Esta fanfic é feita em parceria com Rosenrot , como no ff. net não tem a opção de co-autoria, infelizmente todas as fics são postadas com o meu perfil.

Disclaimer - Aviso Legal
Saint Seiya (Os cavaleiros do Zodíaco) e todos os seus personagens pertencem a Masami Kurumada e a Toei e tem todos os seus direitos reservados

Nota das autoras:

Fic escrita por Mim e pela Rosenrot monamu inspirada em um vídeo viral de dois rapazes tocando numa estação.

A arte da capa foi feita por Rosenrot especialmente para essa fic, e terão mais.

Quem quiser ver as artes grandes(porque sei que aqui no ff . net nao aparece bem) entrem no tumblr dela (rosenrotstuff) ou procure nosso grupo no face: fics trio ternura.

Lembrando que essa fic tbm foi postada no social spirit e no Nyah ;)

Sinopse:

Na emblemática Grand Central Terminal, em Nova York, um encontro inesperado uniria dois jovens com realidades completamente distintas, mas uma paixão em comum, a música. Um piano público compartilhado entre um pianista amador e um promissor estudante de cinema será o ponto de partida de uma paixão que enfrentará o preconceito e ensinará muitos a enxergar o mundo com novos olhos.

O Pianista

E foi então que ele ouviu o piano.

Passava um pouco das quatro da tarde e excepcionalmente naquele dia estava sem seus fiéis fones de ouvido, porta vozes das canções que lhe faziam companhia desde a hora em que deixava a casa, logo no primeiro raiar da aurora, para serem dispensados somente ao final do dia quando os livros tomavam o lugar das canções noite adentro lhe fazendo companhia.

Exatamente naquele dia ele esquecera em casa os fones de ouvido.

Naquele dia também iniciava um estágio na função de redator júnior em uma das produtoras de TV mais influentes de Nova York, com sede na 42 Street da emblemática Times Square. Uma das vantagens era o horário diferenciado, o qual lhe permitia voltar mais cedo para casa.

Faltando ainda uma hora e meia para o horário do rush, Mu, um jovem de 20 anos, corpo esbelto e atlético, pele muito clara e longos cabelos tingidos em um tom exótico de lavanda — há muito nutria uma personalidade forte e exuberante que o impelia a se diferenciar do que considerava comum — descia as escadas da icônica Grand Central–42nd Street, uma joia arquitetônica e histórica da cidade de Nova York por onde passam em média milhares de usuários todos os dias.

Não tinha pressa alguma, visto que naquele horário o metrô ainda operava com movimento razoável de pessoas e talvez até conseguisse fazer o trajeto de volta para casa em Morningside Heights, bairro composto em sua maioria por estudantes da Universidade de Columbia onde cursava cinema, sentado confortavelmente em um assento macio.

Caminhava distraído enquanto atravessava o imenso hall do terminal, sempre olhando para as constelações do céu noturno pintadas na cobertura da antiga construção, as quais lhe exerciam fascínio inexplicável. As vezes sentia como se tivesse a cabeça nas nuvens, sempre a divagar, mas o trabalho de Teoria da Comunicação que teria que finalizar ainda naquela noite mantinha seus pés ancorados no chão, na realidade.

Seguia já para as escadas que levavam às plataformas de embarque quando de repente seus pensamentos foram interrompidos pelo som das notas do piano.

Sem se dar conta reduziu os passos a medida em que a bela melodia, que num bailar invisível e perfeitamente harmônico inundava toda a estação, entrava por seus ouvidos apurados, a reconhecendo de imediato.

Una Matina, do pianista e compositor italiano Ludovico Einaudi, que por sinal era um de seus músicos favoritos.

