Se não houvesse montanhas! Se não houvesse paredes!
Se o sonho tecesse malhas e os braços colhessem redes!
Se a noite e o dia passassem como nuvens, sem cadeias,
e os instantes da memória fossem vento nas areias!
Se não houvesse saudade, solidão nem despedida...
Se a vida inteira não fosse, além de breve, perdida!
Eu não tinha cavalo de asas, que morreu sem ter pascigo
e em labirintos se movem os fantasmas que persigo.
Cecília Meireles - Se não houvesse montanhas
As Águas do Anduin
Prelúdio
HAVIA ESSE OÁSIS, PEQUENO E REFRESCANTE, perdido no deserto escaldador, sob as palmeiras que ao lado dele nasceram, um cavalo bufou, parando de beber a água por um instante e erguendo a cabeça com as orelhas apontadas para trás.
— O que foi, Bolië? - perguntou uma mulher, uma eldar, acariciando a crina do cavalo enquanto fitava o noroeste. O cavalo bateu a pata no chão, tornou a bufar e inquietou-se ainda mais. Naquele instante, uma flecha zuniu por sobre a cabeça da eldar, que, num pulo, montou no animal e atiçou-o para longe dali. - Corra, meu querido Bolië, corra como o vento!
E mais flechas adejaram por sobre sua cabeça, outras ainda passaram raspando-lhe os braços e pernas, mas a elfa, em seu cavalo extraordinário, foi distanciando-se do inimigo invisível com estúpida rapidez, acabando por refugiar-se ao pé de um rochedo, onde não acendeu fogueira nem dormiu, apesar de seu cansaço lhe causar náuseas. Permaneceu sentada, abraçada aos joelhos, relembrando como estava sua vida antes de ter sido separada dos seus.
— Estaremos partindo para Ithilien na manhã seguinte, Veänis, se desejas ir com teu esposo, acordes antes da aurora, caso contrário, partirei sem ti.
— Não desejo ir a Ithilien mais do que tu, meu senhor, então por que partes?
— Bem sabes que tudo por aqui está bem, e tenho a intenção de rever meus amigos.
— Podes fazê-lo no outono, quando o tempo estiver calmo. Não no verão, quando o calor é quase insuportável e as sombras dos velhos inimigos circulam por...
— Estarei partindo amanhã. Se julgas ser uma boa esposa, irás me acompanhar.
Veänis fitou o marido uma vez mais antes que ele deixasse o aposento, depois ela sentou na cadeira ao lado da cama, encarando o nada. Não queria partir, queria ficar com seu rei, queria poder servi-lo melhor do que seu marido o servia, mas era mulher e sendo isso, além de nora do rei, somente tinha serventia como último conforto, como consolo, porque ela era bela e sensível, era o porto de seu rei, como ele mesmo dizia. Mas o último encontro deles não havia sido bom, fora um desastre, na verdade, e como desastres não contidos, não havia remédio senão tomar rumo diferente porque a destruição era grande demais para dar início à reconstrução de suas vidas juntas. Fechou os olhos e foi como se a último encontro acontecesse naquele instante.
"O rei se aproximou de Veänis assim que os demais deixaram-na a sós, e fitou a nora por alguns instantes, teria sido consolada? Sempre fora ela a consoladora. Sempre fora ela a que passava energia a todos. Porém, vinha sentindo certa fraqueza nela nos últimos tempos.
— O que é que te preocupa, criança? - quis saber Thranduil. - Estás inquieta, bem vejo em teus olhos. Eles estão sempre vivazes e agora...
Ela sorriu, entreabriu os lábios e tentou falar, mas as palavras não lhe vieram. Então temeu por ser fraca e dar tal desgosto a seu rei.
— Não. Não penses que poderias causar-me qualquer aborrecimento - ele se aproximou. - Eu sei o que te incomoda e sei o que isso te causa, porque sobre mim tem o mesmo efeito.
— Não entenderias, senhor.
— Como não, criança? Achas que nada aprendi nessa vida?
Ela nada disse, tremeu com a aproximação dele.
— Falarei com meu filho.
— NÃO! - ela proibiu em voz alta e bastante agitada.
— O que está havendo? Que foi que ele lhe fez? - Thranduil indagou zangando-se com o filho.
— Meu senhor, não culpe o príncipe por me ver assim. Não é ele o causador de minha agonia.
— Se não é ele? Quem o é? Não, não me responda - disse erguendo a mão. - Sei que não há mais ninguém capaz disso. Legolas tem estado distante depois que o enviei à presença de Elrond e se juntou à Sociedade do Anel.
— Meu rei - ela murmurou e ajoelhou-se. Ele a seguiu, ajoelhando-se diante dela, ergueu-lhe o rosto e fitou aqueles negros e profundos olhos que dizia conhecer tão bem.
