O relógio tocou, marcando seis em ponto. Alfred desligou o alarme, e olhou sorrindo para o céu. Já começava a anoitecer e ele sabia que essa era a hora perfeita para ganhar uns trocados.

Desceu a escada da pensão pelo corrimão, quase esbarrando em Francis ("desculpe!", conseguiu gritar, ouvindo um pequeno xingamento vindo ao longe), carregando nada a não ser seu fiel violão. O objeto já estava bastante desgastado e as cordas a ponto de se arrebentarem, mas nem mesmo a gentileza de Yao oferecendo ajuda para comprar um novo violão faria o americano trocar seu fiel amigo.

A verdade era que todos que moravam ali não possuíam uma renda muito amigável. Era apenas um edifício caindo aos pedaços no centro da cidade. O preço a ser pago pelo aluguel talvez fosse devido à localização do apartamento, pois cobrar por qualquer outra coisa seria extorsão. O chão de madeira velho rangia sempre que alguém decidia fazer uma visita noturna ao banheiro que, aliás, era comunitário e estava sempre com goteiras e infiltração. Os quartos cheiravam a mofo e mesmo Ivan, que era bastante cuidadoso com a limpeza de sua moradia, sofria com o cheiro de poeira e as manchas verdes que insistiam em aparecer dentro do armário.

Mas foi com a perspectiva de uma nova vida em mente que o loiro passou pela porta. Nem se preocupou em trancá-la atrás de si e olhou para o céu. Já estava escuro. Abriu um grande sorriso e jogou os braços para o alto.

– Isso! Hoje é o dia, eu posso sentir – murmurou para si mesmo, enquanto descia a rua indo em direção ao centro comercial.

O frescor da noite o preenchia, as luzes da cidade o encantavam e o céu noturno... Simplesmente não tinha palavras para descrever o céu. Era como se o chamasse para fora, como se o compreendesse e o abrassasse, dizendo que aquela era a hora.

Alfred sempre sentiu uma forte conexão com as estrelas e podia senti-las acendendo uma chama dentro de si. Sentia-se inspirado, e a inspiração era algo bastante necessária para poder tocar seu violão dando tudo de si.

O pequeno muro de pedra próximo à loja de discos era o lugar perfeito. Sentou-se ali e afinou seu violão, ignorando os olhares que reprovavam aquele pobretão. Estava com uma calça que há muito já foi preta e um casaco fino azul, onde os buracos em sua frente indicavam que o americano usava outra blusa, vermelha, por dentro. Seu cachecol balançava junto com o ar da noite e a única coisa fora de sincronia em sua aparência talvez fosse uma boina vermelha com listras brancas, que o americano tratou de depositar no chão à sua frente assim que se sentiu pronto. Respirou fundo, olhou para as estrelas mais uma vez e se pôs a tocar.

Começou a atrair olhares curiosos, alguns talvez maldosos que, ao ouvirem sua música, não podiam acreditar no que viam. Em um centro comercial, onde executivos e operários andavam de um lado para o outro, indo para casa ou correndo para o supermercado em busca de algo pronto para preparar para o jantar, havia um homem pobre tocando uma melodia calma e paciente no violão. As cordas balançavam em harmonia com sua cabeça, que ia de um lado para o outro, completamente absorto com a própria canção.

O contraste era facilmente visível e até irônico. Os homens e mulheres corriam pela rua, sempre em pressa, ao som de uma melodia doce e calma de um violão. As buzinas dos carros, os gritos raivosos dos motoristas e a irresponsabilidade dos pedestres na rua se mesclavam com aquela melodia sobre amor e paz.

Quem se aproximou primeiro foi uma garotinha. Possuía duas grandes trancinhas que desciam pelas laterais de sua cabeça e estava fortemente agasalhada. Alfred não pode deixar de abrir um sorriso de canto, que fez a garotinha corar. Ela correu e depositou três moedas dentro de sua boina e correu em direção aos seus pais. O americano curvou seu pescoço para frente em agradecimento e voltou para seu próprio mundo, algo somente a música poderia lhe proporcionar.


Já eram onze da noite e Alfred só possuía dinheiro o suficiente para comprar três pães e talvez um refrigerante. Suspirou, observando sua boina estranhamente estampada, e olhou para o céu. Afinal, aquele não era seu dia, não é? Pensou no que Francis costumava o dizer. Ele era o único da pensão com um emprego fixo (isso é, ninguém fazia a mínima ideia com o que Ivan trabalhava) e sempre que tinha a oportunidade, tentava convencer o americano a trabalhar como caixa de supermercado ou algum emprego mais estável.

– Sei que esse tipo de emprego possui várias horas de jornada de trabalho e que no fim, o salário não é grande coisa – o francês costumava dizer, enquanto colocava sua mão no ombro do americano, tentando o confortar – Mas você pode ir subindo devagar. Quem sabe não recebe uma promoção por seu trabalho duro? E ao menos todo mês teria a garantia de que não vai morrer de fome.

