Capítulo I
Ela faria com que tudo fosse perfeito. Cada centímetro, cada recanto, cada detalhe seria elaborado do modo como dese java e visualizava, até que seu sonho se tornasse realidade. Afinal, contentar-se com menos do que a perfeição era per da de tempo. E Hermione Granger não se conformava em perder nada.
Aos vinte e cinco anos, já vira e experimentara mais do que muitas pessoas bem mais velhas. Enquanto as outras garotas ficavam cochichando sobre rapazes ou preocupan do-se com roupas, ela já viajara para Paris e para Bonn, usan do trajes glamourosos e fazendo coisas extraordinárias, já dançara para rainhas e até jantara com príncipes.
Sempre seria grata aos pais, que lhe deram a oportuni dade de ter esse estilo de vida. Devia a eles tudo o que ti nha e vivera. Mas chegara a hora de conseguir o que dese java com o próprio esforço.
A dança era seu sonho desde que se conhecia por gen te. Segundo o irmão Harry, era sua obsessão. Mas acha va que não havia nada de errado em ser obcecada, contanto que agisse com segurança e batalhasse muito.
Hermione se dedicara muito à dança. Foram vinte anos de aulas, exercícios, alegrias e sofrimento, suor e sapatilhas de ponta. Sacrifícios também, dela própria e dos pais. Com preendia como fora difícil para eles deixarem a caçula da família ir para Nova York para aprimorar sua arte, com apenas dezessete anos. Mas eles só haviam lhe oferecido encorajamento e apoio.
Dançara como profissional durante seis anos, conhece ra a luz dos refletores e a excitação de subir ao palco. Viaja ra pelo mundo, representara todas as grandes personagens femininas do bale: Gisele, Aurora, Julieta, dezenas de pa péis, trágicos e triunfantes, e adorara cada momento, cada segundo.
Por isso, todos ficaram surpresos quando Hermione decidiu abandonar o palco. Só havia uma explicação para tal atitu de: desejava voltar para casa.
Queria uma vida de verdade. Por mais que amasse o bale, não estava mais disposta a abdicar de tudo por ela. Aulas, ensaios, apresentações, viagens, publicidade... A car reira de bailarina era muito mais do que ficar na ponta dos pés sob os refletores. Dera-lhe muita alegria, mas ela desco briu que desejava dar algo de si para as pessoas, já que re cebera tanto. E poderia conseguir tudo que desejava abrin do sua própria escola de bale.
As alunas viriam, disse a si mesma, porque tratava-se de Hermione Granger, e esse nome significava algo importante no mundo da dança e do bale.
Era o momento de novos sonhos, refletiu, enquanto percorria a enorme sala vazia. A escola de bale era sua nova obsessão, e pretendia que fosse tão compensadora, gratificante e perfeita quanto a antiga.
Com as mãos nos quadris, examinou as paredes cinzen tas, que um dia haviam sido brancas. Voltariam a clarear, decidiu. Seria ali que ela poria os pôsteres emoldurados dos grandes bailarinos, Nureyev, Margot Fontayne, Baryshnikov, Davidov e Bannion.
E as duas paredes mais longas seriam revestidas com espelhos por trás das barras. Essa vaidade profissional era tão necessária quanto respirar. Uma bailarina devia estu dar cada pequeno movimento, cada arco, cada flexão, para alcançar a perfeição.
Os espelhos em uma sala de dança eram como janelas, pensou Hermione, por onde a bailarina enxergava o bale.
O velho teto seria consertado ou substituído, conforme a necessidade. O mobiliário... Hermione esfregou os braços gela dos. Bem, sem dúvida seria modificado. As tábuas do chão receberiam um tratamento para ficarem macias, lisas e per feitas. E havia ainda a iluminação e o encanamento, por certo teria alguns reparos elétricos a fazer.
Seu avô fora marceneiro antes de se aposentar, lembrou com afeição. Portanto não era tão ignorante a respeito de reformas. E o que não soubesse, aprenderia, concluiu. Faria perguntas, até compreender o processo e poder orientar o empreiteiro que fosse contratar. Era preciso conhecer os assuntos para poder comandar, pensou.
Em um esforço para imaginar como ficaria o ambiente, fechou os olhos, inclinando o corpo em uma posição de bale. Hermione tinha muita flexibilidade e foi descendo o tronco até que as nádegas tocaram os calcanhares. Voltou a erguer-se e baixar de novo.
