O Retículo de Cosmo
Capítulo 1 - A Convocação Dourada
Parte 1
O dia acordava brumoso, o sol mal havia se levantado e aquela figura fugaz deslizava apressada pelo que restavam de sombras na capital carioca. Poucos poderiam sequer notar a sua presença, dada a destreza que desenvolvera em seu ainda incompleto treinamento, e era com isso que contava, pois não queria chamar mais a atenção das autoridades locais do que a ocasionada por sua preciosa bagagem na aduana brasileira. Sua armadura não era lá muito valiosa, afinal não era ainda um cavaleiro, todavia, seu mestre recomendara nunca sair sem ela, em especial, em uma missão tão importante. E ele não podia fracassar, a continuidade de seu treinamento dependia de que aquele pacote fosse entregue em segurança. Fora o próprio Grande Mestre que lhe explicara sua tarefa. A emoção de encontrá-lo pessoalmente renovara as suas forças e reacendera o desejo de sagrar-se um defensor de Athena, e era por isso, repetia sua mente incessantemente, que ele não podia fracassar.
Relembrava da agonia que a pouco passara, enquanto caminhava cuidadosamente em direção ao seu destino, sabia que se não fosse pela carta do Santuário, jamais teria sequer saído do aeroporto. Falava duas ou três palavras em português e com elas não conseguiria explicar a enorme quantidade de metal que trajava, muito menos evitar que a notícia de um viajante tão peculiar vazasse para a imprensa, e isso seria a sua morte, pois ninguém podia saber da existência de sua ordem. Pensava, agora que se aproximava de seu destino, em seu próximo problema: como entregar sua encomenda, porém seus pensamentos foram de súbito interrompidos, ao virar uma esquina e se deparar com aquele magnífico sol nascente na praia de Copacabana.
Havia finalmente chegado, o luxuoso e imponente hotel estava quase a sua frente, mas para entrar, deveria sair das sombras e se expor aos olhos curiosos dos brasileiros. Torcia para o seu manto ser mais discreto que sua armadura.
Era uma fria manhã de segunda-feira, fria demais para aquele final de inverno carioca, João estava cansado por mais uma noite de trabalho naquela chique, mas demasiadamente massante, recepção. Ansiava por um emprego melhor, mas como necessitava daquele mísero salário, precisava se contentar. A noite havia sido gelada e sua única distração havia sido aquele jornal esquecido por algum hóspede sobre a bancada, nenhuma notícia deveras interessante, só mais duas tragédias: um navio russo colidira com um cargueiro e naufragara quase que imediatamente, matando pelo menos 400 pessoas; e dois aviões que bateram em pleno ar sobre Cerritos, na Califórnia, vitimando mais 82 inocentes. Não conseguia evitar de pensar que aquele ano estava sendo demasiadamente catastrófico, não fazia duas semanas que cerca de 2000 pessoas haviam morrido em um desastre ambiental, na região do lago Nyos em Camarões, havia também a explosão da Challenger, no final de janeiro e como poderia ele se esquecer do desastre nuclear de Chernobyl. Alguns místicos chegaram a afirmar veementemente que tudo isso eram presságios do Apocalipse, anunciado pela passagem do cometa Halley pelo seu perihélio, seja lá o que isso significava.
João não costumava acreditar nessas bobagens, afinal o que ele, um mero recepcionista, poderia fazer a respeito? Preferia mesmo pensar no que faria em sua próxima folga, que esses tais astros, os mesmos que anunciavam o fim dos tempos, reservaram capciosamente para o feriado vindouro, de forma que ele finalmente poderia levar seu filho ao desfile militar da independência. Não podia negar, estava feliz.
-Olá! Bom dia! - Foram essas palavras proferidas em um inglês carregado de um sotaque tão distinto, que o acordaram de seus devaneios. De tão absorto em seus pensamentos, que estava, deixara de notar a entrada daquela peculiar figura, que agora o encarava. Era um sujeito estranho, não era alto, não teria muito mais do que 1,7 metros de altura, mas extremamente corpulento; os vistosos cabelos negros na altura dos ombros e a franja desigual, pouco acima dos olhos, conferiam uma aparência de pueril desleixo ao rosto redondo e castigado pelo sol, mas ainda sem o sinal dos primeiros fios de barba. Seus olhos também negros possuíam uma sagacidade, que muito contrastava com a sua juventude. Porém, o que mais lhe causara espanto eram os trajes do garoto, que só reparara em uma segunda olhada, uma bata marrom surrada e carcomida, que mais parecia oriunda de um paupérrimo convento franciscano ou vinda diretamente do filme Star Wars.
-Olá! Poderia falar com o senhor Al... José Alberto da Silva? - Continuou o garoto, antes mesmo que João pudesse por um pouco de ordem em seus pensamentos. Parou e respirou fundo antes de procurar pela palavra para responder. - Um momento por favor. - Não sabia se tinha dito alguma bobagem, seu inglês era realmente muito pobre, mas parecia que havia ganhado algum tempo, pois o menino aquietara-se e começara a observar boquiaberto o luxo daquele salão. Foi até o livro de registros e começou a procurar pelo nome em questão. Momentos depois, voltou-se para seu interlocutor e meio que tremulo disse - O senhor José Alberto está em seu quarto e pediu que não fosse incomodado por motivo algum.