— Jamais a vi chorar - ele sussurrou surpreso.
— E não choro agora, meu senhor - por um instante apenas ela sustentou as lágrimas com toda força possível.
— Não, não chora por fora, criança, mas por dentro é só dissabor.
Veänis soltou uma alta exclamação e fitou o chão, mesmo sendo seu rosto suspenso pela mão forte de Thranduil.
— Que foi que ele te disse? Que foi que fez para desconcertar tão forte mulher?
— Não foi... não... O príncipe não...
— Pare de protegê-lo! - Thranduil falou com tom forte, irado, mas ainda com olhar compreensivo.
Com as pontas dos dedos Veänis tocou a mão de seu rei e foi um toque tão terno e repleto de emoção que ele entendeu seu significado no mesmo instante. Os dois sem encararam; ela manteve na face o ar grave, mas tentava perpassar confiança no que dizia, apesar de estar desmoronando por dentro; ele, completamente impressionado, tinha as feições ternas ainda, mas um meio sorriso lhe riscava os lábios.
Subitamente Veänis ergueu-se e pôs-se a correr escadaria abaixo, segurando a barra do vestido com as mãos. Alcançou o gramado e correu para o meio das árvores, tentando fazer-se perder de vista por Thranduil, mas o elfo era senhor de tudo aquilo, conhecia a floresta como a palma de sua mão, não havia quem o pudesse vencer em seu meio - e muitos não o poderiam vencer fora dali. Não tardou a alcançá-la, tomando-lhe a dianteira e postando-se no meio de seu caminho, o que a fez parar, e onde a prendeu pelos pulsos contra uma das centenárias árvores. Ela balançava incansavelmente a cabeça de um lado a outro, tentado negar qualquer que tivesse sido sua intenção. Thranduil a fitava complacente, tentando entender o que havia se passado.
— Por que foges de mim quando quero perceber a verdade em seus olhos? - ele perguntou.
— Se apreenderes a verdade estarei morta porque o desonro, meu rei.
— Que tu sabes de macular outra pessoa? Ou não sabes que a conheço desde a infância e sei o quão diferente estás nesses tempos?
— Sou o princípio de algo que jamais dará certo. Sou a escuridão que abocanha o sol.
Thranduil atou-lhe as mãos nas costas e recostou seu corpo sobre o dela, para prendê-la totalmente contra a árvore, deixando assim suas próprias mãos livres para fazê-la olhá-lo como queria. Seu hálito tocou a pele alva dela enquanto tentava descobrir se aquilo não passava de uma armação. Ela estremeceu e lhe disse:
— Meu rei, nada disso está certo. Por favor, deixe-me ir.
— Não! - ele foi autoritário. - Não até eu conhecer a verdade. Diga-me!
— Que desejas que eu lhe diga?
Os dois se encararam novamente, Veänis desviou o olhar em seguida, mas Thranduil segurou-lhe o rosto com força para fazê-la encará-lo. Ele sorriu, era um sorriso estranho para Veänis, ela jamais vira seu rei sorrir daquela forma.
— Diga-me se o amas. Não pense numa resposta, apenas responda com teu coração.
— Ele é meu senhor, é meu marido - ela pareceu indignada, mas ao mesmo tempo envergonhada.
— Não foi o que lhe pedi.
Ela baixou os olhos e Thranduil ergueu seu queixo ainda mais, machucando-a para chamar-lhe a atenção. Ela ofegava, mas não fazia nenhuma objeção ao modo como ele agia.
— Não vê que estou machucando-te? Por que não respondes o que te peço?
— Porque esta proximidade com o senhor tira-me todas as palavras, faz-me perder os pensamentos, eleva-me acima de mim mesma...
Thranduil molhou os lábios com a língua e depois respirou fundo, sedento pela verdade que em seu peito rugia. Sentiu o corpo de Veänis parar de tremer e a força dos braços dela se render. Com as defesas dela completamente baixadas, ele aproximou os lábios dos rosados lábios dela e os tocou com urgência e ambição. Ouviu um gemido curto e baixo, um anseio. Deleitado, soltou-lhe o corpo para que ela libertasse as mãos, tornou a comprimir-lhe o corpo contra a árvore no intuito de impedir que fugisse, e meteu os dedos naqueles sedosos e lisos cabelos negros, perdendo as estribeiras no consentimento dela."
Veänis levantou antes do alvorecer da manhã seguinte com o pensamento fixo na viagem. Tentava apagar as lembranças de Greenwood enquanto rumava para seu inevitável destino. Sim, era melhor partir antes de provocar a ira da casa de Thranduil, sabia quão sobrecarregado era ele e não havia de precisar uma mulher o denegrindo diante dos outros senhores e servos. Cobriu a cabeça com o capuz e deixou o quarto perfumado para ganhar os primeiros ares da aurora.
