A Crónica Perdida, por Elyon Somniare


Capítulo I - David chega ao Labirinto

David acabou de arrumar os pertences naquele que supostamente era o seu armário no dormitório masculino da Escola Experimental. Como muitos, detestava aquela Escola e a hierarquia do mais forte que lá dominava (isto porque a história de David se passa antes de Eustace e Jill serem amigos e de Aslan ter endireitado as coisas na Escola Experimental), e detestava também quando Kim Pearl lançava boatos sobre ele que resultavam, na maioria dos casos, no espancamento de David. O rapaz perguntava-se muitas vezes se Pearl o seguia mesmo com o intuito de o importunar e colocar em sarilhos, o que de facto era verdade e explica o aparecimento da rotunda rapariga e da sua língua venenosa naquele exacto momento.

- A esconder mais alguma coisa deles, Cartairs?

Se leram "O Trono de Prata" então devem sabem quem são os eles e que naquela escola todos se tratam pelo apelido. Outra coisa boa de se saber é que David era daquela espécie de rapaz loirinho de olhos azuis que as pessoas crescidas adoram amimalhar e que era esse o principal motivo da hostilidade que os outros lhe devotavam.

- Porque sabes o que acontece se estiveres a fazer isso... – prosseguiu Kim, acercando-se de David e lançando um olhar para o interior do armário do mesmo.

- Que estás aqui a fazer?

- Os gémeos andam à tua procura – respondeu Kim com um sorriso maldoso a formar-se-lhe nos lábios e desistindo de encontrar algo de comprometedor nos pertences de David. – E agora que me lembras disso, já devem estar impacientes.

Ter os gémeos à sua procura (provavelmente por causa da surra a que escapara o período passado) era mau. Tê-los à sua procura e impacientes era equiparável a um enterro com direito a túmulo e flores. Não é, pois, muito difícil de imaginar a expressão horrorizada de David ao ver Kim sair rapidamente do dormitório, e foi aí que começaram a acontecer as coisas estranhas. O primeiro pensamento de David foi que tinha sido óptimo ter conseguido trazer a caixa de primeiros socorros para a Escola. O segundo foi que era estranho ter deixado de ouvir os passos apressados de Pearl no corredor (a Escola tinha daqueles soalhos de madeira em que se faz muito barulho ao andar). E o terceiro foi que a porta do dormitório parecia muito maior e muito mais imponente. Mais tarde David diria que a porta parecia chamá-lo como a Terra chama a Lua, e, como era um rapazinho muito sincero e nada dado a mentiras, acredito que tivesse sido assim. Mas o que interessa a esta história é que antes de se aperceber do que estava a fazer ou do que estava a acontecer, David tinha transporto a porta e encontrava-se agora ao ar livre, ladeado por um muro verde que concluiu, depois de observar com alguma atenção, serem plantas muito fortes e muito bem aparadas, com um céu azul e um sol radioso sobre a sua cabeça, e um caminho de terra batida por baixo dos seus pés. Isso já seria estranho para alguém que andasse a passear num jardim, mas era ainda mais estranho para alguém que esperava encontrar um corredor sombrio e sem expressão. Contudo, a única coisa que David pensou foi "Fixe" e começou a percorrer o caminho de terra para ver aonde iria dar (mesmo que quisesse voltar para trás não podia porque a porta tinha desaparecido, mas como David não pensou sequer nessa hipótese, não sabia disso) e que parecia estender-se para lá da sua vista. Mas também isso não era o que parecia e, rapidamente, David chegou a uma bifurcação, onde não se deteve muito tempo por os caminhos lhe parecerem exactamente iguais e por desde sempre ter gostado mais da direita que da esquerda.

