Partial Insanity – Prólogo.
Obs: Essa fic foi inspirada na obra de Stephen King, O Iluminado
As grades pareciam velar a sombra da mansão. As árvores a sua volta balançavam suavemente ao sabor do vento, enquanto um grito ecoava pela propriedade. Os passos, apressados, eram abafados pelos sons de choro, ao mesmo tempo em que o gotejar de sangue fazia-se presente no belo carpete de cor creme que revestia o aposento.
- Pai, por favor, não! – A voz infantil, gravemente alterada pela rouquidão dos tantos gritos dados, pareceu não surtir efeito. O homem investia furiosamente contra o corpo inerte no chão, enquanto sangue continuava manchando o carpete e as paredes, de uma brancura até então imaculada. Parecia um sonho... um terrível pesadelo.
A menina correu, seu braço ferido pendendo sem vida ao lado do corpo, como se nem sequer fosse parte deste. Os cabelos claros grudavam em sua face enquanto ela tentava, inutilmente, afastá-los com o braço bom. Ouvia os passos pesados atrás de si, ainda distantes o suficiente para que tivesse alguma vantagem sobre ele. Aquele não era seu pai, não tinha como ser... Seu pai jamais a machucaria, tampouco machucaria sua mãe, que agora jazia morta no chão da sala.
O choque se apoderara de seu corpo ao observar a face de sua mãe completamente desfigurada pelas marretadas, um dos olhos pendendo para fora da órbita, enquanto a grande fenda aberta no topo do crânio mostrava a massa ensangüentada e disforme que se esvaía a medida que os golpes atingiam-lhe o resto do rosto. E rever aquela imagem em sua cabeça fez com que um grito estrangulado lhe deixasse os lábios.
Seus passos aumentaram de intensidade, virando uma corrida moderadamente rápida, enquanto seus olhos buscavam qualquer lugar que pudesse ser feito de esconderijo. Deus, Deus, Deus! Por Deus! Sua respiração perdera o ritmo há muito, enquanto seu corpo inteiro tremia diante do pânico que a dominava; estava completamente sozinha.
Abriu o armário da cozinha, apoderando-se de um faca, e agachou-se para adentrá-lo. Era pequeno, mas o suficiente para que coubesse nele sem muitos esforços. A faca em sua mão estava apontada para a porta do móvel, enquanto seus ouvidos tentavam apurar o som de passos.
- Onde está minha menininha? Dorothy... onde você está? – Ele estava cada vez mais próximo, ela podia sentir, e aquilo fazia com que a faca tremesse ainda mais, aprisionada em sua pequena mão. – Dorothy, querida... venha para o papai!
Não era a voz dele. Era praticamente idêntica, mas não era a voz de seu pai. Os passos do homem ressoaram, ainda mais altos, pelo chão da cozinha, até por fim pararem. Próximos demais. E foi então que Dorothy percebeu que sangrava.
- Ora ora... vejo que encontrei minha filhinha desobediente! DOROTHY! – O grito foi acompanhado de um puxão violento na porta do armário, mostrando assim o esconderijo da menina. – Mas vejam só se não é a minha menininha! Está com medo, Dorothy? Não precisa ter medo... o papai só vai te dar um corretivo para que VOCÊ APRENDA A ME OBEDECER!
- Você não é meu pai! – Saindo da inércia, Dorothy golpeou-lhe o rosto com a faca, aproveitando-se da momentânea confusão do pai para esgueirar-se para fora do armário e correr com toda a força que ainda lhe restava até a porta dos fundos. Estava trancada. Não adiantava forçar, bater ou empurrar... estava simplesmente trancada.
- MALDITA! – O grito do homem voltou a ecoar pela cozinha, enquanto Dorothy voltava a correr, tentando enfim chegar à porta da frente. Os passos voltaram a seguí-la, enquanto cruzava a sala, completamente manchada de sangue. Pôde vislumbrar o corpo da mãe, completamente esfacelado sobre o carpete, mas não teve tempo suficiente para chorar por ela; tinha que salvar a própria vida primeiro.
Um estranho alívio percorreu seu corpo quando tocou a maçaneta da porta, ouvindo a voz que murmurava coisas sem sentido algum, e os passos de seu pai se aproximarem cada vez mais. Girou. Nada. Girou outra vez. Nada ainda... novamente trancada. Um grito de pura frustração esvaiu-se de seus lábios, enquanto sua mão boa esmurrava a porta numa tentativa vã de fazê-la se abrir.
Seus olhos percorreram o aposento, em desespero, enquanto a sombra do pai fazia-se visível no chão.
Ele estava vindo.
E ele iria matá-la.
Num último lampejo de lucidez, Dorothy notou a janela da sala entreaberta, correndo até ela como se fosse sua última esperança. E realmente era. Subiu, num impulso com os dois braços – Dorothy ainda não sabia como conseguira usar seu braço machucado para subir no parapeito da janela –, tentando abrir ainda mais a janela para que pudesse passar. E ele estava cada vez mais perto, chamando por ela, rindo, fazendo visível todas as marcas de sangue que maculavam sua blusa branca.
