LOST
CAROL
–Tender
Sugar–
Petit Ange
Prólogo.
Ano de 321 d.A.S.
"Que irritante...!"
É, o castelo estaria mesmo melhor sem aqueles gritos.
"Nem é o fim do mundo! As mulheres daqui são escandalosas demais!"
Será mesmo que eram elas, as 'mulheres dali', as escandalosas? Ou será que era porque aquilo doía mesmo?
"Não fale muito, sua louca! Ela ainda é nossa rainha..."
Narielle, a Pérola de Arkus. De fato, ela era a nova rainha de Mesembria. Mas nem sempre fora assim. Nem sempre ela sorria, forçadamente, tristemente, por causa deste título imposto.
"Oh! É o príncipe!..."
As criadas, tanto aquela que o reconheceu em seu canto quanto aquela que, anteriormente, falava mal da rainha bem ali na sua frente, empalideceram no mesmo instante, surpresas.
"Muito boa tarde, meu príncipe!..." – a mulher fez uma reverência calculada.
Mas o pequeno não se dignou a respondê-las.
Nem sequer as olhou, de fato. Ignorou a presença delas totalmente, como se não estivessem ali, cumprimentando-o assustadas.
As mulheres, vendo-se sem respostas, resignaram-se a continuar a rota que planejavam desde o início, abarrotadas de toalhas brancas e com uma tina de água.
Lá ao longe, graças à sua audição privilegiada, ele as ouviu comentarem:
"...Menino mal-criado! Realmente, as crianças daqui não se comparam às nossas, da verdadeira Mesembria!"
E, julgando-se protegidas pela distância que os separavam, continuaram tagarelando as idiotices de sempre.
O príncipe não se dignou a fazer nada. Nem a mover uma sobrancelha.
Mas não conseguiu evitar um sorriso irônico enquanto olhava suas mãos impotentes, quando pensou no cumprimento delas, segundos atrás.
'...Príncipe?'
Não. Ele já não era mais um príncipe.
Agora era só mais uma alma atada que ouvia pateticamente os gritos e lamentos da nova rainha, que enchiam o castelo de agonias.
"Nossa mãe está dando à luz, não?"
O pseudopríncipe virou-se automaticamente para a figura que repentinamente apareceu para atrapalhar-lhe os pensamentos: uma criança, como ele, talvez um ou dois anos mais nova.
Um menino de cabelos escuros e de franjas que caíam pelo rosto. A pele era pálida como a de um morto, e ele usava uma roupa branca com detalhes em ouro, com uma camisa por baixo, onde mangas e gola brancas apareciam. A calça azulada era da mesma cor do cinto de pano.
A roupa de um duque, de um atual príncipe, um futuro rei daquele lugar.
"Já é o terceiro, não?" – continuou perguntando, um sorriso maroto no rosto.
O jovem sentado no chão, num canto solitário do castelo, apenas continuou em silêncio, sem assentir ou fazer nada.
"Vamos... Fale comigo, starshiy brat." [1]
"...Não há o que falar, jedinotrobni brat." [2]
Agora que voltaram a se concentrarem no ambiente a sua volta, os jovens príncipes perceberam que os gritos da rainha continuavam.
A correria pelos corredores era evidente, e tão séria que as pessoas chegavam a esquecer a presença de dois símbolos reais bem ali, um sentado no chão e o outro escorado na parede, ambos olhando para a janela e o lindo dia lá fora.
"Tenho pena da mamãe." – comentou, suspirando, o pequenino. – "Esse negócio de dar à luz deve ser bem difícil, né?"
'Ela não é sua mãe, maldito! Ela é só minha!'
Mas aquilo não passou de um pensamento infeliz, algo solitário, uma capitulação feita apenas para o silêncio que os dividia tão profundamente.
O que ele não daria para estar lá, segurando a mão de sua mama... [3]
Quando tentou fazer isso, foi bruscamente impedido de entrar no pelas damas de companhia, por ordens do rei, o infame padrasto.