-Mas é muito importante. Eu realmente preciso falar com ele. - Retorquiu o garoto em um inglês ainda mais incompreensível para João, que entendeu o que dissera mais pela sua expressão facial de descontentamento.
-Sinto muito, mas é o regulamento do hotel. Eu só posso perturbar o descanso de um hóspede em uma situação extrema. - João lembrava-se daquele hóspede retornando tarde da noite, era extremamente alto e parecia muito forte, exatamente o tipo de pessoa com a qual não se quer confusão. Havia deixado bem claro que não queria ser incomodado por nada nesse mundo e apesar de parecer muito calmo, João tinha medo de qualquer reação daquele homem, era, pois, mandar esse sujeito esperar, exatamente o que ele iria fazer. Estranhamente, esse tal de José Alberto falava um português perfeito mas carregado de um sotaque que muito lembrava o desse garoto, que agora, o encarava insistentemente, como se a sua cara feia fosse acuá-lo. - Você pode esperar, quando ele acordar eu aviso que você quer falar com ele.
-Mas é realmente muito importante...- estava começando a se desesperar e por falta de opção, já estava considerando mesmo a hipótese de se sentar naquele sofá ao lado e esperar, quando se lembrou de um código de emergência do Santuário, sabia que tal procedimento não deveria ser utilizado levianamente e que a sua mal utilização poderia incorrer em algum castigo, mas o que quer que seja que havia feito com que o Mestre mandasse um mensageiro com urgência para o outro lado do Atlântico, deveria ser uma justificativa suficiente.
João sentira um alívio quando o garoto dirigiu-se ao sofá. Estava recomeçando a folhear o jornal, quando voltou a ouvir sua voz inoportuna. - Com licença, mas é realmente uma emergência. A esposa do senhor José foi hospitalizada essa madrugada e está correndo risco de vida. - João se assustou, chegou a pensar por um momento que o garoto estivesse mentindo, ao tentar entender por que não tinha dito aquilo logo de princípio, mas logo desistiu dessa linha de pensamento e pegou o telefone. - Vou avisá-lo.
-Ele pediu para que suba. O quarto dele é o 42. Basta subir por aquele elevador até o quarto andar, será a segunda porta a sua direita. - O garoto nem chegou a agradecer, abriu um enorme sorriso e saiu correndo em direção ao elevador.
Aldebaran abriu a porta, parecia assustado. Nunca havia falado, ou sequer visto o caveleiro de Touro na sua vida, mas aquele gigante com mais de 2 metros de altura e aparência paradoxalmente amigável era com certeza ele.
-Bom dia, Aldebaran! Eu sou Tyom, aprendiz de Kalimera da Coroa Boreal. Fui enviado pelo Mestre do Santuário para entregar-lhe essa mensagem. - O garoto falava um grego clássico impecável e o envelope de linho com o selo do Santuário, que estendera, conferiam-lhe total confiabilidade. Observou o garoto dos pés à cabeça e pediu que entrasse.
O quarto, no qual o cavaleiro estava hospedado, era compatível com o seu tamanho de tão grande que era. Muito luxuoso também, quem lhe dera um dia ser um cavaleiro tão respeitado para poder usufruir de coisa semelhante em suas férias. Aldebaram pegou o envelope e dirigiu-se até uma mesa, ofereceu uma cadeira a Tyom e se sentou em outra. Rompeu o lacre de cera com certa dificuldade, no interior do envelope havia dois papéis um cuidadosamente dobrado, também de linho, e outro que parecia uma passagem aérea. Bateu os olhos na passagem e viu que tinha uma reserva para um vôo ainda essa noite. Ficou ainda mais curioso, uma curiosidade mórbida temperada com um pouco de preocupação. Abriu o outro papel e leu. Leu mais uma vez para ter certeza de que não entendera nada errado.
Algo realmente grave havia, de fato, ocorrido, pois da última vez que um Concílio Dourado havia sido convocado, foi para deliberar sobre o iminente retorno dos Titãs, o que seria dessa vez? Nenhuma pista na carta, a única coisa clara era a urgência, dado que o encontro ocorreria em pouco mais de um dia. Suas tão merecidas e aguardadas férias haviam abruptamente terminado. Não estava bravo, não demonstrava sequer chateação. Adorava ser um cavaleiro, lutar por Athena e defender o planeta e por isso estava somente curioso e preocupado com as atuais circunstâncias. Contudo, ainda era cedo, o Sol mal havia nascido e o seu vôo era somente à noite. Ele ainda tinha um dia de férias! Além do mais, quando será que poderia ele retornar retornar às terras tupiniquins? Levantou-se e se dirigiu ao garoto, que atônito apenas observava, abriu um enorme sorriso e disse:
-Vamos aproveitar esse belo dia na praia de Copacabana?
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