Londres Vitoriana. Séc. XIX.

Com cerca de 4 milhões de habitantes, uma das maiores cidades do mundo. O desenvolvimento dos meios de transporte atingiam todo o país, com estradas de ferro interligando o campo e as grandes cidades, originando um grande êxodo rural. Londres era o centro para onde era atraído todo o tipo de gente, de aventureiros a desocupados, artistas a escritores, ansiando pela grandiosidade da cidade. A grande concentração da população alcançava níveis insuportáveis, acabando por prejudicar a classe trabalhadora, cada vez mais explorada, que era obrigada a viver miseravelmente em cortiços minúsculos. O número de mendigos e desempregados aumentavam. Os crimes tornavam-se comuns.

Enquanto que de um lado a classe alta se divertia nos clubes e banhos turcos, comuns na altura; à classe trabalhadora só lhe restava a zona escura da cidade, reunindo todos os vícios, do jogo à prostituição e à droga.

O ruído e os odores, o nevoeiro amarelado e penetrante, fonte de todos os medos e, na realidade, véu para todos os crimes, disfarce possível para todas as violências. Pelo meio da cidade, as águas do Tamisa correm…

–-

"Lírios…suas flores preferidas…paz à sua alma querido irmão"

Um ramo de lírios caía nas gélidas águas do rio Tamisa…

– Monsieur… temos de partir. O cocheiro espera-nos.

– Oui.

Os dois homens entraram no coche em silêncio. Poucos segundos depois, um som de chicote ecoou pelas ruas enevoadas, e os cavalos começaram a andar. Olhando pela janela, um homem ruivo observava a neve cair preguiçosamente sobre o caminho de pedra. Os olhos repletos de tristeza observaram uma ultima vez o as águas gélidas onde tinha visto o corpo do irmão pela última vez.

–-

Em Londres a neve caía abundantemente deixando um extenso lençol branco pelas ruas praticamente desertas àquela hora da manhã. Se não fosse o seu hábito de acordar absurdamente cedo, nunca teria a oportunidade de provar daquele silêncio puro ao raiar do dia. O seu momento de tranquilidade, antes mesmo de começar mais um dia atormentado pelos negócios legados pelos pais.

Mas naquele dia essa mesma tranquilidade começava abalada pela chegada triunfante de um amigo de longa data. De aparecimentos pontuais, por certo, mas próximo e fiável.

My lord, Monsieur Lenoir acabou de chegar.

– Obrigada Mu. - respondeu calmamente, afastando-se da janela - Prepare um chá para nós por favor.

– Com certeza my lord.

O jovem de cabelos lavanda saiu disciplinarmente da sala e apressou-se a atravessar os corredor sombrio que o levaria à porta. Aproximou-se da entrada onde o recém-chegado parecia sacudir alguns flocos de neve do corpo, e deparou-se com uma figura alta e esbelta, os poucos flocos brancos que permaneciam emaranhados no cabelo contrastavam com a cor acobreada dos fios sedosos.

"Ruivo" constatou espantado.

Prontamente aproximou-se para ajudá-lo a tirar o casaco preto comprido, e percebeu rapidamente que não era apenas a escuridão do casaco que contrastava com a fisionomia da personagem. Toda a sua roupa era negra, como se de luto se encontrasse. Discretamente, observou o homem que encaminhava para o interior: era belo, sem sombra de dúvida. De uma beleza única no seu estilo, quase sombria e taciturna que chamava a atenção de qualquer pessoa. Os olhos de um castanho acobreado condiziam perfeitamente com o cabelo de fogo. Mas ao contrário da cor quente, o seu olhar era frio. Gélido até.

"Como consegue ter um olhar tão gélido com olhos da cor de fogo?" - pensou para si, fazendo uma leve vénia - Monsieur, my lord espera-o na biblioteca. Queira acompanhar-me por favor.

O ruivo nada disse. Limitou-se a acompanhar o mordomo através dos espaços, silencioso, o andar decidido. Mas se do seu lado não parecia dar grande importância à recepção, os olhos atentos não perderam a oportunidade de avaliar o homem que lhe indicava o caminho. Um perfeito espécimen de uma beleza exótica. Os longos cabelos de um lavanda tão inusitado... de todas as suas viagens, nunca tinha estado na presença de alguém tão curioso como aquele homem. Seus olhos eram de um magnífico verde, expressivos, que transmitiam conforto e serenidade. Por outro lado, ao contrário desses mesmos olhos, da sua postura emanava uma estranha aura de tristeza e profundo remorso... não se lembrava daquele mordomo da ultima vez que tinha visitado a mansão Ascott. De onde aquele homem tinha aparecido tão repentinamente?

De tal forma absorto em seus pensamentos, não deu conta de que o caminho tinha chegado ao fim e que tinham finalmente chegado ao destino.

