I
O cheiro de madeira queimada e fumaça invadiam sua narina. Uma dor lancinante na perna o impedia de se levantar. Mas ele precisava alcançá-lo. Jared se arrastou sobre o ventre. Seus olhos ardiam e seu pulmão queimava. A fumaça espessa tomava quase todo o local dificultando sua visão, mas Jared tinha uma noção de onde aquele homem estava, pois podia ouvir sua respiração áspera e ruidosa. Tateando a frente, ele tocou no corpo dele. Com muito esforço Jared conseguiu se arrastar para mais perto e se ajoelhou ao seu lado. Os olhos verdes do homem estavam semifechados e seus lábios se abriam num sorriso triste.
– Você não vai morrer! – Jared disse com firmeza. – Eu não vou deixar.
As mãos do homem pressionavam debilmente uma ferida em sua barriga. O sangue abundante vazava por entre os dedos e escorria denso por do seu abdômen e ia se derramar no chão onde havia formado uma poça. Até Jared que não era médico sabia que aquilo era um mau sinal.
– Você vai ficar bem. – Jared disse começando a pressionar a ferida. – Você vai ficar bem.
– Não vou. – O homem disse com voz fraca. – Saia daqui enquanto é tempo.
– Não. – As lágrimas escorriam pelo rosto de Jared. – Eu vou te salvar.
– Jared... – O homem segurou as mãos de Jared e as afastou de seu ferimento. – Tudo bem. – Ele sorriu. – Você já me salvou.
As mãos do homem perderam completamente a pouca força que tinham e seu sorriso se desfez lentamente. A luz dos seus olhos se apagou e o verde outrora límpido se tornou opaco. Jared ficou atordoado por um instante. Não compreendeu imediatamente o todo. Seu cérebro mandava uma mensagem que seu peito não queria aceitar. Mas, enfim, a certeza de que o homem estava morto lhe acertou como uma flecha. O desespero lhe consumiu e ele gritou cheio de dor:
– Nããão!
II
O peito de Jared subia e descia numa velocidade vertiginosa. Sua respiração ruidosa preenchia todo o quarto. A mulher ao seu lado na cama havia se sentado assim que o ouviu gritar. Mesmo sabendo que ela estava ali, Jared se sentia sozinho e desesperado. Como se a morte que presenciara em seu sonho fosse a realidade e a mulher na cama e o quarto escuro fossem uma ilusão.
– Amor, foi só um sonho. – A mulher o abraçou. – Não é real... Ainda não.
– Eu sei. – Jared disse se virando para beijá-la na testa. – Eu sei.
Jared saiu da cama e foi até o banheiro onde lavou o rosto com água fria. Depois ele se olhou no espelho e viu um homem com uma terrível expressão de angustia. Desde criança Jared percebera que era diferente. As crianças de sua idade sonhavam muitas coisas, mas apenas os sonhos de Jared se realizavam. Uma vez ele sonhou que o cachorrinho seria atropelado e chorando relatou seu sonho à mãe. Ela o acalmou e disse para ele não se preocupar, pois tudo não passava de um sonho. Poucas horas depois o cachorrinho fora atropelado exatamente da forma que Jared vira em seu sonho. Desde então ele se deu conta de que era um vidente.
Se Jared Padalecki fosse o filho de um casal urbano ou mesmo de pessoas menos simples, talvez tivesse se tornado um desses gurus que aparecem em Talkshows. Mas Jared era apenas o filho de um cowboy e de uma cozinheira de uma cidadezinha do Texas. Sendo assim, ele cresceu prevendo para o pai qual vaca ficaria prenha, qual bezerro se perderia no pasto, qual cavalo quebraria a pata. Seu talento, embora fosse um segredo de família, fez com que seu pai ascendesse de simples cowboy a capataz. Quando Jared terminou o colegial, Jim Beaver, o dono da Beaver's Farm, que era onde os Padalecki trabalhavam há duas gerações, decidiu bancar seus estudos. Então cinco anos depois, Jared voltou à fazenda com seu diploma de administração e passou a tomar a frente dos negócios de Beaver. Seus irmãos se formaram em outras áreas e partiram. Sua mãe morreu de uma complicação numa cirurgia de rim e seu pai morreu ao cair de um cavalo. Todos esses desfechos na vida de sua família foram previstos por Jared, mas mesmo assim ele não pôde impedi-los. Mesmo com seu enorme talento, Jared previu, mas também não pôde impedir que o filho de Beaver, a quem ele nomeara como procurador, vendesse a fazenda e sumisse com o dinheiro da venda. Jared bem que alertou Beaver, até revelou seu segredo, mas o homem não acreditou nele e quando percebeu que seu administrador falava a verdade, já era tarde demais.
