Disclaimer: Os personagens dessa história não me pertencem, nem a música usada em alguns trechos, mas o enredo é de minha total autoria.
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A mancha negra
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In the madness and soil of that sad earthly scene*
Only then I am human, only then I am clean*
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O que você está fazendo?
O pensamento surgiu como um estalo de luz que a despertou.
Desde quando importa?
Indagou-se logo em seguida tentando sobrepor a sensação de que tinha algo errado acontecendo.
Era difícil analisar a situação visualmente por causa do corpo masculino em cima de si, então abaixou as pálpebras e deixou os outros sentidos trabalharem na construção do cenário.
Isolou cuidadosamente a respiração pesada do cara e concentrou-se nos outros barulhos do ambiente. Pode ouvir o timbre metálico de uma guitarra durante o solo de alguma música velha que saia das caixas de som do computador antigo na mesa de centro da sala, mas também escutou o farfalhar de um passarinho do lado de fora das janelas escuras. Talvez estivesse amanhecendo. É, provavelmente estaria, mesmo que não se lembrasse de muitas partes da noite anterior.
Sentiu o cheiro de suor, cigarro e mofo lutando pelo seu lugar de direito contra o cheiro característico do sexo que ameaçava impregnar o quarto.
- Você parece um maldito cadáver – a voz desconhecida silabou no exato instante em que os movimentos pararam.
Ela sorriu minimamente, ainda sem abrir os olhos, e estalou a língua.
- Isso não parecia estar te incomodando – O cara saiu de cima de si. Qual era seu nome mesmo? Algo com "s". Sas... Sau... Quem se importa?
- Se eu quisesse foder com a porra dum cadáver estaria num necrotério.
Ela riu alto e languidamente, sem se incomodar com a própria nudez. Abriu os olhos e estampou nos lábios com batom borrado o escárnio. Analisou o homem à sua frente que vestia apressadamente as próprias calças, um pouco mais alto que si mesma, ombros largos, rosto anguloso... talvez um pouco bonito, não que andasse escolhendo ultimamente.
- Você está em um, ou vai me dizer que não notou a semelhança?
Ele a olhou com asco, ela apoiou a cabeça na mão e deitou-se de lado, ainda sorrindo. Sempre sorrindo.
- Você é uma puta drogada e maluca.
- Claro que sou – sacudiu as mãos enquanto o observava juntar as próprias coisas e tomar rumo à porta. Em tom jocoso emendou: - Encoste a porta, docinho.
Ele a bateu.
Ela fechou a cara e levantou. Observou o corpo magro no espelho velho e manchado posicionado ao lado da cama e se olhou demoradamente absorvendo cada detalhe do próprio. As coxas magras, o quadril largo, os seios médios, o abdômen ossudo de quem há muito tempo não encara uma refeição decente. Abaixo dos olhos com o lápis preto borrado, olheiras arroxeadas de muitas noites mal dormidas; na boca o batom bordô manchado. Limpou-o cuidadosamente, desnudando os lábios tão acostumados com a cor obscura. Em seguida, afastou as madeixas rosadas e empapadas de suor da testa e pescoço.
Continuou analisando o corpo esguio por alguns segundos, traçando um comparativo de como a falta de saúde afetava sua aparência, mesmo que ainda se considerasse bastante desejável. As quase diárias companhias masculinas à sua cama provavam que não era a única com essa opinião.
- Uma puta drogada e maluca... – murmurou olhando o próprio reflexo, o sorriso de escarnio voltou aos lábios – Que idiota, putas cobram.
Andou até o banheiro desviando de suas coisas espalhadas pelo chão, o escuro do quarto começava a ser invadido por pequenos feixes de luz que escapavam pelas janelas cerradas, desviou os olhos para o celular e o viu marcar pouco mais de cinco da manhã.
Jogou o pequeno aparelho em cima da cama sem se virar e fechou a porta do banheiro, acendendo a luz em seguida e observando novamente seu reflexo no pequeno espelho posicionado acima da pia.
- Agora somos só eu e você.
O reflexo parecia rir de sua aparência patética.
Abriu a torneira, jogou água no rosto. Não seria o suficiente, sentia o corpo pungente e o cheiro do perfume masculino barato. Sentia nojo do próprio corpo. Entrou no box e ligou o chuveiro.
Tomou banho como quem exorciza um demônio.
A pele doentiamente branca avermelhava-se com a brusquidão usada para esfregar o corpo, alguns lugares parecendo poder começar a sangrar se um pouco mais de força fosse empregado.
Manteve o ritmo até sentir ter tirado todo e qualquer vestígio da companhia que a manuseava anteriormente e, enquanto sentia a água fria bater na nuca por cima dos cabelos, estremecia.