My lord espera-o. Queira fazer o favor de entrar Monsieur.

Quando a porta se abriu, o ruivo provou de uma deliciosa sensação de conforto e reconhecimento. A sua sala preferida daquela mansão. Uma sala cheia de estantes de madeira ricamente ornamentadas, livros de todos os tipos e de diversos tamanhos dispostos cuidadosamente por género e por ordem alfabética completavam a decoração. De frente par a porta nascia uma lareira onde as chamas ardiam, aquecendo o ambiente, deixando um delicioso odor a madeira queimada. Duas poltronas de aveludadas encontravam-se comodamente enquadradas perto do fogo, uma virada para a outra. Dessa forma era possível apreciar o calor que emanava da lareira e partilhar em simultâneo uma conversa agradável com a pessoa à sua frente. Era incrível como, depois de tanto tempo de ausência, aquela sala ainda o surpreendia com a sua imponência.

Após alguns minutos naquela contemplação muda, o ruivo percebeu a presença de outra pessoa na biblioteca. Uma presença bem conhecida e imperturbável, que efectuava a tarefa de colocar um livro no seu devido lugar.

– Vejo que esta biblioteca continua com o mesmo impacto que tinha em você durante a nossa infância! - a voz calma e serena parecia ligeiramente abafada pelo ambiente do espaço - Você nem notou a minha presença!

No rosto do ruivo desenhou-se um breve sorriso. Tinha passado muito tempo desde a última vez que vira o seu grande amigo - um ano para ser preciso.

– Esta biblioteca lembra-me bons momentos. Uns dos melhores da minha vida - respondeu à medida que se aproximava da lareira - Estou feliz por voltar a vê-lo mon ami.

Durante breves segundos observou o companheiro que continuava absorto na sua tarefa, concluindo o quanto ele continuava na mesma. O mesmo porte, a mesma finesse que lhe era característica... a mesma simplicidade e perfeição nos gestos que transmitiam a ideia errónea de uma facilidade adquirida.

– Queiram desculpar-me.

O mordomo que tinha permanecido silencioso durante aquele encontro, voltou a manifestar-se fechando a porta atrás de si enquanto se retirava. Vendo-se sozinho com o companheiro, o ruivo permitiu-se finalmente relaxar um pouco e sentou-se no cadeirão tão convidativo.

– Continua com suas manias da organização. - um ligeiro tom jocoso transpareceu na sua fala - Há coisas que nunca mudam não é verdade?

– Concordo. Mas pelo que me lembro, não sou o único que padeço desse mal, estou errado Monsieur Camus? – recebeu como resposta à medida que o outro se aproximava – Estou realmente contente de o rever cher ami! Fazia algum tempo que não tinha a honra da sua visita!

– Um ano. - respondeu num longo suspiro - As obrigações familiares em França não me permitem simplesmente vir a Londres quando me apetece.

– Um ano, realmente. Você vem sempre nesta época do ano, não é mesmo? - à medida que se sentava à sua frente, o anfitrião encarava-o com aquele olhar azul celeste repleto de reprovação. Sabia perfeitamente o que ele ia dizer, todos os anos era o mesmo ritual... mas talvez um dia aquelas palavras surtissem o efeito desejado - Se me permite, tenho a certeza que o seu irmão não ia aprovar essa sua atitude. Isaak morreu, Camus, à alguns anos já, assim como o tempo de luto. Vir todos os anos ao local e na data em que ele desapareceu não o vai trazer de volta. Viver com os fantasmas do passado nunca fez bem a ninguém. Deixe-os para trás e continue o seu caminho.

Camus deixou escapar um longo suspiro pesado, sendo mais uma vez confrontado com a dura realidade. Ele tinha razão, sabia que tinha... e aquela franqueza e frieza dos factos que tinham sido expostos pelo amigo deixavam-no mais consciente de tudo. Mas...

– Voltar todos os anos ao mesmo local é uma forma de não o esquecer - respondeu simplesmente - O sentimento de culpa é algo que me persegue. Se tivesse cá no dia em tudo aconteceu, as coisas podiam ter acabado de forma diferente!

– A culpa não é sua Camus! Chega desse complexo ridículo de culpa! Você nunca esquecerá seu irmão, isso é um facto do qual ninguém o vai impedir, mas fazer todos os anos esta viagem a Londres pela data da sua morte não mudará nada! Muito pelo contrário, só o fará sofrer!

– Eu sei disso tudo, apenas preciso de mais algum tempo para assimilar. - Camus massajou as têmporas num sinal de desconforto, sabendo que se partisse do amigo, aquela conversa podia-se prolongar pela noite dentro - Se não se importa, gostaria de mudar de assunto. Como deve calcular não é um tema adequado depois de dias de viagem. Os transportes estão a cada dia piores... conte-me antes como estão as coisas pela velha Londres.