Esta foi a primeira de muitas bifurcações e caminhos múltiplos que se depararam a David ao longo do seu percurso, o que o levou a concluir, muito acertadamente, que se encontrava dentro de um labirinto. Essa descoberta quase que acabou com a sua política de andar às cegas, não tanto por David achar que isso alterava alguma coisa, mas mais por ter sido assaltado pelo medo de se poder encontrar no labirinto do Minotauro (David gostava muito de ler obras mitológicas e tinha uma imaginação muito fértil). Digo "quase" porque não sabendo como se orientar, David não teve mesmo outra hipótese senão a de continuar a seguir o "instinto" e de jurar a si mesmo que na primeira oportunidade iria inscrever-se nos escuteiros.

Desta maneira, David foi caminhando cada vez mais para o interior do labirinto e cada vez mais para o centro deste. Quando lá chegou (ao centro do labirinto, claro) encontrou não um Minotauro (o que o deixou muito aliviado) mas sim um aglomerado de casinhas que mais se pareciam com iglôs cobertos de musgo, cada qual com sua chaminé, também ela musgosa, de onde saíam finas linhas de fumo azulado. Mesmo em frente à casinha mais próxima de si, uma rapariguinha trajando um vestido de folhas observava David com um espanto latente.

- Oh! – exclamou numa vozinha estridente. – Nunca vi nada como tu. O que é que és?

- Sou o David – respondeu David como se entrar para um labirinto através da porta do dormitório e falar com uma rapariga vestida de folhas fosse a coisa mais banal que já lhe tivesse acontecido.

- Um david? Que esquisito, nunca ouvir falar. A Mã' já deve ter o almoço na mesa, vens?

Tinham ensinado a David que nunca se devia aceitar nada vindo de estranhos, mas, como David descobriu, isso não parecia lá muito importante quando se estava esfomeado. "Além disso, pensou David, eu é que pareço ser o estranho por aqui." E assim, David aceitou o convite da rapariga vestida de folhas e quando deu por si estava a agachar-se e a transpor a entrada de uma casa que lhe fazia lembrar muito a toca de um coelho, com a diferença de esta estar mobilada e de ter um cheirinho delicioso a pairar no ar.

- Mã'! – guinchou a rapariga para a uma mulher que se ocupava a pôs a mesa. Era uma senhora muito baixa e esguia, também ela vestida de folhas. – Encontrei um david, posso ficar com ele? Posso? Posso?

- Já disse que não podes trazer animais para casa, Folha Verde – ralhou a mãe. – Nunca se sabe se são perigosos ou não.

- Na verdade – interrompeu David nada ofendido – não sou um animal, sou um humano.

- Mas disseste que eras um david! – guinchou Folha Verde com um tom de amuo.

- Não. Eu disse que me chamava David. Mas sou uma pessoa, um humano.

- Um filho de Adão! – exclamou a mãe de Folha Verde. – Isso é um assunto muito grave, como vieste aqui parar?

- Pela porta do dormitório.

- O que é um dormitório?

- Agora não, Folha Verde – calou-a a mãe. – Falamos logo à noite na Reunião. Entretanto, sentem-se que o almoço já está pronto.

David sentiu que nunca comera nada de tão saboroso na sua vida, embora não soubesse o que aquilo era porque quando perguntou à Senhora Casca de Árvore, a mãe de Folha Verde, esta limitara-se a dizer-lhe o nome esquisito de um animal de que nunca ouvira falar.

No fim da refeição ofereceu-se para lavar a loiça, mas a Senhora Casa de Árvore disse que não, que não era preciso e mandou-o ir brincar com Folha Verde lá para fora, o que ele fez com uma certa contrariedade por sentir que os tímpanos não iam aguentar muito mais tempo a vozinha estridente da rapariga e por esta ter ganho o hábito de o mostrar às crianças das outras casinhas como exibisse um cachorrinho particularmente ternurento. Por esta razão, e porque já estava a ficar farto de estar para ali sem fazer nada, David viu chegar a noite com muito satisfação e melhor ficou quando as crianças foram mandadas para a cama e os adultos se reuniram com ele à volta de uma fogueira de fogo azul. Nesta altura, David voltou a ter três pensamentos de seguida: o primeiro foi que toda a gente estava vestida com folhas, o segundo foi que o fogo consumia ferro em vez de madeira, e o terceiro foi que, com a excepção da Senhora Casca de Árvore e de um outro homem, todos pareciam receá-lo um pouco. Mas, como era um rapazinho muito difícil de se surpreender, nada disto o admirou, e foi com as mesma calma com que iniciara o seu trajecto no labirinto que se foi sentar ao lado da Senhora Casca de Árvore, perfeitamente ciente de que era ele o principal tema da Reunião dessa noite.

