Sangue negro

Lexa colocou a mão no estômago. Sentia uma fisgada, um desconforto, quase um enjoo. Estava acostumada a sentir dor no estômago, principalmente antes de tomar uma decisão importante. Mas esta era diferente. Era uma dor mais insistente. Insistente e úmida.

Não... não era a dor que era úmida. Sua mão que apertava o estômago é que estava ficando úmida. Úmida e quente.

Olhou para baixo e viu que em sua blusa ia se desenhando um pequeno mapa negro, como se fosse o caminho para um território desconhecido. O mapa crescia e mudava de forma, enegrecendo toda a sua blusa, enquanto a dor não dava sinal de trégua.

Foi então que ela sentiu as pernas enfraquecendo, e muito vagamente percebeu que ia cair. Não conseguia mais sustentar o peso do corpo sobre as pernas trêmulas. Seu corpo foi descendo como se estivesse em câmera lenta. Mas, com a força do impacto no chão, ela notou que talvez não tivesse caído tão lentamente como parecia.

Olhou à sua volta: o mundo todo parecia estranhamente em câmera lenta.

Levantou a mão que até então tocava o estômago e viu que estava completamente tingida por seu sangue negro. Assim como sua blusa. O mesmo sangue negro que a levou a conquistar o posto de Comandante que ela ocupava agora.

Fechou os olhos e, num clarão, sua mente foi em busca de algum recanto da memória, e ela se viu novamente perto da pequena cabana onde morava em sua aldeia natal. Era uma manhã bonita e ensolarada de primavera. Ela tinha 6 anos e brincava com outras crianças do vilarejo. Agora era sua vez de procurá-las. Ela contou afoitamente até 20 e se virou rápida para ter as primeiras ideias de onde encontrá-las. Saiu andando sorrateiramente, pisando leve na grama para não fazer barulho.

Ela tinha que encontrá-los, encontrar todos antes que chegassem ao pique e se safassem. Algo dentro dela, um estranho senso de dever, dizia que ela deveria vencer a todos. Mas isso não era exatamente um impulso natural, um gosto próprio por ser a melhor, mas era o que os adultos diziam a ela desde sempre.

Ela, assim como todas as crianças trikru, tinham sido ensinadas por sua cultura que só os mais fortes, ágeis e corajosos conseguem sobreviver. A vida nas aldeias dos clãs era difícil e frágil, e o simples fato de estar vivo era uma conquista diária. Assim era a vida deles e as crianças eram educadas desde pequenas para serem fortes e destemidas. A regra era sobreviver.

Lexa, em especial, ouvia seu pai dizer com frequência que ela não deveria temer nada e que deveria sempre buscar fazer o seu melhor. E mesmo agora, brincando com as outras crianças, essa sensação de necessidade de vencer a impulsionava a procurar os outros.

Foi andando leve, mas veloz, passando por detrás dos círculos de caçadores que limpavam os animais abatidos e desviando dos montes de gravetos onde homens e mulheres fabricavam suas flechas. Até que, ao longe, viu um arbusto se mexer. Olhou por debaixo das folhas e reconheceu os pés de Luther.

- Luther, eu vi você! gritou, antes de começar a correr desabaladamente para o pique.

Olhou para trás e viu que Luther não se dava por vencido e vinha tentando ganhar território para chegar primeiro. Aumentou a velocidade da corrida. Ela não poderia perder justamente de Luther, que não era um competidor tão brilhante. Pulou por cima de uns balaios cheios de flechas, ganhando uma grande bronca das pessoas que trabalhavam, mas não se importou. Ela só queria chegar antes de Luther no pique.

Olhou novamente para trás. Luther não era muito esperto, mas era rápido, e diminuía a cada segundo a distância entre eles. Lexa resolveu fazer um esforço a mais, o pique já estava próximo, ela ia chegar primeiro. Foi quando, olhando para frente, viu que uma carroça, vinda não se sabe de onde, se atravessava no meio do caminho, bem na sua frente.