Curioso e estranhamente tocado Mu desviou o caminho que fazia, se afastando das escadas que levavam à plataforma de embarque, para seguir as notas musicais, e estas o levaram até a outra extremidade do amplo hall, quase próximo ao majestoso relógio de quatro faces no centro da estação, ponto de encontro de nova-iorquinos e também de todo turista que visita a cidade, onde havia sido colocado um piano de cauda para uso público. Era simples, meio surrado, notava-se que já contava com muitos anos de uso, mas o tempo em nada abalara sua belíssima voz.

Frente à frente com o instrumento agora eram os doces olhos verdes do estudante de cinema, os quais surpresos e um tanto admirados, fitavam a figura sentada ao piano que executava a canção com perfeição extraordinária.

Era um rapaz bem jovem, de feições serenas e traços delicados, rosto fino, porte esguio e longos cabelos num tom de louro tão incrível que pareciam fios de ouro a lhe caírem retos pelos ombros até pouco abaixo do peito.

Como se somente ele e o piano preenchessem aquele espaço público dedilhava as teclas de olhos fechados, os cílios longos e dourados fremindo sutilmente com o ressoar das notas.

Homem e instrumento.

Um era a extensão do outro e ambos existiam ali naquele momento à margem da realidade, num Universo só deles.

A entrega do pianista ao piano tocara o coração de Mu de forma tão surpreendente que divisava hipnotizado aquela composição tão bela entre homem, instrumento e melodia, então sem que percebesse seus pés o conduziram lentamente até o rapaz sentado à banqueta.

Ali ele parou, e de pé ao lado do músico mirava em encantamento os dedos esguios e delicados de unhas meticulosamente bem feitas a bailarem hábeis sobre as teclas.

Mesmo imerso no extraordinário mundo fantástico ao qual a música lhe conduzia sempre que se sentava ao piano, o rapaz que tocava percebeu que alguém o observava de muito perto. Foi tomado por uma apreensão súbita, mas obstinado continuou a tocar.

Já havia alguns dias que ia com frequência àquela estação tocar o piano, e já estava habituado a ser observado de perto por aqueles cuja música servia, assim como para ele, de alimento para alma.

Contudo, daquela vez foi diferente.

Quando imaginou que seria apenas observado eis que surpreendeu-se ao ouvir notas da canção que tocava sendo executadas um tom acima a lhe acompanhar, formando um dueto harmonioso e belo.

Alguém estava tocando o piano consigo.

Foi automático.

Mu não se dera conta do momento em que impelido pela beleza da canção, a entrega do pianista, ou ambos talvez, inclinou-se e tocou as teclas com certa timidez. Parecia responder a um chamado íntimo que despertara em si o desejo de pôr em prática as aulas de piano que tomara quando ainda menino.

Agora eles tocavam juntos em perfeita harmonia, num ritmo um pouco mais acelerado, brincando com as notas da melodia, e aquele inusitado dueto logo capturou a atenção dos transeuntes que um a um paravam para ouvi-los e vê-los tocar o piano. Alguns sacavam os celulares das bolsas e roupas e os filmavam, outros os fotografavam, mas todos queriam levar para casa um pouco da beleza e alegria com que eles tocavam.

Lá pelas tantas o rapaz loiro sorriu ao perceber que o parceiro de dueto possuía um atrevimento singular, já que criava novos acordes e arranjos musicais que o obrigavam a abusar de sua concentração e criatividade para poder acompanha-lo, e esse desafio lhe estava sendo muito prazeroso. Tanto que até escorregou o corpo um pouco para o lado cedendo um espaço na banqueta ao convidado, que aceitou o convite de pronto.

Assim eles passaram bons minutos juntos, sentados lado a lado, brincando de criar sonhos e dando àquele dia um tom especial, até que encerraram os últimos acordes e a canção foi substituída por uma saraivada de palmas daqueles que ali estavam os observando.

Mu então sorriu, mas sua timidez o fez se levantar ligeiro da banqueta e se despedir apressado, tanto do parceiro pianista quanto da plateia improvisada, apenas com um aceno de mão singelo. Afastou-se da turba mantendo a cabeça baixa e corado seguiu seu caminho até a plataforma de embarque, com a alma em festa. Seu trem já aguardava e sem perder mais tempo correu até um dos vagões e se sentou próximo à janela.