- Então... – começou hesitantemente aquele que seria o mais velho do grupo. – És um filho de Adão?

- Parece que sim.

- E o que vistes cá fazer? – prosseguiu o ancião.

- Não vim de propósito! Desculpa, mas o que são vocês?

- Que insolência! – exclamou uma das mulheres, indignada.

- Tanta como nós lhe perguntarmos o que ele é – retorquiu o homem que parecia não ter medo de David. – apesar da aparência humana – continuou, virando-se para David – somos Carquilhos , seres muito ligados às árvores mas que não fazem parte delas. Chamo-me Avelã.

Ouviram-se resmungos no círculo de Carquilhos e David chegou mesmo a ouvir pragas e "Louco!" a serem sussurradas.

- O teu nome –fungou o ancião, mal-humorado – não interessa nada. O que interessa é o nome do Filho de Adão.

- É David. E chegou aqui pela porta do dormitório – esclareceu a Senhora Casca de Árvore.

- O que é um dormitório? – perguntou um dos Carquilhos mais jovens.

- É um buraco no Nada – alvitrou um segundo Carquilho. – Para onde vão os que morrem.

- Que idiotice! – exclamou David. – É o sítio onde durmo.

- Onde dormes o descanso eterno? – perguntou o Carquilho, decidido a não deixar tão facilmente de lado a sua ideia.

- Claro que não! Só lá durmo durante e noite.

- E de dia?

- Vou às aulas.

- O que são aul...

- Chega! – bramou o ancião. – Isso não interessa nada! O que queres daqui, Filho de Adão?

- Quero sair do labirinto.

O silêncio que se seguiu à resposta de David dava para contar nas calmas o número de estalinhos do fogo. Se já vos aconteceu terem daqueles momentos em que todos se calam subitamente na altura exacta em que estão a dizer algo que não se destina a todo e qualquer ouvido, então sabem qual o género de silêncio de que estou a falar.

- Mas isso é impossível! – exclamou o ancião após uns minutos de pesados silêncio. – Não existe nada para lá deste labirinto.

- Como não existe?

- Como não existe? Não podes esperar que o mundo se estenda pelo infinito, filho de Adão!

- Ah! – intrometeu-se novamente Avelã. – Mas este labirinto não é o mundo, faz parte de um mundo!

- Cala-te, louco! – vociferou uma das Carquilho. – Por causa dos teus devaneios já os meus filhos querem ir aventurar-se ao extremo do mundo, arriscando-se a voltarem loucos como tu!

- Pois fazem eles muito bem! – retorquiu Avelã com calor nas palavras e pondo-se de pé. – Que para além deste labirinto mais mundo há! Vi-o eu com estes dois olhos que a terra há-de comer!

- Estás louco! – acusou o ancião.

- Pois que esteja, que mesmo louco sou mais lúcido que vocês! E tu, meu rapaz, tu, meu David, se queres realmente sair deste labirinto, vem então ter comigo que, com todo o prazer, te conduzirei!

- Não digas asneiras, Avelã – retorquiu o ancião. – E tu, Filho de Adão, vai deitar-te que já são horas. E agradece a Casca de Árvore que tão amavelmente te oferece a sua hospitalidade.

David agradeceu e deixou-se levar para a cama de musgo que fora improvisada na cozinha, caindo num sono profundo e pesado.


As Crónicas de Nárnia