, viu. Por que ele tinha que tomar aquela poção polissuco e ficar uma menina tão linda? Mas não era ele! Por que eu tô viajando nisso, ainda?"

Crabbe entrou e saiu da sala de estar, rumou para a biblioteca e atravessou todos os corredores da casa, como um erumpente enjaulado. Os olhares amorosos que a garota havia lançado para ele se refletiram nos olhos escuros e miúdos de Goyle quando, no vestiário, eles despiram as vestes femininas e voltaram a colocar suas roupas habituais, após acabar o efeito da poção. Naquele momento, era Goyle. E mesmo assim ele sentira desejo, não podia negar.

Pensando nisso, o rapaz se jogou sobre uma das poltronas de couro cor de vinho da biblioteca e suspirou alto. Bufou. Os dedos tamborilando sobre o braço da poltrona, a mente focada naqueles últimos olhares que trocaram com tanta intimidade. Por que ele tinha que gostar tanto daquele estúpido? Se fosse qualquer outro, ele já teria partido a cara, já estaria estendido no chão. Se fosse qualquer outro, ele nunca deixaria que se aproximasse a menos de 2 palmos de seu corpo.

Mas não era qualquer outro. Era Gregory Goyle. Era o cara com quem dividira o quarto nos últimos seis anos. Era o cara que seguia e aturava o Malfoy junto com ele. Era o cara que tinha participado de todos os seus problemas, e que o tinha envolvido nos dele, com a maior amizade e confiança que ele poderia imaginar possível. Certo, ele confiaria sua vida a Goyle, sem medo de ser traído. Mas... sexo? Não, ele não podia estar pensando em uma coisa bizarra dessas.

Sem conseguir ficar parado em um lugar só, Crabbe ergueu-se da poltrona e atravessou o aposento. Parou na frente da lareira, encostou a cabeça sobre seu consolo de mármore escuro. Mais um suspiro. Um pequeno chute impotente na grande coluna de pedras chamuscadas. Teria que falar com ele. Não poderia deixar tudo como estava e simplesmente ignorá-lo ao longo do próximo ano. Saco. Por que Goyle não podia ficar quieto e fingir que nada daquilo havia acontecido?

- E aí? – disse Crabbe, meio sem jeito, encostado no batente da porta da casa dos Goyle, os polegares enfiados nos bolsos da calça. Gregory sorriu com os olhos, sem demonstrar mais alegria do que deveria, com medo de espantar o amigo recém-chegado.

- Entra aí, cara – respondeu, abrindo a porta para o outro entrar.

Os dois passaram na cozinha, pegaram metade do bolo de laranja que estava sobre a mesa e seguiram para o quarto esparramando farelos, sem trocar outras palavras.

- Você tava trabalhando com seu pai? – perguntou Goyle, com a boca cheia, já acomodado em uma cadeira.

Vincent observou o rosto redondo do amigo e não pôde deixar de achar graça. Era óbvio e patente que ele estava se esforçando para não trair a si próprio. Talvez até conseguisse, mas com outro que não o conhecesse tão bem.

- Tava. Só visitando um pessoal, fazendo uns negócios por aí. Nada muito importante. Mas estivemos com o Lorde, e ele deu a entender que quer a gente por perto em breve.

Goyle abriu a boca, deixando escapar pequenos pedaços mastigados de bolo.

- Sério mesmo? Tipo, ele quer a gente como comensais?

- E você tinha alguma dúvida? Vai preparando esse antebraço gordo, que logo vai ter uma marca negra aí. Ou você vai amarelar?

- Cara, nem pensar! Eu espero por isso há anos! E você também, que eu sei – completou, dando um soquinho no braço de Crabbe. – Já pensou, a gente, comensal?

Crabbe suspirou, coçou a cabeça. Abaixou a face e lançou um olhar de esguelha para o amigo.

- Será que vai dar certo?

Silêncio momentâneo.

- Ahn... Eu... – Goyle parecia ligeiramente confuso. Do que Vincent estaria falando? Por que não daria certo? Mas cadê a coragem de perguntar, e correr o risco de ver o amigo sair e passar mais uma semana sem falar com ele?

- Olha, Gregory, eu fiquei pensando nessa semana, e tipo... Cara, eu gosto de você tá legal? – ele disse, como se estivesse furioso por ter que dizer isso. – Mas eu não sou viado, certo? Não é desse jeito que você tá pensando. Então, já que você é um cara, e eu também, e já que eu, pelo menos, não sou viado, não vai rolar nada entre a gente, entendeu?

Goyle suspirou, ergueu-se e apanhou o livro novo, que estava aberto sobre a mesinha de cabeceira.

- Olha isso aqui, veja o que você acha.

O rapaz apanhou o livro que o outro estendia para ele. Na página aberta, um feitiço de transfiguração ensinando a transformar galos em galinhas.

- Para que diabos eu quero transformar um galo em galinha? – perguntou Crabbe, sem entender nada daquilo. – E desde quando você estuda durante as férias?