Não sabia o motivo, mas sentia-se agitado e elevado.

Os momentos no piano não saiam de sua mente, tampouco a lembrança do jovem pianista.

Quando o trem deu partida Mu suspirou profundamente. Logo estaria em casa e era preciso voltar à realidade, já que o trabalho de teoria da comunicação que teria que entregar no dia seguinte não se faria sozinho.

Naquele dia o trajeto lhe pareceu diferente.

Ele não ouvia o costumeiro zunido do trem em atrito com os trilhos, também não ouvia as tantas vozes dos ocupantes do vagão.

Mu só ouvia o piano.

Na estação o pianista tocou ainda mais duas ou três canções com ânimo revigorado. A experiência de tocar o piano no Terminal era extraordinária, já que a acústica dos arcos de cerâmica da estação faziam as notas reverberarem com força e limpeza únicas, como seus ouvidos aguçados poucas vezes tinham a oportunidade de experimentar.

Mas aquele de fato tinha sido um dia bem diferente.

A pessoa que sentara a seu lado lhe presenteou com o que mais amava na vida: música!

Além da música ela também havia lhe dado algo que perdera aos cinco anos de idade e que naquele dia em especial lhe fizera uma falta visceral: ela o havia enxergado. E fizera questão de lhe dizer isso em forma de música.

No meio de tantos rostos, na pressa do dia a dia, em meio ao barulho ensurdecedor que polui as metrópoles, a algazarra de vozes frenéticas, toques estridentes de celulares, gritos, sinais sonoros, freios dos trens, alguém ouviu sua música e lhe enxergou, e essa pessoa lhe deu alguns minutos de seu cotidiano, certamente corrido, algo que não lhe acontecia há muitos anos. Na verdade desde que deixara de se comunicar com o mundo dentro dos padrões sociais considerados normais.

Quando se deu por satisfeito encerrou a última canção, soltou um suspiro de alívio pelo cumprimento do dever auto imposto e então se levantou, com cuidado, segurando nas bordas da banqueta com ambas as mãos para depois arrasta-la um pouco para trás apenas para poder ficar de pé. Em seguida tateou com as pontas dos dedos o contorno do instrumento e com três passos contados andou para o lado, abaixou-se e apanhou sua mochila no chão. Abriu o segundo zíper da esquerda e de dentro retirou uma bengala de alumínio retrátil. Fechou o zíper, colocou a mochila nas costas, desdobrou a bengala e se apressou para pegar o trem antes do horário do rush.

Até o bairro do Bronks onde morava com o irmão mais velho e o pai eram várias estações, e tinha ordens para chegar em casa com o dia ainda claro, mesmo que para ele isso não fizesse a menor diferença.

As horas se passaram rápido para ambos naquele dia.

Já em sua casa Mu se ocupava dos trabalhos para a faculdade.

Deitado na cama de modo desleixado tinha a cara enfiada nos livros enquanto ouvia em seus inseparáveis fones de ouvido um dos álbuns de Ludovico Enaudi e relembrava o momento vivido na estação de metrô naquela tarde. O jovem que tocava o piano o havia impressionado mais do que imaginara e desde então, entre uma tarefa e outra da casa, entre um capítulo do livro e algumas anotações feitas em um caderno de capa dura, se pegava pensando nele, quem seria, o que fazia...

Acabou indo dormir muito tarde, atirado na cama em meio aos livros, caderno e música.

Quando acordou pulou do leito assustado quando viu que já era dia. Tinha pegado no sono com a roupa do dia anterior, então apressou-se até o banheiro onde tomou um banho ligeiro e depois vestiu-se rapidamente com a primeira peça de roupa limpa que encontrou, uma camisa social estampada com pequenas flores de um tom de salmão clarinho, botou um suéter vinho por cima, calça jeans escura e um sapatênis para arrematar o visual esporte fino. Juntou os livros que precisaria para as aulas daquele dia, o trabalho feito, os fones de ouvido e colocou tudo em uma mochila. Saiu em jejum, na faculdade faria um lanche.