Fizera um coque no alto da cabeça, e com os movimen tos continuados, os cabelos se soltaram e algumas mechas onduladas, castanhas e brilhantes emolduraram-lhe o rosto. Quando soltas, chegavam até a cintura, emprestando-lhe um ar romântico que era o ideal para sua imagem no palco.
Sorrindo de modo sonhador, o rosto de Kate parecia brilhar. Herdara a pele morena da mãe e as maçãs do rosto salientes, os olhos castanhos e o queixo voluntarioso, do pai.
Era uma combinação atraente e muito feminina. Um misto de cigana, sereia e fada. Os homens olhavam para Hermione, percebiam a delicadeza de suas feições e concluíam que era uma mulher romântica e frágil. Que erro! Por baixo da feminilidade havia uma tempera de aço!
— Um dia desses não vai conseguir sair dessa posição e vai ter que pular como um sapo.
Hermione deu um salto e abriu os olhos.
— Harry! — exclamou, atravessando a sala para ati rar-se nos braços do irmão. — O que faz aqui? Quando che gou? Pensei que estivesse jogando bola em Porto Rico. Quanto tempo vai ficar?
Harry era dois anos mais velho, fato pelo qual costu mava martirizá-la quando crianças, ao contrário da meia-irmã Frederica, mais velha que os dois, e que nunca se apro veitara disso para dar ordens. Entretanto, Harry era o preferido de Hermione.
— Que pergunta deseja que responda primeiro? — Rin do, Harry a afastou, analisando-a de modo rápido, com um olhar divertido. — Ainda é uma magricela.
— E você é um bobo — replicou Hermione, beijando-o. — Mamãe e papai não me disseram que viria para casa.
— Não contei. Soube que a nossa Hermione estava de volta e achei que deveria vir fazer uma visita. — Relanceou um olhar pela sala enorme e suja e fez um gesto de desespero. — Mas creio que cheguei tarde demais.
— Vai ficar maravilhoso!
- Pode ser, mas no momento é um horror. — Harry passou-lhe um braço pelo ombro. — Então a rainha do bale vai ser professora.
— E a mais maravilhosa! Por que não está em Porto Rico?
— Não posso jogar beisebol doze meses por ano. Kate enrugou a testa, preocupada.
— Harry...
— Machuquei a perna.
— Oh! Muito? Foi ao médico? Vai...
— Calma, Hermione! Não foi nada grave. Vou ficar sem jogar alguns meses e voltar a treinar na primavera. Isso me dará muito tempo para transformar sua vida em um inferno.
— Esse é o lado bom dessa história. Venha, vou mos trar-lhe o resto da casa. Meu apartamento fica no andar de cima.
De modo discreto, observou se o irmão mancava.
— Pela situação do teto, seu apartamento poderá ficar no térreo a qualquer minuto.
— O teto é sólido — replicou Hermione com um gesto displi cente. — Só está feio, no momento. Mas tenho planos.
— Sempre tem.
Harry caminhou com a irmã pelo salão vazio, forçan do o peso do corpo na perna direita. Alcançaram uma pe quena sala de entrada muito feia, com paredes rachadas que mostravam os tijolos. Uma escada conduzia ao segundo andar, que parecia estar ocupado por ratos, aranhas e inse tos, algo em que Harry nem queria pensar.
— Hermione, este lugar...
— Tem potencial — ela cortou com firmeza. — E histó ria. Foi construído antes da Guerra Civil.
— Acho que antes da era da pedra lascada — corrigiu o irmão com ironia. Era um homem que gostava de tudo sim ples e em ordem. — Tem idéia do quanto irá lhe custar deixar este lugar apresentável?
— Mais ou menos. Vou saber quando conversar com o empreiteiro. É meu, Harry! Lembra-se de quando éramos crianças, e você, Freddie e eu vínhamos caminhar aqui nos arredores?
— Claro! Era um bar, depois tornou-se uma loja, depois...
— Já foi muita coisa — interrompeu Hermione. — Começou como uma taverna, em meados de mil e oitocentos. Ninguém nunca deu muita atenção a este lugar, é verdade. Mas eu costumava ficar observando estas paredes e pensava no quanto gostaria de morar aqui, olhar pelas janelas enormes e caminhar por todos os quartos.
Um leve rubor aflorou às faces de Hermione, e os olhos ad quiriram um tom muito escuro, sinal de que estava sonhan do, em seu mundo particular, pensou Brandon.