Goyle sentiu as orelhas queimarem. Talvez estivessem vermelhas. Uma das raras vezes em que ele se viu constrangido, envergonhado mesmo.

- Eu não estava estudando, ô bocó. Eu só peguei o livro porque... eu tava de saco cheio de tudo. Você sumiu e... ah, porra. Se liga babaca!

Crabbe continuou sentado, os braços cruzados sobre o peito e o livro aberto sobre as coxas largas.

- E...?

- E bom... eu pensei... se a gente consegue transformar um galo em galinha... talvez – e murmurou algo simplesmente impossível de ser compreendido por ouvidos humanos.

- Talvez o quê? Fala que nem homem, porra – espicaçou Crabbe, com um sorriso nos lábios e curiosidade nos olhos.

Goyle resmungou mais alguma coisa, ainda incapaz de se definir.

- Ainda não entendi – respondeu o amigo, se inclinando na cadeira para tentar ouvir melhor.

- Talvez eu pudesse me transfigurar em uma menina...

A surpresa foi tão grande que Crabbe se desequilibrou e caiu pra frente, batendo o nariz no chão, enquanto a cadeira voava até a parede. Imediatamente ele se levantou esfregando o rosto e se afastou um grande passo de Goyle, batendo com a batata da perna no leito do rapaz.

- O que você tá dizendo? Cacete, Goyle, você pirou, é? Olha, acho que eu vou sair...

- Não, espera, escuta porra! – exclamou Goyle, beirando o desespero e agarrando a manga da blusa de Crabbe. Se o amigo fosse embora sem ouvi-lo, sabia que nunca mais teria sua amizade de volta. – Eu também fiquei meio chocado comigo mesmo, cara, mas peraí, escuta o meu lado.

Crabbe se livrou da mão do rapaz com um safanão, e tornou a sentar-se, dessa vez na cama mesmo, com os braços cruzados sobre o peito. Goyle sentou-se ao seu lado, fazendo com que ele se afastasse alguns palmos para a direita.

- Tá, olha, pensa só. Não é pra sempre. A gente treina primeiro com o diabo do galo. Depois a gente tenta reverter a transformação. Eu não quero virar menina, eu só... – e nesse ponto ele engasgou e baixou a cabeça, incapaz de continuar. – Eu só...

Crabbe olhava surpreso e assustado para o amigo. Que idéia mais louca! Como ele teria coragem de se transformar em uma menina? Uma garota! Só para ficar com ele? E se seus pais descobrissem? E se o Lorde, em nome dos infernos, descobrisse um absurdo desses? Não, ele não podia aceitar, não podia permitir que seu amigo corresse um risco desse tamanho, e ainda o arrastasse junto. Mas como podia Goyle querer se arriscar dessa forma? Teria ele tanta paixão? Tanta vontade?

- Greg... olha – disse baixinho. Goyle ergueu os olhos ao ouvir o apelido de infância. Há anos Vincent não o chamava assim. – Pensa bem no que pode nos acontecer se alguém descobre uma história dessas?

Goyle sorriu ao ouvir isso. Ele não sabia o que esperava ouvir, mas certamente não era uma frase como essa. Então havia um "nós". Crabbe estava mesmo preocupado com ele. Talvez nem ele mesmo tivesse percebido, mas agora sentia que havia uma chance.

- Vince... ninguém precisa saber. A gente treina, olha só. Treina bastante, até o contrafeitiço, porque eu não quero virar menina pra sempre, tá ligado? É só por uma tarde, ou uma noite. É só porque eu... – e de novo, as malditas palavras teimavam em não sair da garganta do rapaz. – Eu...

- Tá, não precisa explicar mais nada. Me dá um tempo pra pensar, OK? – falou Crabbe, se levantando. – Eu vou embora.

- Tá, saquei. Agora você vai cair fora e eu não vou te ver tão cedo. E quando eu te ver, você vai fingir que nada disso aconteceu, porque é isso que você faz em relação a mim, você foge, seu merda!

- Calaboca, mané! – exclamou Crabbe, dando um tapa na têmpora do amigo. – Eu só vou almoçar. De tarde eu apareço aqui – ele respondeu e saiu.

Sentindo-se um panaca, Goyle não teve apetite para o almoço pela primeira vez em sua vida. A ansiedade estava acabando com ele. Será que Crabbe viria mesmo? Achava que não. Da outra vez, foi uma semana amargando a solidão de seu quarto. O que aconteceria agora? Por que a tarde não chegava nunca?


A campainha tocou só lá pelas quatro horas. O sol ainda estava alto naquela tarde quente de verão, e Goyle correu atender. O elfo doméstico já havia aberto a porta. Sem consideração para com a criatura, o rapaz o empurrou para o lado e escancarou a folha de madeira. Do outro lado, banhado pelos raios ofuscantes do sol, Vincent Crabbe sorria, carregando um galo branco debaixo do braço.