O dia do jovem estudante de cinema fora como todos os outros, corrido e atarefado. Aulas no período da manhã, almoço em uma lanchonete qualquer na Times Square e trabalho no período da tarde na produtora de TV onde estagiava, e finalmente após cumprir sua rotina com perfeição às dezesseis horas estava livre para voltar para casa.

Era por volta desse horário quando chegou à Grand Central Station, sempre com seus fones de ouvido a conduzir seus passos e seus olhos voltados para as constelações desenhadas na cobertura da construção, quando num gesto involuntário fez uma pequena curva no trajeto em direção à plataforma de embarque para seguir até o amplo hall, o pátio onde no dia anterior tinha visto o piano.

Então estranhamente seu coração bateu mais forte.

O pianista estava lá.

Imediatamente Mu desligou o Mp3 para poder ouvi-lo tocar, e mais uma vez, como atraído por uma espécie de encanto mágico, já havia caminhado até ele e parado bem em frente ao piano, observando maravilhado o modo como aquele rapaz loiro entregava-se ao instrumento com a alma, tocando de olhos fechados novamente e semblante concentrado.

Dessa vez ele tocava uma conhecida composição de Beethoven, Moonlight Sonata, e embora já tivesse ouvido inúmeros pianistas de renome reproduzirem aquela canção nenhuma das experiências fora tão visceral quanto aquela que vivia ali.

Arrebatado Mu recostou o corpo no canto do instrumento e como que impelido por uma ânsia além de sua compreensão dedilhou algumas teclas como fizera no dia anterior.

Não sabia se havia feito aquilo por vontade de tocar o instrumento ou simplesmente por desejo de ser notado pelo pianista, que parecia não ter se dado conta sua presença. Era aquela sua forma de dizer olá sem interrompe-lo.

No entanto, o rapaz ao piano já havia notado sua presença antes mesmo que tocasse o piano. Seu perfume ficara impresso em sua memória.

Mesmo sabendo que tinha companhia, somente quando ouvira as notas executadas pelo estudante de cinema foi que sentiu-se confiante para saudá-lo com um sorriso gentil, ainda que mantendo a cabeça ligeiramente abaixada, voltada para as teclas.

Esperou por vezes que ele lhe dissesse alguma palavra. Ansiava por ouvir sua voz, saber se era grave ou aguda, masculina ou feminina... Contudo, se deu por satisfeito tendo a música apenas como ponte de acesso, afinal o que poderia desejar além daquilo?

Ter sido notado já era suficiente, já que sabia que o mundo não enxergava pessoas como ele.

Estava feliz a seu modo e sua alegria se refletia no bailar de seus dedos finos sobre as teclas do piano.

E ali, naquele momento só deles, não era mesmo necessário a visão para que se comunicassem, já que faziam isso através da música.

Mais uma vez o pianista cedeu um espaço na banqueta para o visitante e novamente tocaram em dueto.

Vez ou outra, e um pouco mais nervoso que no dia anterior, Mu espiava com o canto dos olhos a figura bela a seu lado.

Um anjo...

Pouco depois encerraram mais uma apresentação, mesmo que nada tivesse sido combinado, então veio a saraivada de palmas. Novamente Mu se levantou da banqueta agradecendo ao público itinerante e com um aceno de mão se despediu do pianista, que como da outra vez não acenou de volta, porém dessa levantou a cabeça e abriu os olhos, surpreendendo o estudante de cinema que diminuiu os passos e parou.

Um breve instante. Tão efêmero quanto um suspiro, mas o suficiente para arrebatar o coração de Mu por algum motivo que nem ele mesmo saberia explicar, talvez por ter sentido certo desconforto ao olhar para os olhos do pianista, um desassossego. Logo o rapaz fechou os olhos, tornou a baixar a cabeça e iniciou uma nova canção.