Observou a água que escorria pelo ralo debaixo de seus pés e pensou que jamais estaria completamente limpa, pois sentia que ela era a sujeira.
O que você está fazendo?
Franziu o cenho diante o pensamento insistente e, enquanto via um fio de cabelo ser arrastado lentamente pela água em direção ao abismo que o ralo representava, tudo se apagou.
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Gemeu e pôde sentir na língua o gosto de ferrugem característico do sangue. Tentou abrir os olhos. Já que parecia ser demais tentar se mexer, buscou orientar-se. Acalmou a respiração e tentou lembrar do acontecido, lembrando-se de estar debaixo do chuveiro antes de tudo escurecer.
Continuava debaixo do chuveiro, deitada de bruços no box, pode sentir a pele murcha pelo excesso de contato com a água, aquela sensação característica de dormência nos dedos. Não sabia quanto tempo tinha ficado ali, se minutos ou horas. A cabeça doía, as costas doíam, sua alma doía. Tudo que remetesse à sua maldita existência parecia estar em chamas.
O que você está fazendo?
Cerrou os dentes com raiva. Mas que diabos!
Arrastou-se para a parte em que a água do chuveiro não a atingia e forçou-se a sentar, com a cabeça escorada no azulejo frio, abriu os olhos e estabilizou completamente a respiração.
Olhou a extensão do corpo em busca de algum machucado pela queda e encontrou um hematoma no joelho, que provavelmente tinha absorvido toda a queda junto com o queixo, que podia sentir bem dolorido. A língua machucada era prova que mordera ela também. De resto, tudo parecia em ordem.
Levantou e desligou o chuveiro, puxou a toalha para si e secou-se enquanto andava pelo quarto e sentava na cama, olhou o lixo espalhado para todo canto, a poeira, os lençóis sujos e com o cheiro impregnado de muitos perfumes, nenhum dela.
A fome a atingiu como um soco e lembrou-se que não tinha nada para comer. Vestiu a primeira calça jeans que não fedesse, o tênis surrado e uma camiseta de banda velha. Sentou-se na cama de lado para o espelho e repetiu aquele ritual da maquiagem que conhecia tão bem, o corretivo, o pó, o lápis de olho escuro e o batom de sempre.
Lembre-se, querida, não importa como você se sinta por dentro, a aparência é muito importante. Sorriu, mais por dentro que por fora. É claro, mamãe.
A música continuava ao fundo, pode escutar a primeira nota do piano e acompanhou o cantor.
- My lover's got humour she's the giggle at a funeral*...
Adorava essa música, mas ainda assim levantou e abaixou o volume das caixas de som até ficar no mudo. Pegou as chaves e rumou porta afora.
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Domingos são dias estranhos. Até as cidades mais movimentadas parecem ficar preguiçosas como um gato manhoso. O movimento dos carros diminui drasticamente, são poucas pessoas na rua.
Quando saiu de casa andou vagorosamente pela vizinhança, alguns se aglomeravam em uma esquina qualquer e bebiam, outros se enfiavam nos becos para se drogar ou traficar os pacotes, mas todos, sem exceção, a cumprimentavam.
Ela andava com um sorriso que a fazia parecer pronta para tacar fogo em alguma coisa, tomava um ou outro gole da garrafa dos ex parceiros e amigos. Inclusive das garotas.
- Hey Saks! – A loira gótica sentada no colo de um outro rapaz gritou do outro lado da rua, a rosada considerou passar reto e ignorar, mas acabou andando até lá, quando a viu se aproximar, Ino continuou – Vi que se deu bem ontem.
Ela riu se lembrando do cara irritadiço que passou pela sua porta essa manhã.
Se eu quisesse foder com a porra dum cadáver estaria num necrotério.
- Só tinha aparência, não importa – pegou a garrafa da colega e deu um longo gole.
- Eles nunca importam pra você.
Sakura olhou bem nos olhos da loira e estampou o tão característico sorriso de escárnio nos lábios, sentiu o veneno sair dos lábios da outra e lembrou-se que deveria se importar. Mas não ligava. Ela também não importava. Nada importava.
O que você está fazendo? Aumentou o sorriso, devolveu a garrafa e saiu andando quando, ainda de costas, virou o rosto e respondeu:
- E porquê importariam?
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If the Heavens ever did speak*
She is the last true mouthpiece*
Every Sunday's getting more bleak*
A fresh poison each week*
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Tinha três sacolas pequenas na mão e sentia a circulação dos dedos cortarem quando notou onde estava. Bem longe de casa, muito longe de onde deveria estar, onde era seu lugar.
Encontrou-se de frente para uma janela atrás da pequena cerca de madeira. O jardim continuava cuidado com esmero, a pintura parecia nova. Tinha certeza de que se levantasse o trinco do portãozinho ele não emperraria e, ao empurrar a porta, não teria barulho. Ali tudo era muito brilhante, diferente do lugar que vivia nos últimos anos.