— Pensar assim quando se tem oito anos é muito di ferente de adquirir um prédio decadente quando se fica adulto.
— Sim, é verdade, mano. Na primavera passada, quan do vim aqui, estava à venda. Outra vez. Não consegui pa rar de pensar a respeito. — Hermione circundou o salão. Podia visualizá-lo do modo como iria ficar. A madeira reluzente, as paredes pintadas em tom claro. — Voltei para Nova York e para o trabalho, mas não conseguia tirar este lugar da cabeça.
— Costuma ter os pensamentos mais absurdos! Hermione deu de ombros ante o comentário do irmão.
— Mas agora isto é meu. Tive certeza assim que entrei. Nunca sentiu uma sensação assim?
Sim, pensou Harry. Sentira aquilo na primeira vez que entrara em um campo de jogo. Concluíra então que a maio ria das pessoas de bom senso teria lhe dito que jogar bola era um sonho de criança. Mas seus pais nunca disseram isso, do mesmo modo que jamais haviam desencorajado Hermione e seus sonhos de bale.
— Sim — falou em voz alta. — Já tive essa sensação. Mas o problema é que com você as coisas estão indo de pressa demais. Estou acostumado a vê-la agir com paciên cia. E persistência.
— Isso não mudou — redargüiu Hermione com um sorriso. — Quando decidi me retirar dos palcos, sabia que desejava ser professora de dança. E sabia que a minha escola seria neste lugar. E, mais do que tudo, desejava voltar para casa.
— Está certo — disse Harry, passando de novo um braço pelo ombro da irmã e beijando-a na testa. — Então vamos fazer acontecer. Mas, no momento, que tal sairmos daqui? Este salão está gelado.
— Um novo sistema de calefação é uma das minhas prio ridades.
Harry relanceou um último olhar para a sala e co mentou:
— Sua lista de prioridades vai ser bem longa...
Caminharam abraçados, envoltos pelo vento frio de de zembro, como faziam nos tempos de criança, por caminhos desnivelados e difíceis, sob as árvores que exibiam os ga lhos desnudos, e um céu cinzento, pesado de nuvens.
Hermione podia sentir o cheiro da neve no ar, e isso a exci tava.
As fachadas das casas já estavam decoradas para o Na tal, com bonecos sorridentes e rosados, representando Papai Noel, e fios de lâmpadas, renas voadoras e homens de neve.
Mas a melhor de todas as decorações, como sempre, era a da Casa da Alegria. A vitrine central da loja de brinque dos estava abarrotada de surpresas. Trenós em miniatura, ursos de pelúcia enormes, bonecas vestidas de modo ele gante, esportivo ou caseiro, caminhões vermelhos e brilhan tes, castelos feitos de blocos de madeira.
A visão geral era de uma alegre e divertida confusão, pensou Hermione. Havia o propósito deliberado de dar a impres são de que os brinquedos tinham sido jogados ali ao acaso. Mas ela sabia que tudo fora feito com muito cuidado e um profundo e amoroso conhecimento das crianças, para criar aquele efeito maravilhoso.
Ao entrar na loja com o irmão, sinetas tocaram na porta.
Os clientes perambulavam de um lado para o outro. Um menino brincava nas teclas de um piano a um canto. Atrás do balcão, Annie Maynard colocava em uma caixa de pre sentes um bicho de pelúcia com orelhas enormes.
— É um de meus favoritos — dizia para o comprador. — Sua sobrinha vai adorar.
Os óculos deslizaram para a ponta do nariz, enquanto amarrava uma fita vermelha ao redor da caixa. Então, er gueu a cabeça, piscou várias vezes e exclamou em tom es tridente:
— Harry... Natasha, venha ver quem está aqui! Oh! Dê-me um beijo, belezoca!
— O rapaz obedeceu e deu a volta no balcão, enquanto Annie se derretia na frente dele.
— Estou casada há vinte e cinco anos — comentou com o cliente —, mas esse menino me faz sentir jovem de novo. Feliz Natal! Vou chamar sua mãe.
— Não. Pode deixar que vou atrás dela — disse Hermione, sorrindo. — Harry fica aqui para flertar com você.
— Então, pode demorar à vontade — disse Annie, pis cando o olho.