Ainda um tanto inquieto e alarmado, consequência daquele olhar que tudo e nada dizia, o estudante de cinema voltou a caminhar em direção à plataforma de embarque, enquanto no piano o rapaz loiro tocava agora com um sorriso tímido no rosto.

Era estranho e novo constatar aquilo, mas de repente sentiu falta do calor do corpo que há pouco estava a seu lado, do perfume, da presença.

Não queria pensar, pois certamente estaria se iludindo, mas enquanto tocava não conseguiu evitar desejar que tivesse o parceiro, ou parceira, itinerante todos os dias ali consigo tocando o piano nem que fosse apenas alguns acordes. Seria muito bom dividir com alguém suas alegrias, ainda que por breves minutos apenas.

Seguiu executando belíssimas canções até seu relógio lhe avisar através de um sinal sonoro que estava na hora de ir para casa.

Uma pane em um dos trens atrasou a viagem em pouco mais de uma hora. No céu o Sol já havia se recolhido há algum tempo quando ele finalmente desceu na Estação de Bronx Park East a três quadras de sua casa.

Tanta recomendação era para que não andasse sozinho pelas ruas agitadas do bairro de periferia famoso por ser composto em sua grande maioria por imigrantes.

Quando cruzou a esquina e contou exatos quarenta e sete passos de uma caminhada cadenciada, virou-se para a esquerda e ficou de frente a um portão velho de ferro com a tinta branca carcomida, então levantou a mão até certa altura precisa e segurou no trinco. Antes que pudesse gira-lo para a direita ouviu passos apressados caminhando em sua direção.

— Me desculpe pelo atraso, Asmita. — disse terminando de girar o trinco e já empurrando o portão para abri-lo — Houve uma pane e o trem ficou parado no subsolo. Tentei ligar, mas sabe que não tem sinal lá embaixo. — disse enquanto avançava alguns passos.

— É por essas e outras que eu não gosto quando sai de casa, Shaka!

A voz robusta e conhecida que adentrava seus ouvidos era do irmão mais velho, um rapaz incrivelmente bonito, muito parecido com ele, porém com porte bem mais avantajado, ombros largos e feições severas. Tinha cabelos num tom de loiro mais escuro, meticulosamente penteados e que desciam repicados até pouco abaixo da nuca tocando-lhe ligeiramente a curva do pescoço. Apesar da pouca idade, contava com 25 anos completos, a barba por fazer lhe conferia um ar viril e dava a impressão de ser mais velho.

— Porque o trem sofreu uma pane e por isso me atrasei para o Toque de Recolher? — disse Shaka que dava as costas ao irmão para fechar o portão — Não exagera, contratempos acontecem.

— Sim, contratempos acontecem. — retrucou Asmita que esticando o braço segurou no trinco antes do mais novo, fechando ele mesmo o portão — Por isso mesmo que um menino cego não deveria ficar se metendo em metrôs de uma cidade do tamanho de Nova York. — tomou o irmão pelo braço continuando a falar enquanto o conduzia para a entrada da casa — Essas suas andanças já estão nos trazendo problemas.

— E que problemas minhas andanças podem trazer à vocês, posso saber? — perguntou franzindo a testa.

Sem parar de andar Asmita o conduziu pela porta de entrada até a pequena sala da residência modesta, só então lhe soltou o braço.

— Você ainda pergunta? Todo tipo de acidente e atrocidades podem acontecer a alguém como você, Shaka, não seja ingênuo. — disse firme o mais velho — Anda, vá lavar as mãos que o jantar está quase pronto.

Shaka ouviu os passos de Asmita se afastarem então soltou um longo suspiro.

Estava mais que acostumado aos sermões do irmão e não iria bater boca novamente com ele, pelo menos não antes do jantar. Um cheiro agradável vinha da cozinha e lhe abria o apetite. Molho branco com noz moscada, pimenta do reino e curry. O cardápio deveria ser macarrão com queijo e frango à passarinho.