"Será que vai ser menino ou menina dessa vez...?" – perguntou o jovem príncipe, passando a mão pelos cabelos negros.
Mais silêncio.
Não havia o que dizer. Aquele menino, o esquecido pseudopríncipe, já não queria mais responder nem ouvir. Não queria mais saber daqueles gritos ou daquela vida. Respirou tão profundamente que parecia estar partindo-se.
Estava exausto, afinal.
Decidiu olhar a janela de novo, já que ela o fazia esquecer-se do mundo: viu os montinhos de neve que insistiam em permanecer no peitoral. A tempestade de ontem fora impiedosa, mas agora, o céu estava límpido e azul, nem parecendo ter trazido aquela desgraça.
O pequeno pensava nas plantações... Elas já estavam tão castigadas com o novo regime do reino, o regime daquele infame, e agora mais aquilo...
Se seu pai estivesse vivo, o que diria do estado lamentável de seu reino?
E igualmente do de sua esposa...?
Lá fora, a neve devia estar cobrindo boa parte do reino. E, do jeito que nevou, ela devia ter uns bons centímetros de altura. O bastante para sufocar e matar muitas plantas, muitos alimentos para os pobres trabalhadores.
O regime do infame novo rei estava destruindo todo o esforço de seu pai, estava acabando de sufocar um reino já devastado pela guerra.
Mas ele só tinha nove anos...
O que podia fazer contra um rei tirano com nove anos...?
"Ah!... Os gritos cessaram, moj brat!" [4]
O principezinho afobado tinha razão: os gritos da rainha haviam parado.
A mente do pseudopríncipe logo se encheu de dúvidas: estaria ela bem? Já ganhou o bebê? Será que estava exausta, iria dormir agora? Doeu muito? Estava sangrando, como das outras vezes? O rei infame estava ao seu lado ou já falava com os ministros e curiosos no recinto, que assistiam ao parto?
Perguntas demais rodavam, mas ele continuava quieto, encolhido em seu canto com seus olhos sorumbáticos. Quem o visse de longe, jamais diria que aquele ser queimava de preocupação.
...Como diabos estava sua mama?
...
"Hoje nos despedimos de Narielle Erigina, a Pérola de Arkus..."
Era mentira.
"Uma adorável rainha. Sempre digna, sempre presente..."
Tudo era mentira.
"Esposa dedicada, mãe estremosa, coração caridoso..."
Ninguém estava se despedindo dela. Estavam é pedindo para Deus recebê-la nos céus com a mesma alegria com a qual mandaram-na.
Ela era uma sujeira, uma contaminação necessária.
Era só um símbolo da dominação de Mesembria sobre seu povo.
Ele próprio, o maldito pseudopríncipe, não passava de um maldito símbolo. Mas, ao contrário da mãe, agora morta, ele não era necessário.
O rei sequer estava presente naquele enterro.
Alegou não se sentir bem em estar ali vendo o sepultamento de sua esposa e saiu logo que surgiu a oportunidade.
Sua mãe sequer pôde ser enterrada ao lado do verdadeiro amor, o antigo rei, o antigo esposo. Seu corpo foi jogado no Mausoléu Real de Mesembria, aquele lugar frio e cheio de estranhos inimigos.
Nem mesmo na morte sua querida mãe teria paz!
"Milaya mama...! [5]"
Quando percebeu, já estava jogado sobre a lápide da mãe, os joelhos molhados de neve, a cabeça enevoada pelo frio. Respirava com dificuldade, deixando escapar por seus lábios trêmulos pequenas e tênues fumaças, que sumiam tão logo eram formadas, pelo céu plúmbeo.
Todo o corpo tremia como se tivesse sido possuído por demônios. Os olhos ardiam, embaçando a visão pelas lágrimas que vinham quentes, derramando-se uma, duas, três pelo rosto infantil.