Num impulso, em vez de parar, ela teve uma ideia ousada: lembrou-se de um movimento que vira uma vez numa apresentação de luta na aldeia, quando seu povo comemorava uma festividade sagrada, e, tentando imitar este movimento, se jogou por debaixo da carroça, com os dois pés unidos para frente. Seu objetivo evidente era passar por debaixo do carro se arrastando com o impulso do corpo. Mas, certamente, os lutadores que haviam feito este movimento na apresentação haviam ensaiado muito mais: ao se jogar, Lexa bateu em cheio a testa na lateral da carroça e ficou estirada embaixo do carro.

O condutor parou imediatamente. Felizmente, a carroça estava carregada de lenha e se movimentava muito devagar. Descendo do carro e sem muito jeito, o condutor agarrou as pernas da menina e a arrastou para longe das rodas.

Juntou muita gente em volta, as crianças e os adultos também. Lexa abriu seus grandes olhos verdes, ainda estirada no chão, e começou a ficar assustada com os olhares de espanto das pessoas que se aglomeravam em volta. Alguma coisa muito ruim deveria estar acontecendo para todo mundo olhar para ela com aquela expressão perplexa. "Será que minha cabeça se rachou ao meio?" – pensava ela, pois realmente a testa doía demais.

Um aldeão chamou seu pai com urgência:

- Omac! Omac, venha aqui! Rápido!

Lexa viu a multidão abrindo passagem e seu pai chegando apressadamente, com uma expressão assustada que ela raras vezes havia visto.

- Veja, Omac! A sua filha...

O pai de Lexa olhou pra ela com uma expressão que a menina não soube definir. Havia medo e orgulho em seu olhar. Ele olhou em volta, para todos os rostos curiosos que pareciam interrogá-lo, e balançou a cabeça afirmativamente, como se já soubesse do que se tratava. Então olhou novamente para ela. Os olhos do pai começaram a ficar brilhantes, como se discretas lágrimas teimassem em vir à tona. Então, sorriu para ela com ternura e balançou a cabeça em sinal afirmativo.

Lexa não estava entendendo nada, só queria se levantar dali e ir embora. Estava envergonhada por ter se caído na frente das outras crianças, embora ninguém estivesse zombando dela. Sentou-se no chão e ia se levantar, quando sentiu algo quente e viscoso escorrer da sua testa pelo meio de seus olhos, descendo pelo nariz e já chegando às bochechas. Foi quando percebeu que estava sangrando.

Sentiu vontade de chorar, mas se controlou: já havia caído na frente das crianças, não ia passar mais esta vergonha. Instintivamente, tocou a testa e olhou o líquido em sua mão: negro. Repetiu o gesto e viu sua mão ficando cada vez mais manchada de negro. "Alguma coisa está errada" – pensou. Ela nunca havia visto sangue daquela cor, nem nas pessoas que se machucavam, nem nos animais que eram mortos nas caçadas.

Olhou para seu pai sem entender, mas ele não disse nada. Apenas a pegou no colo e foi se dirigindo silenciosamente para casa.

Então, um dos aldeões gritou:

- Omac, por que você não contou nada para ninguém?

Sem se virar, ainda rumando para casa, ele disse:

- Minha filha ainda é muito nova!

- Não existe idade para ser um nightblood! Ela deve ir para Polis e treinar para o Conclave! Deve representar o nosso clã!

Omac parou e se virou lentamente, com uma expressão dura e feroz no olhar:

- Eu já disse que minha filha ainda é muito nova...

Neste momento, deitada no chão duro enquanto sua blusa se encharcava com seu próprio sangue, outro clarão iluminou a mente de Lexa e sua memória a jogou agora para o dia do Conclave, dez anos após o seu acidente na aldeia e a descoberta de seu sangue negro.

Neste dia, ela também sangrou como nunca havia sangrado antes. Lembrava-se do corte profundo em seu braço esquerdo, feito pela espada de Ashcar, o nightblood que representava a Ice Nation. Lembrava-se da dor pungente que a fazia perder as forças, mas que, justamente por isso, a fazia querer lutar como nunca para salvar sua vida.

Ela agora já sabia o que era ser um nightblood. Havia passado anos treinando com outras crianças que também tinham o sangue negro. Ela se lembrava do dia em que seu pai a havia levado para Polis, para treinar com os outros nightbloods, e da mistura de emoções que ela sentiu neste dia.