— Irá partir, é o que vejo - a voz de Thranduil fez a eldar parar subitamente.
— Meu rei - ela girou o corpo na direção dele e fez uma vênia. - Ithilien parece um bom lugar...
— Isto quer dizer que não mais tornará à Greenwood?
— É melhor assim, por algum tempo - ela murmurou com a cabeça baixa, ainda não deixara seus olhos se entregarem aos de Thranduil.
— Para quem? - o rei quis saber. - Para ti, certamente, porque poderá ter teu marido somente aos teus cuidados - finalizou com certa amargura.
— Devo segui-lo porque ele parte para ficar longo tempo longe e não posso deixá-lo, é meu senhor...
— Afinal - Thranduil completou pontuando. Ela ergueu os olhos então e viu que os cinzentos olhos do rei estavam preocupados.
— Tentarei fazer com que Legolas retorne o mais breve possível, meu rei, para que não fique longe do senhor por muito tempo.
— Eu sei que tentará, Arwen Ereb*, mas não sei se conquistará teu intento. Conheço meu filho, sei do que ele precisa... Dessa forma, permita-me que converse com ele, pedirei que deixe a senhora aqui...
— Não, meu rei. Não posso permanecer em tuas terras - murmurou encarando-o com coragem, mas já com olhos marejados novamente. Ele estendeu a mão para secar-lhe as lágrimas, mas ela se esquivou. - Sou ruína ao meu amor.
Thranduil comprimiu o maxilar, seus dentes rangeram e suas narinas se abriram. Estava furioso e deixou isso claro quando deu as costas a ela sem lhe dizer adeus. Veänis foi juntar-se à caravana, mas encontrou-a sem o líder, pois ele tinha sido arrastado para longe pelo rei, onde recebia conselhos sobre a viagem.
Legolas ouvia com a atenção longe dali, exprimia respostas monossilábicas que tanto poderiam significar sim quanto não, mas o pai continuava a lhe listar os cuidados e as precauções. Num ponto da conversa, porém, veio a advertência: que ele, Legolas, tomasse conta de qualquer vida na caravana, porque Thranduil não desejava realizar funerais prematuros. Falava com veemência, o rei, e se alterou quando o filho não lhe deu a devida atenção.
— É melhor que tenhas entendido o que te disse, caso contrário te seguirei até Ithilien e tirar-te-ei tudo o que tens de mais precioso. - Então os dois fitaram a caravana, e dentre todos quem mais se destacava era Veänis, com seu vestido verde-esmeralda, de capuz e detalhes dourados.
— O senhor não confia em seu filho, meu rei?
— Confio. Mas tua decisão de partir com tantos num tempo como este não é sábia. Há que haver tempo melhor para a partida, talvez no outono...
— Poupe seu fôlego, meu rei, que já tentaram me persuadir e não foram convincentes.
Agora, encolhida entre as rochas, o cavalo dormindo de pé ao seu lado não lhe dava aconchego, e Veänis tremia do frio de seus pensamentos. Não tinha para onde fugir porque voltar a faria encontrar quem quer que a estivesse perseguindo, e não queria ver as fuças dos homens de Rhûn, nem mesmo a dos orcs, que os haviam atacado a caminho de Ithilien. Tinham sido cercados, as Montanhas Sombrias estavam cheias de orc e orientais. Os aterrorizantes wargs a haviam caçado ao longo do Anduin e ela agora já não sabia mais onde estava.
Nunca fora boa navegadora, perdia-se facilmente na floresta de Greenwood, mas lá, havia sempre Legolas a lhe salvar dos apuros. Agora, porém, haviam sido separados, e Veänis não fazia idéia se ele sobrevivera. Todos os que fugiram ao seu lado, pelo Rio Anduin, na intenção de despistar as bestas, foram mortos violentamente, mas Bolië, seu belo cavalo baio, deveria receber todo mérito: ele pressentira o perigo e cavalgara rapidamente, afastando-se com inigualável velocidade dos wargs.
Durante toda a velada noite ouvira gritos, não distinguia se eram orcs ou homens, nem se eram berreiros de guerra ou cânticos de vitória, mas eles a arrepiavam, a transtornavam, e ela virou a noite acuada, lembrando-se dos ataques à antiga Mirkwood.
Ao primeiro tom do amanhecer, Veänis montou em Bolië e cavalgou mais para sudeste, entrando nas Terras Ermas. Seu segundo grande erro.
Nota do autor:
* Senhora Solitária
¹ Aqui começa uma nova caminhada. Eu espero que ela dure muito tempo e que dela eu desfrute tanto quanto as pessoas que me incentivaram a escrever.
² Haveria que existir a música tema dessa fic, porque sem música eu não sou nada! Chama-se TURNING, da SUZANNE CIANI.
³ Partes em NEGRITO e ITÁLICO são as lembranças e episódios passados.