O irmão, pensou Hermione com benevolência, encantava as mulheres desde pequeno porque era muito bonito. Não, corrigiu para si mesma, enquanto andava pela loja que co nhecia desde criança, era mais do que simples aparência física, tratava-se de um charme que ele sabia esbanjar com generosidade, sempre que queria. Há muito descobrira que o irmão possuía uma certa magia.
Alguns homens não precisavam fazer nada para deixar as mulheres estáticas. Pensando nisso, Hermione deu a volta na seção de carros de brinquedo e abriu caminho entre uma pequena multidão de compradores.
Foi então que avistou o homem desconhecido. Era lin do, pensou. Não. O termo era muito feminino, corrigiu para si mesma. "Viril" era um adjetivo melhor. Ele era... um homem e tanto!
Mais de um metro e oitenta de altura, usava jeans des botado, camisa de flanela e uma jaqueta muito leve para o inverno.
As botas de trabalho pareciam velhas, mas resistentes. Quem diria que um tipo tão displicente podia ser tão sexy?
E havia o detalhe dos cabelos também, observou Hermione. Vermelhos, lisos, circundando um rosto de traços fortes. Kate não soube como descrever suas feições, pois não eram vulgares nem clássicas. A boca era cheia e parecia ser a única coisa macia no corpo rijo. O nariz era reto, as maçãs do rosto salientes, e os olhos...
Hermione não podia ver bem esse detalhe, pois os cílios eram muito longos e estavam abaixados. Mas pareciam ser claros.
Desviou a atenção para as mãos, quando o homem foi pegar um brinquedo. Eram grandes, com dedos longos e fortes.
E enquanto deixava-se levar por um momento do mais completo deleite visual, Hermione tropeçou em uma série de carrinhos no chão.
O barulho a fez acordar para a realidade e chamou a atenção do desconhecido que cravou nela os olhos espanta dos, muito azuis e brilhantes.
Acertei, pensou Hermione, enquanto dizia em voz alta:
— Desculpe... — Riu e abaixou-se para recolher os brin quedos. — Espero não ter causado um grave acidente.
— Temos uma ambulância bem aqui, se for o caso — respondeu o homem, exibindo uma miniatura em tons ver melho e branco e inclinando-se também para ajudá-la.
— Obrigada. Se conseguirmos sair daqui antes que a polícia chegue, talvez fique livre da cadeia — brincou Hermione, sentindo o aroma amadeirado da loção pós-barba. — Vem sempre aqui?
— Na verdade, sim. — Ele a encarou por um longo tem po, fazendo-a perceber um brilho interessado no olhar. — Os homens são eternas crianças, não acha?
— Ouvi falar. Gostar de brincar?
O estranho ergueu as sobrancelhas. Não era comum en contrar uma bela e provocante mulher em uma loja para crian ças, numa quarta-feira à tarde, ponderou consigo mesmo.
— Depende do jogo. Qual você prefere?
Hermione riu, puxando para trás uma mecha de cabelos que caíra sobre o rosto.
— Oh! Gosto de todos os tipos de jogos... principalmen te quando ganho. —
Começou a levantar-se, mas ele foi mais rápido, estican do as longas pernas e estendendo-lhe a mão, que Hermione acei tou, sentindo, com satisfação, sua força.
— Obrigada. Sou Hermione.
— Rony. — Ofereceu um conversível azul que segura va. — Quer um carro?
— Hoje, não. Estou só olhando, até ver o que me agrada — falou sem pensar, maravilhada com o charme daquele homem.
Sorriu de novo, flertando abertamente.
Rony precisou conter-se para não suspirar. Já conhece ra muitas garotas, mas nenhuma como aquela. Impusera-se uma certa distância do sexo feminino há muito tempo... Aliás, pensou, começava a achar que por tempo demais.
— Hermione — murmurou, encostando-se em uma pratelei ra e ficando de frente para ela, em uma postura também sedutora. — Por que não vamos...
— Hermione! Não sabia que viria aqui! — exclamou Natasha Granger, correndo pela loja e empurrando uma enorme betoneira de plástico.
— Trouxe-lhe uma surpresa — disse Hermione sorrindo.
— Adoro surpresas! Mas, primeiro... — voltou-se para o rapaz. — Aqui está, Rony, conforme prometi. Chegou na segunda-feira e reservei para você.
— Ótimo! — A expressão sedutora e calculada deu lu gar a um riso espontâneo. — Perfeito! Hugo vai vibrar!