Lembrou-se do medo que sentiu ao ser colocada na presença de Anya, que, como líder trikru, seria sua mentora e a treinaria para o dia do Conclave. Anya era uma guerreira admirável e exigente, e imediatamente ela sentiu que teria que se esforçar muito para atender às expectativas de sua mentora.

Numa série de memórias embaraçadas e desconexas, lembrou-se novamente da batalha no dia do Conclave. O cheiro de sangue no ar, os gritos da plateia que desejava que restasse apenas um. Toda a terra da arena salpicada de sangue negro, inclusive o dela. Lembrou-se da expressão impassível da Rainha Nia que assistia friamente de seu lugar adolescentes se matando como feras selvagens. Lembrou-se também de Anya, sentada próxima a Nia, transmitindo apoio e confiança com o olhar. Havia também os outros líderes de outros clãs. E lembrou-se de Titus, que permanecia em pé e vigilante, ao lado dos líderes.

Titus...

Por algum motivo que ela não conseguia se lembrar, sentia agora uma mágoa profunda de Titus... não sabia dizer exatamente por que...

Mas sua mente não cessava o turbilhão desgovernado de memórias, e a levava agora para o dia em que Anya a havia designado para ser a segunda no comando do clã Trikru. Lembrou-se do orgulho que sentiu ao ser escolhida, mas, ao mesmo tempo, o peso da responsabilidade que ela sabia que iria carregar. Ela tinha apenas 14 anos, mas já era uma das melhores na arena de treinamento. E, mesmo havendo adolescentes maiores e mais fortes, ela se destacava por sua astúcia e seu carisma como líder. Por isso, dentre todos os jovens do clã, Anya a havia escolhido para ser seu braço direito e a segunda no comando.

A emoção e o medo deste dia se misturaram com a emoção e o medo de sua descoberta como uma nightblood e se lembrou novamente de seus primeiros anos de treinamento na Polis. Reviu os garotos e garotas que treinariam com ela. Reviu Ashcar ainda criança, o garoto enorme e feroz, com cicatrizes no rosto, em volta dos olhos, e um olhar frio que já revelava sua natureza assassina.

E lembrou-se distintamente do primeiro momento em que seus olhos se cruzaram com os olhos azuis da menina tímida de cabelos vermelhos...

- Lexa! Lexa!

Uma voz suave, mas firme, a chamava. Ela olhou em volta, na arena, e não viu a dona da voz.

- Lexa! Fique comigo!

A voz insistia, enérgica, mas ela não se lembrava de ter ouvido essa voz durante a luta.

- Lexa!

Era uma voz familiar, uma voz que a acalmava, e, de alguma forma, seu coração começou a desacelerar dentro do peito. Aquela voz rouca e firme a fazia sentir uma paz que não sentia há muitos anos.

- Fique comigo, Lexa!

Ela então abriu os olhos e, como se visse ao longe, como se visse uma miragem ou uma forma embaçada pela neblina, Lexa viu o rosto de Clarke.

Sim, era ela. Era Clarke se debruçando sobre ela, com uma expressão angustiada no olhar.

"Por que eu a estou ouvindo tão longe, se ela está tão perto de mim?" – pensou.

Olhou bem para ela e reconheceu o mesmo rosto de angústia que viu no meio da multidão enquanto se preparava para enfrentar Roan num duelo que deveria necessariamente terminar com a morte de um dos dois.

Depois se lembrou de sua visita ao quarto de Clarke, enquanto a garota examinava sua mão ferida pela espada de Roan. "Eu deveria tê-la beijado naquele dia. Deveria tê-la beijado e dito que a amava. Deveria ter aproveitado cada chance que tive de tê-la em meus braços. E não deveria ter me omitido de dizer as palavras que carrego em meu coração." – pensou, com certo arrependimento.

Mas seus pensamentos se dissiparam e sua atenção voltou-se para a voz de Clarke que dizia energicamente:

- Fique tranquila! Apenas fique tranquila! Eu vou dar um jeito nisso!

Só então teve consciência de que estava deitada no chão frio do quarto em que Clarke estava hospedada. E notou a dor que ela transmitia no olhar. Viu também que Clarke tocava seu rosto, e depois apertava seu estômago e dizia algo que ela não conseguia entender, e depois voltava a tocar seu rosto com as mãos cada vez mais negras. Negras como as noites solitárias.