Para Jared era um verdadeiro tormento sonhar com o futuro e não poder alterá-lo. Várias vezes ele tentou ser capaz de mudar o que estava por vir, mas nunca conseguiu. Porém, muitas vezes, ele ficava ansioso para que o futuro chegasse e assim ele pudesse viver aquilo que o esperava. Foi assim com Genevieve Cortese, a mulher que se tornou sua esposa e lhe deu um filho. Jared a amava. Não havia como não amar, mas ele sabia que o futuro não lhe reservava uma longa vida ao lado dela e da criança. Um ano após conhecer a mulher, Jared começou a sonhar com um homem. Sonhava com coisas simples como os dois andando a cavalo juntos ou conversando numa cozinha que ele não conhecia ou mesmo acordando na mesma cama. Jared contou seus sonhos à esposa. Só não contou as partes em que ele e o homem pareciam ser mais íntimos do que conviria ser. Genevieve não viu o menor problema com esses sonhos, mas quando Jared começou a sonhar com a morte do homem, até mesmo ela se preocupou. Há menos de seis meses, Jared sonhava todas as noites com a morte do homem e isso lhe afligia a alma. Mesmo sem conhecer o homem pessoalmente, Jared já se sentia muito próximo a ele.
Como sempre fazia, desde que os sonhos de morte começaram, Jared saiu de casa ainda de madrugada, foi até o estábulo, selou e montou seu cavalo e saiu para o pasto. A sensação da brisa fria em seu rosto e o ar molhado e saboroso a capim lhe transmitiam calma. Só de pensar que a sua vida ali chegara ao fim, fazia o peito de Jared se comprimir. Beaver tinha suas economias e iria usá-las para comprar uma pequena fazenda no Kansas. Como o lugar seria muito pequeno e sem lucro tão próximo, Beaver não poderia contratar Jared, mas lhe conseguira um emprego como capataz na fazenda de um amigo. Aquilo não era o melhor que Jared conseguira, mas era o que estava disposto a fazer. Quando Jared voltou para casa já era claro e Genevieve o aguardava na varanda com o filho nos braços. Jared sorriu. Como poderia sequer cogitar a ideia de abandonar Gen e o filho para se envolver com um homem? Jared foi até ela e a beijou.
– Eu fiz aquelas panquecas que você adora. – Ela informou.
– Que bom! Estou morrendo de fome!
Os dois entraram em casa e se sentaram a mesa da cozinha para tomarem o café. Jared assistiu deliciado a mulher alimentar o filho enquanto ele batia palminhas e gritava de felicidade quando a mãe fazia a comida de aviãozinho. Thomas era lindo e doce, exatamente como a mãe.
– A Dann ligou de novo. – Gen informou. – Ela disse que aquela vaga como administrador na fazenda do amigo dela ainda está de pé.
– Gen, já conversamos sobre isso. – Jared derramou calda de chocolate sobre suas panquecas. Lembrava-se claramente de estar à mesa de café da manhã ao lado do homem enquanto lia um jornal de Santa Fé. O amigo de Dann era dono de uma fazenda nessa cidade, por isso Jared acreditava que encontraria o homem de seus sonhos lá.
– Não. Você falou e nem quis escutar o meu lado. – Gen disse enquanto limpava o rosto de Thomas. – O salário que o amigo dela está oferecendo é ainda maior do que o que Beaver te pagava. Mas ao invés de aceitar esse emprego você vai aceitar ser capataz para receber um terço do que recebia antes? Isso é egoísmo, Jay.
– Não é egoísmo. – Jared negou. – Estou fazendo isso para que a nossa família continue junta.
– Você está fazendo isso por que não quer se encontrar com "o homem". – Era assim que Genevieve se referia ao homem que aparecia nos sonhos de Jared. – Jared, quantas vezes você tentou impedir que os seus sonhos se realizassem? Centenas de vezes. Mas obteve sucesso alguma vez? Não. Não adianta fugir, Jay. Se esse homem tiver que surgir na sua vida e morrer na sua frente, é isso o que acontecerá. Aceite.
– Gen, você não entende. – Jared levou as mãos ao rosto.
– Então explique. – Genevieve não entendia a atitude do marido. – Explique, amor.