"Que falta de educação, em pleno velório!..."
"...Deixem o pequeno príncipe despedir-se da rainha." – ele ouvia os sussurros, os malditos sussurros.
"Pobre menino... Agora não há mais chances de subir ao trono..."
"Nunca houve chance alguma, na verdade..." – os malditos sussurros, como se ele fosse um débil mental por ser uma criança.
"Moya mama...! [6]" – mas ele não se importava mais.
'Devolvam minha mãe, malditos!', ele pensava em meio à sua dor, agarrado como se pudesse tirá-la daquele túmulo gélido só com aquele ato de arranhar a superfície do epitáfio.
Não fez nenhum escândalo, como seria típico de alguém de sua idade, mas tampouco saiu dali. O pseudopríncipe não se importou mais com os comentários, nem com os meio-irmãos que vinham ali darem-lhe os pêsames e chorar com ele. Não se importou mais nem mesmo com o bebê que matou sua mãe, chorando a plenos pulmões, tornando tudo ainda mais irritante.
Em verdade, sua mente enevoou naquele momento, se fosse possível afirmar isso. Ele não ouvia, nem sentia, nem via, nem provavelmente sentia o gosto de nada.
Jogado pateticamente em suas próprias ruínas, o pequeno só pôde pensar, a boca entreaberta num "O" surpreso, os olhos turvos e perdidos em tempos onde não ouvia a própria vida ruir como uma torre a cair. A neve continuava caindo em seus ombros, continuava molhando seus joelhos... Os comentários continuavam, as alegrias veladas; tudo não mudou.
Mas alguma coisa nele, ao contrário do ambiente imutável, pareceu quebrar.
Alguma decisão que já vinha sendo pesada pareceu ganhar um significado todo especial naquele instante.
Mest. Vingança.
Sua mãe sempre lhe disse que aquilo era feio, era um ato condenável, era o pior extremo no qual um ser humano pode chegar: o extremo de odiar e ser odiado, de dedicar e vender sua vida à machucar outra pessoa.
'Mas, ó gentil mãe... Eu não posso deixar o rei impune...'. Não podia mesmo.
As pessoas começaram a despedirem-se, a irem embora. O silêncio começou a ser uma presença mais freqüente no mausoléu real. E, pouco a pouco, até a própria realeza começou a se retirar.
Mas os olhos alheios, repletos de dó e compaixão, não tocavam nos ombros trêmulos do pseudopríncipe. Preferiam deixá-lo ali com sua dor, com a última remanescente do antigo reino ao qual ele pertencia bem onde devia estar: debaixo da terra gélida.
Logo, o silêncio e os soluços contidos eram seus únicos companheiros a velarem-no frente ao túmulo da mãe.
Não... Dessa vez, havia mais um companheiro, uma decisão que criava raízes profundas em sua própria consciência, de uma forma que ele nunca imaginou ser capaz, em seus nove anos de existência, de sentir.
E esse companheiro, disso tinha tanta certeza como o sol que brilhava por entre as nuvens escurecidas, nunca iria abandoná-lo.
O mest.
"Eu, Yuvia Krolvin, ex-Primeiro Príncipe e sucessor do trono do caído reino de Arkus, prometo, mama..." – sussurrou, traçando delicadamente o nome dela no epitáfio. – "Eu prometo que vou destruir este mundo que destruiu-a primeiro. Eu prometo que vou vingá-la, moya mama..."
Continua...
[1] "Primogênito" ou "irmão mais velho", em russo.
[2] "Meio-irmão", em russo. Vale adicionar, porém, que o termo "Jedinotrobni brat" especificamente se refere a irmãos que têm uma mãe em comum.
[3] "Mãe", em russo.
[4] "Meu irmão", em russo.
[5] "Querida mamãe", em russo.
[6] "Minha mãe", em russo.
