Roxanne
"Entregar-te-ia meu coração, sob uma combinação de mel e alecrim, tomates enfeitando a borda de uma bandeja de ouro se quisesse. Entregar-te-ia, agora mesmo, se prometesse dar cabo da refeição por completo após o desfecho desagradável da tua tola brincadeira de Romeu."
Carta 1#
12 de Maio.
Querido estranho,
Escrevo-lhe pela incerteza de que chegarão estas palavras à tuas suaves e límpidas mãos. Escrevo-lhe por não querer que percam-se aos ventos tais palavras vazias. Escrevo-lhe por egoísmo. Escrevo-lhe, simplesmente.
Que fazes agora? Ainda é cedo. Às manhãs, deixo-me estar frente ao espelho. Deixo com que meus olhos vaguem pela face que os sustenta, encarem a tez que o cobre, mostrando-se pálida e cada vez mais deteriorada. Deixo que encontrem a extensão do corpo desnutrido que põe-se em pé, nu, cansado. Faltam-lhe muitas coisas. Faltam-me bochechas, seios e talvez até mesmo um quadril. Mas além de todas estas e talvez ocupando-se de posto mais considerável, falta-me uma alma. E esta pouca que me resta, encarrego-me de retalhar e mascarar em uma caligrafia fina, sobre um papel caro, respingado por gotículas quase imperceptíveis de algum vinho conservado, que obrigo-me a tomar sozinha.
Talvez haja em mim uma necessidade egoísta de manter relacionamentos com outros de minha mesma subespécie. Talvez tenha aprendido com os anos. Durante todo este tempo, no entanto, estive no topo suficientemente o bastante para que aprendesse a odiá-los. Se há esta necessidade, não posso afirmá-lo convictamente, no entanto, o faço quanto ao asco que gerou-se neste meio tempo que vivi confinada.
Seres humanos são de fato criaturas deveras curiosas. Talvez merecessem um posto de observação ou qualquer coisa do tipo, mas falta, por infortúnio, neste planeta algum outro ser menos egoísta provido de racionalidade para que realizasse com êxito tal tarefa.
Talvez eu simplesmente disserte sobre isso por faltar-me alguém que me faça sentir algo. É inútil. Depois de vários relacionamentos frustrados, talvez eu tenha finalmente realizado que, como já diriam nas aulas de Ciências que eu nunca compareci, "Dois corpos não podem ocupar um mesmo espaço". Em certos casos, emocionalmente falando, só pode-se dedicar a uma pessoa, mesmo que pútrida e ignorantemente. Decidi por dedicar-me ao meu próprio ego doentio e masoquista.
Mas estamos aqui, ao que estimo-te. Entregar-te-ia meu coração, sob uma combinação de mel e alecrim, tomates enfeitando a borda de uma bandeja de ouro se quisesse. Entregar-te-ia, agora mesmo, se prometesse dar cabo da refeição por completo após o desfecho desagradável da tua tola brincadeira de Romeu. Não há função alguma para este obsoleto órgão senão palpitar o sangue, que por sua vez, só se é usado para manchar o gume afiado da faca que o invade. Dói. Mas é uma dor suportável. Como as dores que as crianças sentem ao cair na grama do jardim durante um jogo divertido: Logo se esquecesse.
Provavelmente não compreendes. Se vale como explicação: Estou no meu limite. Não existem mais recomeços. Não existe mais nada. É como uma grande quantidade de veneno que tem se espalhado pelo meu sangue durante um longo período, impondo tua presença. Não há mais escapatória, não há a regra dos três segundos, não há como puxá-lo para fora. Só há agora o doce veneno – quase tão doce como uma alma – e a oportunidade de degustá-lo até que encontre teu coração palpitante, e então não haja mais sangue algum para bombardear.
Saberia do que estou falando, se acordasse todas as manhãs e, ao invés de sentar-se com tua esposa, café posto na mesa, panquecas saborosas e um beijo de bom dia, abrisse as cortinas repugnantes do seu apartamento mal-cuidado e visse que não há sol para que nasça. Talvez tu tenhas uma pessoa. Talvez tenhas uma razão para levantar-se da cama cantarolando doces melodias, talvez tenha um objetivo. Eu não o tenho. Não tenho mais nada, nem mesmo o dinheiro, tampouco o prazer de andar as ruas sob a luz do luar para consegui-lo. As memórias vêm-me a cabeça em uma grande confusão torturante. Devia ter-me esquecido, com o tempo. Mas talvez o tempo seja apenas uma maldita conspiração metafórica que fere-me tal qual o aço faz ao contato com a pele. Talvez eu mereça. Talvez você também mereça.
Há tempos parei de confiar na humanidade. Tal qual a confiança em mim mesma sendo depositada ralo abaixo sob lágrimas de indiferença. Não sinto embaraço algum em admitir que chorei. E não pelo tapa que manchou-me a face, não pelas palavras cuspidas sobre mim desconsideravelmente, não pelo sexo que feria-me. Eu senti a dor de todas as pessoas que me cercavam, e carreguei o seu fardo durante muito tempo. Tempo o suficiente para que me esquecesse. Tempo o suficiente para que tornasse-me experiente, que levasse os fatos como rotina. Sob a máscara1 que cobria-nos os olhos, escondiam-se lamúrias carregadas de sangue.
Mas sobrevivemos, até tornarmo-nos indiferentes o bastante para transformar "prazer" em "profissão". Sobreviver não é sinônimo de continuarmos cheias de vida. Éramos então como pobres zumbis, cujo forçavam as pernas à levá-las aonde quer que fosse. Antigamente, existíamos às manhãs. Existíamos enquanto houvesse sol, e o seguíamos fielmente até a beira da praia, fazendo apreciar o movimento das ondas sobre pedra qualquer. Depois, não existíamos mais. Eu não existia até que o relógio vagarosamente movesse teu ponteiro para o algarismo "onze", e então surgisse "Roxanne", dentro do teu vestido vermelho e olhos maquilados.
Talvez eu ainda espere por Roxanne – Talvez.
Despeço-me cortesmente, e ansiarei notícias tuas.
Atenciosamente,
Roxanne.
1 Máscara aqui com o significado de "maquiagem". Máscara para os olhos. O popular "rímel", se meu Word aceitasse esta palavra e grafasse-a corretamente.