— O fabricante faz esses brinquedos para durar. Esta betoneira é algo para divertir uma criança durante anos, não por apenas uma semana depois do Natal. — Natasha deu o braço a Hermione e perguntou: — Já conheceu minha filha?
Hermione ergueu o olhar do brinquedo, surpreso.
— Filha?
Então, concluiu para si mesmo, aquela era a bailarina. Fazia sentido...
— Acabamos de nos conhecer, devido a um ligeiro aci dente de trânsito — disse Hermione, sempre sorrindo, mas inda gou com um pressentimento sombrio: — Hugo é seu sobrinho?
— Meu filho.
— Oh!
As fantasias que já criara desvaneceram-se no ar. Que descarado aquele! Casado e flertando! E não importava quem fora que começara com a provocação, pensou. Ela não era casada.
— Tenho certeza de que vai adorar o presente — falou com frieza, virando-se para Natasha. — Mamãe...
— Hermione, estava conversando com Rony a respeito de sua escola de dança. Creio que gostaria que ele desse uma olhada.
— Para quê?
— Rony é empreiteiro. E um excelente marceneiro. Re modelou o escritório de seu pai no ano passado e vai refor mar minha cozinha. Minha filha exige sempre o melhor — acrescentou Natasha para Rony, os olhos sorridentes. — Portanto, é claro que me lembrei de você.
— Agradeço.
— Sou eu que fico agradecida, porque sei que seu tra balho é da melhor qualidade, com um preço justo. — A mãe de Hermione apertou o braço de Rony. — Eu e Spencer agrade ceríamos se fosse ver o prédio.
— Cheguei há dois dias, mamãe. Não vamos nos apres sar. Mas encontrei alguém quando estava lá há pouco... Fi cou na entrada, encantando Annie.
— O quê? Harry? Por que não disse antes? Enquanto Natasha saía quase correndo, Hermione voltou-se para Rony.
— Foi um prazer conhecê-lo.
— Igualmente. Telefone-me caso deseje que vá ver o prédio.
— Claro! — Hermione recolocou na prateleira o carrinho que ele lhe dera. — Tenho certeza de que seu filho vai adorar o presente. Só tem Hugo?
— Sim, é meu único filho.
— Deve manter você e sua esposa muito ocupados. Agora, se me der licença...
— A mãe do Hugo morreu há quatro anos. Mas, sim, ele me ocupa bastante. Cuidado para não cometer mais aciden tes de trânsito, Hermione — advertiu, pondo a betoneira debaixo do braço e afastando-se.
— Belo começo... — murmurou Hermione por entre os dentes.
Uma das melhores coisas em ser seu próprio patrão, na opinião de Rony, era poder elaborar sua própria agenda de compromissos. Por outro lado, havia muita dor de cabe ça, responsabilidades, papeladas, clientes caloteiros... sem mencionar os períodos em que nem havia clientes. Mas a liberdade de ação compensava todos os aborrecimentos.
Nos últimos seis anos, sua prioridade tinha um nome: Hugo.
Depois de esconder a betoneira sob um pedaço de lona, no banco de trás da picape, foi até um canteiro de obras para ver o andamento dos trabalhos, telefonou para um fornece dor para alertar sobre uma entrega especial e parou em outra obra para dar a um cliente em potencial uma estimativa sobre o preço da reforma de um banheiro. Depois foi para casa. Às segundas, quartas e sextas-feiras, fazia questão de estar em casa antes que o ônibus escolar apontasse no final da rua. Nos outros dois dias de escola e, de vez em quando, por um atraso imprevisto, Hugo ficava na casa dos Skully, onde podia passar algumas horas com seu melhor amigo, Rod, sob a vigilância de Beth Skully.
Rony devia muito a Beth e Jerry Skully, em especial pelo fato de proporcionarem um ambiente seguro e feliz quan do Hugo não podia ficar na própria casa. Fazia dez meses que Rony voltara a Shepherdstown e lembrava-se, quase todos os dias, como as cidades pequenas podiam ser agradáveis.
Com trinta anos, ficava surpreso ao pensar como aban donara aquela cidade sem olhar para trás, dez anos antes. Bem, ponderou, ao fazer a curva na esquina de casa, nada era por acaso. Se não tivesse deixado o lar, determinado a abrir caminho para o sucesso, não teria aprendido tanto na vida, não teria conhecido Connie, nem tido Hugo.