– Tenho que ir à cidade. – Jared disse se levantando. – Não me espere para almoçar.
Jared se levantou, beijou o filho e saiu. Sabia que Gen não entendia seus motivos. Afinal nunca havia contado que ele e "o homem" se envolveriam de outra forma. Perguntou-se se Gen lhe entenderia se soubesse. Ainda estava relembrando dos sonhos com "o homem" quando voltava das compras na cidade. Já havia colocado tudo no pick-up, quando uma cigana o puxou pela mão.
– Deixe eu lhe dizer o que o destino lhe reserva. – Disse a mulher magra e quase sem dentes. Seus cabelos quase totalmente brancos e ralos estavam presos por um fino lenço e sua mão pouco mais que cadavérica segurava com força a mão do homem. Jay puxou sua mão e tirou do bolso algumas notas que jogou para ela.
– Isso é para não me incomodar mais. – Ele disse se afastando.
– Mas o senhor não quer saber o que eu vi? – A cigana perguntou enquanto Jared se afastava.
– Não. – Ele respondeu sem se voltar. Jared já estava entrando no pick-up quando a ouviu gritar.
– Quem foge do destino acaba sendo arrastado por ele.
Jared a ignorou e seguiu em frente. Não importava o que a cigana dissesse. Jared não presenciara a morte do pai e muito menos a da mãe, mas sofrera horrores por saber que estaria no enterro deles. Agora ver alguém morrer e não ser capaz de impedir era outra coisa. Ele não faria isso. Ele não se encontraria com "o homem".
III
Jim Beaver e Jared estavam montados conferindo pela última vez o trabalho dos cowboys. Os homens juntavam o gado do pasto para levá-los de volta ao cercado. No dia seguinte o novo dono da fazenda chegaria.
– Quatro gerações. – Jim disse. – Meu bisavô criou essa fazenda, meu avô a expandiu, meu pai a modernizou e eu consegui perdê-la.
– Não foi sua culpa, Jim. – Jared disse.
– Foi sim, Jay. – O homem disse com tristeza. – Os filhos nada mais são do que aquilo que os pais criaram e eu criei um pilantra capaz de roubar o próprio pai.
–... – Jared baixou a cabeça. Nunca gostara do filho de Jim. Sempre tivera um mau pressentimento sobre ele. Pressentimento que ficou mais forte com os sonhos e se confirmou com a venda da fazenda.
– Se eu pudesse, te manteria aqui, mas o novo dono já tem um administrador.
– Eu sei. – Jared disse.
– O meu amigo do Arizona... Ele cuidará bem de você, mas também já tem um administrador. – Jim baixou a cabeça. – Quando paguei seus estudos, não esperava que você se tornasse um capataz.
– Jim...
– Escute, rapaz. – Jim levantou a cabeça e lhe olhou feio. – Eu não paguei sua faculdade só para você me ajudar aqui. Eu queria que você tivesse um futuro, sabe? Queria que você tivesse opções. Mas você escolheu trabalhar para mim, mesmo quando eu disse que não precisava. Eu sou muito grato por isso. É por essa razão que vou lhe dar mais uma vez esse conselho: vá para Santa Fé trabalhar para o amigo da amiga da Gen. – Jared bufou. – Você tem um filho agora, rapaz. Quanto tempo acha que pode ficar sem se preocupar com o futuro? O salário de Santa Fé é maior que o de Arizona. Por seu filho, vá para Santa Fé.
–Não, Jim. – Jared foi firme. – Para lá eu não vou.
Jared galopou para longe do homem que foi como um segundo pai para ele. Jim agora acreditava que seus sonhos prediziam o futuro, mas mesmo assim não entendia como era para ele viver antecipadamente a morte de "o homem". Mesmo tentando mudar seu futuro, Jared relembrou as palavras da cigana: "Quem foge do destino acaba sendo arrastado por ele."
IV
Jared colocou a última caixa na carroceria da caminhonete. Gen estava no banco do carona e Thomas estava na cadeirinha no banco de trás. Jared lançou um último olhar para a casinha em que nascera e vivera a vida inteira. Aquele era um doloroso adeus, pois Jared não queria ir, mas era preciso. Ele entrou no carro, beijou Gen, lançou um olhar carinhoso para o filho e deu partida. Era hora de seguir em frente. Estavam na estrada há menos de uma hora quando Gen tirou seu cinto de segurança e se inclinou no banco da frente para a cadeirinha do bebê no banco de trás.