– Hum... continuam serenas e tediosas como sempre. Entre festas, óperas e teatros. Tentando uma integração forçada numa sociedade moderna hipócrita e invejosa.

Camus sorriu e encarou-o divertido, reconhecendo os humores típicos do companheiro - Continua com os mesmos pensamentos revolucionistas! Os anos passam mas esse seu feitio continua imaculado!

– Realidade, meu caro amigo. A mais pura e crua realidade. Só reconheço que a sociedade onde vivemos é baseada em mentiras e calúnias, aceito o que os outros se recusam sequer a ver. O ser humano faz de tudo para subir na sociedade.

– Não generalize... - Camus levantou a mão decidido, ao perceber que o companheiro se aprontava a responder - É um tema perigoso, este da política... podemos ficar aqui horas a discutir sobre o assunto, e neste momento estou demasiado cansado para conversas filosóficas sobre politica e hipocrisia social.

– Tem razão - dando-se por vencido, anuiu - é realmente uma viagem cansativa. Antecipando a sua chegada fiz preparar o quarto do costume. Espero que esteja do seu agrado e que desta vez decida ficar mais tempo do que de anos anteriores!

Ouviram-se duas batidas na porta antes que Camus tivesse tempo de agradecer, e de novo a figura de cabelos lavanda entrou na biblioteca. Aproximou-se com uma bandeja de prata onde pousavam duas chávenas e um bule fumegante, deixando um delicioso odor de chá impregnando lentamente o ambiente. Pousou o conjunto numa mesinha de canto e virou-se para sair. No caminho de regresso, procurou discretamente os olhos do amo do qual recebeu um sorriso aprovador e fechou a porta à sua passagem.

Apesar da subtileza do acto, esta troca de olhares não passou despercebido ao francês.

– Gostaria de ficar umas semanas - adiantou sorrindo, cortando rapidamente o efeito meloso que os últimos segundos tinham deixado - Preciso de umas férias!

– Pode ficar o tempo que precisar, é um prazer tê-lo por tanto tempo! - como era de esperar, o companheiro tinha retomado rapidamente a compostura - Finalmente teremos tempo de recordar os velhos tempos!

– ...não tão velhos quanto isso!

– Verdade.. mas muita água correu... Por vezes esqueço-me que ainda só tenho vinte anos. A viagem à Índia abriu-me os olhos e fez-me perceber a mesquinhez da sociedade ocidental onde vivemos.

– Você não é o mesmo desde que voltou de lá. Tornou-se uma pessoa mais equilibrada, mais completa - Camus manifestou-se, lançando um olhar cúmplice ao seu interlocutor - apesar de achar que esse seu equilíbrio actual não é simplesmente fruto dessa sua viagem!

O outro deixou-se rir, divertido com a insinuação - Tem razão. Vejo que nada escapa a esses seus olhos de lince... realmente encontrei uma razão mais forte para sobreviver neste mundo.

– Terá essa razão uma ligação com uma certa pessoa que acabou de sair desta sala?

A única resposta que recebeu foi um silêncio consentido e um sorriso suspeito dos lábios finos. Nada precisava ser dito, pois os anos de convívio mútuo eram suficientes para se entenderem. Um gesto dizia mais que muitas palavras, mesmo que esse gesto não passasse de um silêncio no momento certo. Fitaram-se por alguns segundos, mas o olhar cansado de Camus não passou despercebido ao anfitrião.

Vous paraissez fatigué mon ami. Vous devriez vous reposer! - voz leve do anfitrião cortou o silêncio num francês invejável, limpo de qualquer anglicisto. (n/a: "Parece cansado meu amigo. Deveria descansar")

Oui, si vous le permettez, je vais me reposer quelques instants! - a resposta veio prontamente, tanto em palavras como em acção. Camus levantou-se, vendo que o companheiro o acompanhara. (n/a: "Sim, se me permite, vou descansar um pouco")

Faites comme chez vous ! (n/a: "Faça como em sua casa")

Acompanhado até à porta, Camus reprimiu alguns bocejos de cansaço, e surpreendeu-se pela prontidão com que o mordomo se tinha apresentado de novo. Como se soubesse o momento certeiro para aparecer.

– Mu, acompanhe o nosso hóspede até ao seu quarto. Ele precisa de repouso.

– Sim my lord.

Após uma breve vénia, Mu indicou novamente o caminho, esperando ser seguido pelo francês. Mas no começo da enorme escadaria, o ruivo estagnou e voltou-se para o anfitrião que os observava no átrio principal. Deparou-se com 2 magníficas orbes azuis, límpidas como a água. Sempre adorara os olhos daquele homem. A paz e a serenidade que emanavam deles acalmavam qualquer alma atormentada pela tristeza.

Merci Shaka! (n/a: "Obrigado Shaka!")

Il n'y a pas de quoi, mon ami! (n/a: "Não tem de quê, meu amigo")