Quase fechara o círculo, e estava acabando de transpor as barreiras para reconquistar os pais. Ou, corrigiu em pen samento, Hugo estava. Seu pai podia ter ressentimentos em relação ao filho, mas não resistira ao neto.
Fizera bem em voltar para casa, refletiu, olhando para os bosques que cresciam de cada lado da estrada. Finos flo cos de neve começavam a cair do céu cinzento.
Era um bom lugar para se educar uma criança, concluiu Rony com satisfação. Era melhor viverem em uma cidade pequena, onde Hugo tinha uma família, e começarem a co nhecer um ao outro de verdade.
E os parentes teriam que amá-lo pelo que era, e não como uma lembrança do passado.
Rony manobrou e estacionou o carro. O ônibus chega ria em poucos minutos, e Hugo desceria correndo e entraria na picape, preenchendo o espaço com as exclamações e novidades do dia. Era uma pena que não pudesse compar tilhar com o filho certas confidencias também, pensou. Di zer a ele que conhecera uma mulher que fizera seu sangue se agitar de novo. Não apenas um ligeiro interesse, mas um verdadeiro terremoto...
Fazia tanto tempo que não tinha esse tipo de sensação... E, que mal havia, afinal? Uma moça atraente que, percebe ra, era desinibida e não se importava em demonstrar o in teresse que sentira por ele.
Mas um aperto no coração o fez perceber que alguém podia sair magoado. Entretanto, o risco poderia valer a pena... se não se tratasse da filha de Natasha e Spencer Granger.
Conhecia muita coisa a respeito de Hermione Granger. Baila rina, socialite e amiga das artes. Rony preferia ir ao dentis ta do que assistir a um espetáculo de bale e já se fartara de cultura na época de seu breve casamento.
Mas Connie fora especial. Uma pessoa simples e natu ral em um ambiente pomposo e arrogante. Mesmo assim, fora difícil para os dois, lembrou Rony. Jamais saberia se continuariam a percorrer o caminho juntos, se ela continuas se viva, porém gostava de pensar que sim.
Por mais que a amasse, o casamento lhe ensinara que era mais fácil viver ao lado das pessoas de sua terra natal.
Voltando ao presente, felicitou-se por ter resistido à ten tação de convidar Hermione Granger para sair. Ainda bem que descobrira quem ela era antes de flertar abertamente. A paternidade apagara de seu caráter a arrogância e a temeri dade dos tempos de rapaz, transformando-o em um homem amadurecido.
Naquele instante, ouviu o motor do ônibus que se apro ximava e aprumou-se no assento da picape, todo sorriden te. Não havia lugar no mundo, pensou, onde gostaria de estar, além de Shepherdstown.
O grande ônibus amarelo parou com um gemido, os faróis brilhando. O motorista acenou, da maneira atenciosa e alegre das cidades pequenas. Rony cumprimentou tam bém, e viu seu filho vir correndo.
Hugo era um menino forte. O rosto era redondo e alegre, os olhos azuis como os do pai, e a boca ainda mostrava a inocência da infância.
Observando o filho, sentiu uma onda de carinho e amor inundar-lhe o coração. Então a porta da picape se abriu, e o menino entrou, estabanado como um cãozinho novo.
— Olá, papai! Está nevando! Talvez a neve cubra tudo e não tenha aula amanhã, e a gente possa ficar fazendo bonecos de neve. Que tal?
— Se isso acontecer, prometo que faremos os bonecos e andaremos de trenó.
— Verdade?
— Sim. Sem dúvida.
— Oba! Adivinhe!
Hugo ligou o motor do carro.
— O quê?
— Faltam só quinze dias para o Natal. A vovó diz que o tempo voa, portanto o Natal praticamente já chegou.
— Praticamente — repetiu Rony, estacionando em fren te à casa de três andares.
— Então — continuou Hugo entusiasmado —, se é quase Natal, posso ganhar um presente?
Rony franziu o cenho e cerrou os lábios, como se esti vesse pensando muito no assunto, depois disse:
— Sabe, Hugo? Foi uma boa tentativa.
— Ora! — exclamou o menino, desapontado. Rony riu, abraçando o garoto.
— Mas se me der um abraço, farei a famosa Pizza Mági ca dos O'Connell para o jantar.
— Certo! — replicou Hugo, passando os braços pelo pes coço do pai.
Rony sentiu-se em casa.