– O que houve, Gen? – Jared perguntou.
– O cinto da cadeirinha não está encaixado direito... – Ela disse ficando por cima do banco e se inclinando para ajustar o cinto do bebê.
– Quer que eu pare o carro? – Jared perguntou.
– Não precisa. – Ela disse. – É rapidinho...
Antes que pudesse sequer protestar, Jared viu um carro logo a sua frente derrapar e rodar na pista. Ele rodou o volante com toda a velocidade e se desviou do carro, mas isso lhe fez rodar também. Jared se desesperou. Gen e o bebê estavam sem cinto. Se tombassem a vida deles estaria em risco. Com uma precisão que julgava não possuir, Jared conseguiu parar o carro, mas ele ficou na horizontal no meio da pista. Jared olhou pela janela do seu lado e viu os carros que vinham em direção contraria freando para não atingi-los, mas quando se voltou para a janela do banco do passageiro, seu coração quase parou. Um caminhão veio rápido em direção ao seu carro e acertou em cheio o lado do passageiro onde Gen e o pequeno Thomas estavam. A última coisa que Jared se lembrou de ter visto foi o rosto apavorado de Genevieve.
V
Jared sentia dores em todas as partes do seu corpo. Sua cabeça doía, mas mesmo assim, ele sabia exatamente o que havia acontecido e imaginava o desenrolar dos fatos. Quando abriu os olhos não se surpreendeu ao ver Jim ali.
– Jay, graças a Deus! – O homem disse. – Vou avisar ao médico que você acordou...
– Ainda não. – Jared disse. – Jim, me conte. O que aconteceu com Gen e com o Thomas?
– Jay, não pense nisso agora... – Jim disse tentando mudar de assunto.
– Confirme o que eu já sei, Jim. – Jared pediu. Jim ficou meio sem jeito, mas cedeu.
– O Thomas morreu na hora. A Gen se foi antes de chegar ao hospital.
Jared fechou os olhos com força e as lágrimas jorraram como uma torrente. O choro alto que estava preso em sua garganta desde que ele recuperou a consciência irrompeu alto e sofrido. Jim segurou a sua mão e ficou ao seu lado até o pranto cessar. Quando, enfim, todo o choro se esvaiu, Jared respirou fundo e pediu.
– Faça um favor para mim, Jim.
– Qualquer coisa, rapaz.
– Ligue para Dannel Harris, amiga da Gen, e avise que eu aceito o emprego com o amigo dela. Jared disse quase sem emoção.
O destino havia mostrado que tinha poder suficiente e vontade o bastante para não deixá-lo fugir. Se ele tinha que ir a Santa Fé, conhecer "o homem", se envolver com ele e vê-lo morrer, então Jared o faria. Ele iria até o fim, até seu último sonho e depois morreria. Não queria mais viver.
VI
Três semanas depois.
Dann dirigia. O tempo todo ela olhava para ele como se esperasse que o viúvo da amiga fosse surtar a qualquer momento. Mesmo achando a atitude dela desnecessária, Jared não a repreendeu nem nada. Dann não precisava fazer o que estava fazendo. Quando lhe ofereceu um emprego o fizera pela amiga que agora estava morta. No momento, Dann não tinha nenhuma obrigação de continuar ajudando-o a conseguir um emprego que ele já havia recusado umas três vezes.
– Você vai gostar de lá, Jay. – Ela disse com um sorriso. – A Emerald's Farm é muito maior e mais produtiva que a fazenda do Beaver. Por isso que o salário oferecido é muito maior.
– Certo. – Jared tentou sorrir para ela.
– Chegamos. – Ela anunciou.
Os dois passaram pela porteira da fazenda e percorreram vários hectares de terra antes de chegarem à sede. Jared olhou de boca aberta a casa grande. A sede da fazenda de Beaver era enorme, mas a sede de Emerald era um colosso. A casa tinha três andares, cerca de vinte cômodos por andar e era construída em estilo colonial. Assim que Dann estacionou em frente à casa, Jared tirou o cinto e desceu. Estava olhando para a casa de fazenda mais fantástica que vira na vida quando viu um homem sair de lá. Ele era loiro, tinha os olhos verdes como esmeraldas e lábios carnudos e convidativos. Sua pele clara e seus cílios longos como os de garotas davam-lhe a aparência de alguém frágil, mas ele possuía a compleição de um verdadeiro cowboy. Quando seus olhos se encontraram, Jared teve certeza: aquele era "o homem".