Sempre que saía de casa sozinho era o mesmo dilema. Asmita lhe ligava de hora em hora para saber onde estava e como estava, e se houvesse algum imprevisto como o de hoje passava o jantar inteiro ouvindo o mesmo sermão, de que deveria ser mais cuidadoso e arranjar algo que pudesse fazer sem sair de casa, afinal era deficiente e nem a cidade nem o mundo estavam preparados para acolher com segurança pessoas como ele.

Porém, naquele dia Shaka pensou em mudar o assunto do jantar.

Antes de seguir ao banheiro para lavar as mãos retirou o casaco e o pendurou com cuidado no cabideiro que ficava ao lado da janela da sala, depois já de volta caminhou 18 passos até a cozinha, depois mais 4 passos até uma mesa de madeira que ficava no canto esquerdo, inclinou-se para frente e puxou a cadeira da cabeceira para se sentar.

— Sabia que há alguém que tem vindo tocar piano comigo lá na Estação Times Square? — disse animado enquanto esticava o braço para apanhar um pequeno pote de vidro que sempre ficava ali cheio com amendoins. Jogou dois na boca e continuou a falar enquanto mastigava — No final da música as pessoas até nos aplaudem! — concluiu, e nessa hora o perfume do acompanhante misterioso lhe veio à lembrança.

Na mesma hora Asmita, que jogava a massa no escorredor para tirar a água, largou o que fazia e virou-se para o irmão encarando seu rosto com surpresa.

— Por Deus, Shaka! — disse alarmado, então caminhou até a mesa e deu uma pancada na madeira fazendo o outro se assustar e deixar derrubar no chão os amendoins que tinha na mão — Quem é essa pessoa?

Shaka arregalou os olhos e piscou os longos cílios loiros algumas vezes antes de engolir em seco e responder gaguejante:

— Eu... eu não sei... oras!

— Como não sabe?

— Não sei!... É só alguém que vem tocar o piano comigo, só isso! Qual o problema? — disse o mais novo apoiando ambas as mãos na mesa.

— Ainda tem coragem de me perguntar qual o problema? — outra pancada na madeira fez Shaka voltar o rosto na direção da voz vigorosa do irmão — Então um estranho tem se aproximado de você com certa frequência e você não vê problema nenhum nisso?

— Asmita, é só uma pessoa que gosta de música e que também toca piano. — disse sem elevar o tom de voz.

— E uma pessoa que pode ser um aproveitador, um sequestrador, ou até um... — calou-se fazendo uma pausa e respirando fundo, pois nem tinha coragem de verbalizar o que passou por sua cabeça, então esfregou o rosto com certo nervosismo — Por Deus, Shaka... Não seja ingênuo, meu irmão! Como você vai se defender se não consegue se virar sozinho? Você não pensa em mim? Não pensa no pai? Sim, porque seremos nós que teremos que ir à polícia dizer que fomos negligentes e deixamos você, um garoto cego e incapaz, andar por ai sozinho para ser sequestrado!

Shaka baixou a cabeça e lentamente esticou os braços até tocar no pote de amendoim, o fechou e o arrastou até o centro da mesa onde era seu lugar.

Sabia que Asmita não era a favor de que saísse de casa sozinho, uma vez que tinha verdadeiro pavor que algo de ruim lhe acontecesse, contudo mesmo sabendo que o irmão esbravejava porque queria seu bem suas palavras eram sempre muito duras de ouvir, lhe machucavam, e ainda que as considerasse verdadeiras queria deixar de ser um garoto cego para ser apenas um garoto.