Este pensamento o deprimiu. A música era a única coisa que conseguia acalmar Alfred, que na realidade era bastante agitado. Não conseguiria se conformar em passar oito horas por dia em pé perguntando se desejam pagar em dinheiro ou cartão. Só a ideia já lhe transmitia fortes calafrios. Ele era a música e a música era ele, simples assim. Não conseguiria viver sem ela e sequer gostaria de tentar tal façanha. Sabia que seu futuro estava em seu velho violão e jamais permitiria que outro pensamento a não ser este tomasse conta de sua mente.

Não possuía família para criar, e muito menos pais para pedir dinheiro caso precisasse. Sua única posse era aquela pequena aquisição em um garage sale há três anos, que já havia passado por maus bocados junto ao americano. Não tinha pressa em arranjar um emprego fixo. E sabia que caso realmente precisasse, poderia passar um mês no apartamento já pequeno de um dos moradores da pensão até ter dinheiro o bastante para pagar o aluguel novamente.

Não era aquela a noite que tanto esperava. Guardou os trocados no bolso e colocou a boina em sua cabeça, preparando-se par a voltar para a pequena pensão. Talvez fosse para o quarto de Yao pegar algo para jantar. Era o que todos faziam por lá.

Sentiu algo quente em seu ombro. Ao virar seu rosto, encontrou uma mão branca feito leite o apertando ali. Era pequena se comparada à sua, mas não delicada o bastante para ser uma mão feminina. Levantou mais o rosto e deu de cara com duas orbes verdes, que pareciam perfurar-lhe a alma.

Talvez estivesse muito acostumado com as nojeiras da pensão, mas ver um homem tão limpo e bem vestido o surpreendeu. Podia sentir a leve fragrância de colônia barata exalando do outro e o olhou surpreso.

– Você toca? – o homem perguntou. Alfred apenas conseguiu acenar sua cabeça em concordância – Poderia tocar algo para mim?

O americano não pôde deixar de rir. Com certeza era um pedido incomum, um homem pomposo com um leve sotaque inglês lhe pedir para tocar. Ele parecia ter dinheiro. Deu de ombros e se sentou novamente no muro de pedras. Quem sabe não era sua chance de ganhar uns trocados?

– Talvez você devesse deixar sua boina no chão novamente.

Alfred o encarou, deixando que um pequeno riso escapasse por dentre seus lábios.

– Mas a esta hora não tem ninguém aqui. Se você quiser me dar uns trocados, pode dá-los diretamente para mim.

Estendeu a mão para o outro que riu, cruzando os braços.

– Eu não vou dar dinheiro algum. Agora vai, coloque a boina no chão.

O americano não gostava que mandassem nele. Muito menos gostou da confiança daquele homem. Franziu o cenho, enquanto fazia o que o outro havia sugerido, mesmo que duvidasse de que serviria de alguma coisa.

Segurou o violão e olhou para o homem misterioso. Este sorriu e fez sinal para que começasse. Suspirou novamente e olhou para o céu. Contou mentalmente até três e começou a tocar.

Seus dedos dançavam por entre as cordas enquanto seus olhos fechados permitiam que criasse um novo mundo em sua mente. Sua imaginação vagava com sua própria melodia e abriu um pequeno sorriso. Algo então quebrou sua imaginação, e ao abrir os olhos percebeu o que era.

The sky I looked up to at night

The clouds were flowing

I spread my arms and tried to catch the stars

Olhou para aquele homem loiro, de cabelo curto e mal penteado. Seus olhos verdes pareciam refletir o céu noturno, enquanto cantava. Sua voz era densa, mas melodiosa. Alfred percebeu que havia grande técnica nela e se perguntou o que um cantor profissional estava fazendo ali.

Assim como quando tocava, observou o outro fechar seus olhos e viajar. Ele sorria enquanto suas mãos balançavam pelo ar e sua expressão às vezes se tornava dolorosa, como se estivesse tendo um pesadelo. Depois novamente sorria e sua expressão se amenizava, não passando despercebido pelas poucas pessoas que estavam na rua àquela hora. Elas paravam, surpresas, e olhavam para aqueles dois homens estranhos. Um que parecia ter saído de uma lata de lixo, mas que tocava com uma delicadeza e cuidado nunca antes visto, e o outro, que estava vestido como se estivesse voltando do trabalho para sua mulher e filhos mas que estava ali, às onze horas da noite, preenchendo o local com uma voz que mais parecia pertencente a um anjo.

Algumas começaram a jogar moedas e até algumas notas de papel, para a surpresa do americano. Isso o animou e começou a tocar com mais afinco, observando um pequeno sorriso se formar no canto da boca do outro, mas talvez tenha sido só impressão.

I can see the world deep inside of your eyes

The clouds carry the song over the land

And I count the flowing songs

All the shooting stars leave me behind

And I realize why I'm standing here

Alfred parou de tocar, no mesmo segundo que o inglês elevava sua voz, usando toda sua técnica e emoção no último verso da música recém-inventada. O americano não pôde fazer nada a não ser acompanhar o olhar do homem estranho, que estava direcionado para as estrelas.

Stargazer!