Olhava a cena que corria pela janela como quem assiste à uma propaganda da Coca-Cola na televisão. Com o sol de fim de tarde caindo por detrás da casa, a família feliz colocava a mesa.
O pai sentado de costas para a janela, a mãe com os loiros cabelos levemente grisalhos sorrindo enquanto cortava algo no próprio prato e a filha perfeita, com seus longos cabelos e olhos claros trazendo com as mãos encapadas o que parecia uma tigela de alguma comida deliciosa. Todos sorriam e seus sorrisos pareciam o sol ofuscante do dia.
A mais nova a viu e congelou com a tigela meio palmo de altura da mesa, a mãe, preocupada, virou o rosto para a janela e encarou a rosada que pode ver, mesmo à metros de distância e com o vidro entre elas, seus olhos brilharem como apenas olhos cheios de lágrimas são capazes.
O que você está fazendo?
O pai também virou e, antes de qualquer pudesse mexer um músculo, Sakura se virou e saiu andando, tão silenciosa e fantasmagoricamente quanto aparecera.
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Abriu a porta e sentiu a lufada de ar poeirento atingir seu rosto, levou as sacolas até a cozinha e pensou em cozinhar alguma coisa. Encarou longamente a pia lotada e mudou de ideia.
Abriu uma das sacolas e tirou um pequeno pacote de Pocky, abriu-o e foi até a sacada do apartamento sentar-se no parapeito enquanto mordiscava o doce.
Primeiramente olhou para o céu, como o bairro era afastado do grande e iluminado centro da cidade, podia se ver um punhado a mais de estrelas no céu limpo. Com a lua como um fiapo prateado, ela parecia muito mais coadjuvante do que a protagonista daquele cenário.
Não tinha muito o que ver no céu, já fazia muito tempo que parara de sonhar com ele e todas as suas infinitas possibilidades. Para ela, ele não guardava possibilidade alguma.
Optou por abaixar os olhos e observar as luzes da cidade. O lugar que lhe cabia naquele mundo era escuro e baderneiro. Observou, na linha do horizonte, as luzes dos arranha-céus. Era tediante também.
O doce acabou e jogou o pacote no canto, olhou para dentro do apartamento e viu na mesinha perto da porta o maço de cigarro jogando de qualquer jeito, esticou-se para alcança-lo, deixando também que os olhos passeassem pela pele branca do antebraço. Demorou um pouco os olhos nas pequenas e redondas manchas escuras de agulha.
O que você está fazendo?
Ignorou e pegou o isqueiro que sempre mantinha no bolso, acendendo o cigarro e tragando-o. Acompanhou a fumaça dançando, subindo e rodopiando até seu destino de desaparecer. O destino de todos em algum momento.
Olhou para baixo, observou o beco sem saída, escuro e sujo que era aquela parte da sua rua. Lembrou-se que a rua da frente também era pouco movimentada. Analisou a altura e considerou se a queda dali poderia ser fatal.
O que você está fazendo?
Sorriu o sorriso de sempre, jogou a bituca do cigarro fora.
- Estou adiantando meu destino.
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Essa era uma frase que ela escutava muito.
- O que você está fazendo?
Da mãe, quando fora pega dando uns amassos atrás da garagem. Da irmã que sempre ficava no seu pé tentando entrar na sua vida. Do pai, quando enfiara o carro numa arvore e fora encontrada bêbada e drogada.
Mas apenas uma vez ela respondeu, e foi para a pequena irmã loira e reluzente que a observava, no meio da noite, jogar algumas peças de roupa dentro de uma mochila surrada.
- Eu estou tirando a mancha negra na luz dessa família.
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Take me to church*
I'll worship like a dog at the shrine of your lies*
I'll tell you my sins*
So you can sharpen your knife*
Offer me that deathless death*
Good God, let me give you my life*
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Fim
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*Música Take Me To Church, Hozier.
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Quanto tempo não aparecia por aqui com algo de Naruto. Quanto tempo eu não escrevia. Foi sofrido, viu? A gente enferruja, desacostuma.
A história originalmente foi criada sem fandom nenhum, mas resolvi adaptar ela à alguns detalhes para publicar. Foi meio vomitada e peço perdão por qualquer erro ou quebra de ritmo, estou muito desacostumada.
De qualquer maneira, espero que gostem. Foi feita de coração e com muitas horas de dedicação. Pretendo me reorganizar e continuar meus projetos parados, quem sabe consigo antes de a faculdade ficar insana de novo.
Torçam por mim, e comentem, vocês sabem que é esse nosso combustível!
Kissus.