— Nem prestou atenção no que eu disse. — Shaka murmurou em tom ainda mais baixo — Você só enxerga maldade no mundo... Só pensa no pior... — ergueu a cabeça e olhou na direção de onde sentia vir a respiração de Asmita — Uma pessoa tocou piano junto comigo... dois dias seguidos, e eu fiquei feliz... Não é um aproveitador, mas apenas alguém que aprecia música tanto quanto eu. — arrastou a cadeira para trás e se levantou — E se eu não sei me virar sozinho é porque você nunca me deixa nem ao menos tentar!

— Shaka fique na mesa! — disse o mais velho em tom firme.

— Fique você! Eu perdi a fome. — respondeu seco, depois tateou a madeira até chegar à borda e deixou a cozinha contando os passos até o quarto como sempre fazia.

Asmita ficou ali o observando caminhar até o quarto. Seu coração pesava toda vez que tinham aquelas discussões, ainda mais porque carregava a culpa da cegueira do irmão toda em seus ombros.

Um fardo amargo a se carregar por toda uma vida.

Quando ouviu o ranger da porta da sala a se abrir suspirou longamente e então voltou à pia para terminar de escorrer a massa e finalizar o fatídico jantar. O pai acabava de chegar do trabalho e como de hábito cansado e faminto. Era faxineiro em uma fábrica de artigos esportivos. Um homem de feições gentis e sorriso bondoso. Tinha 56 anos, mas aparentava muito mais devido à dura rotina de trabalho e às amarguras que a vida lhe impusera. Era um homem alto, corpo esguio e via-se que quando moço ostentara certa beleza. Tinha os olhos de um azul escuro, profundo e melancólico.

Nilo, como era chamado por todos no bairro, adentrou o aposento a tempo de ouvir a porta do quarto do filho mais novo ser batida com demasiada força.

— O que foi isso, Asmita? Brigaram de novo? — perguntou enquanto pendurava o casaco no cabideiro e retirava os sapatos para calçar os chinelos.

— Não foi nada pai. Venha, o jantar está pronto. — respondeu o filho mais velho que colocava a mesa.

— Tem certeza? Pela sua cara não me parece que não foi nada. — disse puxando uma cadeira para se sentar — Por que Shaka bateu a porta?

Asmita então respirou fundo e sentou-se ao lado do pai.

— Eu me preocupo com ele. — disse com o rosto voltado à sala — Mas... Shaka não entende! Ele não percebe que tudo que eu faço é para o bem dele. Ele esquece que é incapaz, que é deficiente, e quer levar uma vida normal!... Se mais alguma coisa acontecer a ele eu... eu acho que eu...

— Shiii... — fez Nilo enquanto pegava na mão do filho — Ei, nada vai acontecer a ele, Asmita, se acalma. — fez uma pausa pensativo — Ele está crescendo, está se tornando um homem, já tem 19 anos, tem uma profissão... Não pode mais querer que ele viva sob sua vigilância constante. Isso não é bom para ele e nem para você. — disse, pois sabia o que deveria dizer, ainda que não fosse o que seu coração lhe ditava, já que se pudesse escolher ele mesmo seria os olhos de Shaka até o fim da vida, o traria para perto de si e não o deixaria arredar pé nem por um minuto sequer, mas sabia que a vida não era assim.

Em silêncio deu dois tapinhas gentis no ombro do filho mais velho, sorriu e pegou o prato para se servir.

Nenhum dos dois disse mais nada durante todo o jantar, então quando o pai se levantou da mesa e foi para a sala assistir televisão como fazia todas as noites antes de ir dormir, Asmita fez um prato com uma porção generosa de massa ao molho de queijo, despejou suco de laranja em um copo grande e foi levar para o irmão no quarto.

Deu duas batidas na porta antes de entrar e caminhar no escuro poucos passos até uma escrivaninha que continha alguns livros em braile e partituras, onde colocou o prato e o copo. Voltou e acendeu a luz, então viu Shaka deitado na cama de solteiro estreita abraçado ao travesseiro.

— Me desculpe. — disse em voz baixa — Eu me exaltei... Eu... trouxe a comida. Você passou o dia todo fora, não pode ficar sem se alimentar. Anda, vem comer. — deu um beliscão leve no dedão do pé do mais novo.

Apesar de chateado e magoado, Shaka não conseguia ficar brigado com o irmão. O amor que sentia por Asmita era tão grande que superava toda a falta de apoio e excesso de zelo que muitas vezes mais atrapalhava do que o ajudava.

Sem muito entusiasmo levantou-se da cama e guiando-se pelo som da respiração do irmão, e também de seu odor natural, um misto de perfume cítrico com loção de barba com tons de alecrim, caminhou até ele e o abraçou recostando o rosto em seu ombro.

— Eu também lhe devo desculpas. — disse baixinho — Eu só queria... poder viver a minha vida sem dar tanto trabalho e preocupação a você e ao pai... Tem que me deixar tentar, irmão. Tem que me deixar ao menos tentar! — beijou suavemente o ombro do outro e se afastou para pegar o celular que tocava no bolso detrás da calça — Shijima está me ligando. Vou falar com ele enquanto como sua gororoba.

— Gororoba, mas você adora! — Asmita riu enquanto depositava um beijo na cabeça do mais novo, depois deixou o quarto para que ele pudesse conversar sossegado com o amigo surdo-mudo. Achava graça daquela amizade inusitada.

Assim que escutou Asmita fechar a porta Shaka puxou a cadeira da escrivaninha e se sentou já acessando o aplicativo para deficientes visuais através do qual ele conseguia falar com Shijima. Este convertia em áudio todo o texto que Shijima digitava, assim podia ouvi-lo. Em contrapartida, tudo que Shaka falava era digitalizado pelo mesmo aplicativo para que Shijima pudesse ler. Era a tecnologia tornando possível uma amizade que enfrentava muitos obstáculos.

— Alô!

"Você demorou para atender. Está tudo bem?", dizia a mensagem em áudio.

— Sim está tudo bem. Meu irmão estava aqui. — disse Shaka tateando o prato para alcançar o garfo e meter logo uma boa quantidade de macarrão para dentro da boca, estava faminto.

"E ai, ele voltou?"

— Hu-hum... voltou!... Tocamos Beethoven, mas ele, ou ela, dessa vez apenas acompanhou.

"Como assim, você ainda não descobriu se é um homem ou uma mulher? Deixa de ser lerdo!"

— E que diferença isso faz? — Shaka riu ao ouvir a mensagem.

"Ah, por um momento esqueci que você é Bi."

— Exato, então sabe que para mim realmente não importa se ele é homem ou se ela é mulher. — riu dando um gole no suco enquanto escutava as mensagens que chegavam convertidas em áudio — O que importa é que me sinto bem quando ele, ou ela, está por perto... Quero que vá um dia comigo para me dizer como ela, ou ele, é. Se é bonita, ou bonito... Que cheira bem eu já sei. Nossa e como! — riu de si mesmo novamente, colocando outro tanto de macarrão na boca.

"Claro! Eu irei sim, até porque tenho que aprovar. Eu sou o seu controle de qualidade!... Mas, já te falei sobre isso e volto a dizer, é melhor não criar muitas expectativas para não se frustrar depois, sabe."

— Hum... Eu sei... Não se preocupe, não estou criando expectativas, é só que... é tão bom quando ela, ou ele, está sentado do meu lado... o calor do corpo... o som da respiração... o cheiro do shampoo...

"Ah pronto!... Você está APAIXONADO!"

De repente Shaka arqueou as sobrancelhas finas e arregalou os olhos.

— Estou nada! Só estou dizendo que a experiência de tocar o piano com um completo desconhecido tem sido interessante, só isso.

"Hum, sei! Eu tô rindo muito, mas é com respeito!"

A conversa se estendeu por horas. O riso do jovem pianista podia ser ouvido mesmo através da porta de madeira, e foi um alívio para o irmão zeloso que na cozinha lavava a louça amuado.