Aquele homem decididamente não era seu pai.
- Você realmente acha que pode sair, minha princesinha?
- Cale essa boca!
- Você deve respeitar o seu pai! – E ele então correu, praticamente findando a distância que existia até ela, ao mesmo tempo em que a janela se abriu e Dorothy, surpresa, caiu na grama do jardim. Estava livre. Correu como louca até a entrada da propriedade, forçando as grades e não se surpreendendo por estarem fechadas.
Olhou para trás. Ele sorria, caminhando até ela vagarosamente apesar da distância que se formara, enquanto a menina sacudia as malditas grades, em frustração. Mas não ia desistir... não ia entregar sua vida àquela coisa que havia tomado o corpo de seu pai. Firmou um dos pés e impulsionou o peso de seu corpo, usando o braço bom para escalar a grade e novamente tendo ajuda do machucado para subir. A rapidez com que o fazia era até assustadora, dada ao seu estado, fazendo o homem atras de si gritar e correr até o portão. Dorothy já estava no topo, quando ele começou a sacudir as grades, quase tirando-lhe o equilíbrio.
- Você não vai fugir, garotinha!
- Vá para o inferno!
- Depois de mandar você para ele, sua teimosa!
Dorothy conseguiu, em meio aos sacolejos, virar-se para o outro lado da grade com muita dificuldade, enquanto seu pai parou de balançar o portão e começou a rir, colocando as mãos para fora da grade. – Eu a pego, se passar por aqui.
- Eu não vou passar.
E, com um pulo ela se viu livre, sentindo os joelhos e os tornozelos cederem num estalo assustador ao atingirem o chão. Dorothy gritou de dor, lutando contra o desmaio e rastejando até a rua.
O homem, frustrado, voltava a balançar o portão e a gritar, enquanto lágrimas de puro terror deixavam os olhos da menina. Tinha que lutar, não podia desfalecer, senão estava perdida. Sequer podia andar, mas a rua não estava muito longe. Rastejar foi o que a manteve salva, até que um dos vizinhos, assustado com o barulho na casa ao lado, achou-a na calçada à beira da inconsciência, depois de ter ligado para a polícia e ter resolvido sair para averiguar o que acontecia.
E nos braços dele Dorothy pôde finalmente fechar os olhos e se deixar levar pela escuridão que ameaçava tragá-la. Tinha apenas oito anos.
-
- E o que aconteceu com o pai dela, Solo?
- Foi preso, mas depois foi transferido para um hospital psiquiátrico. O cara estava realmente louco...
- Ele ainda está lá?
- Acho que sim, Quatre. Mas vocês dois vão dormir agora! Chega de histórias por hoje. – O mais velho sorriu, vendo os dois meninos arregalarem os olhos e segurarem suas mãos, quase que simultaneamente.
- Eu não vou conseguir dormir! – Duo disse, num tom de voz exageradamente alto. – Ainda mais sabendo que Evenfall fica no fim da rua...
- E nem eu! Solo, fique aqui com a gente...
- Se acalmem, meninos... eu vou ficar. Mas vocês precisam se lembrar de que Evenfall é apenas uma casa... não precisam ter medo dela.
- Uma casa cheia de assombração, isso sim! – Duo voltou a apertar a mão do irmão mais velho, olhando-o com pesar e medo. – Por favor, Solo... temos visita em casa... você vai assustar meu amigo e depois ir embora?
- Vou pensar no caso de vocês. Enquanto isso, arrumem uma cama para mim porque vou trazer chocolate quente para os dois anõezinhos.
- É por isso que você é o melhor irmão que eu tenho!
- Deve ser porque eu sou o único, né Duo! – Solo riu, saindo do quarto e deixando os dois meninos apavorados arrumando uma cama entre dois colchões que estavam no chão, como se fosse para terem o mesmo nível de proteção.
Ouviu o irmão mais novo cochichar com o amiguinho sobre a história e suspirou; passaram-se mais de doze anos desde o incidente com Dorothy Catalonia e Solo tinha certeza absoluta de que nunca iria esquecer o grito apavorado da menina após acordar.
Bernard Watson, o homem que a havia amparado enquanto rastejava pela calçada, pedira a ajuda de seu pai, que era médico, pelo celular para socorrer a menina enquanto a ambulância não chegava. Ainda podia lembrar-se perfeitamente do susto de sua mãe ao receber o telefonema de Bernard, avisando seu pai aos berros sobre a emergência e vestindo ele, o pequeno Solo, com um casaco fino para em seguida levá-lo até a casa dos Watson com visível pressa.
Seu pai não demorara muito a chegar, levando sua maleta e tirando de dentro dela um frasco. Pediu um lenço à Bernard, molhando-o com o conteúdo do frasco e levanto ao nariz de Dorothy. E o grito que se ouviu quando a menina despertou chocou a todos dentro do aposento; era como se ela ainda estivesse em desespero.
A ambulância chegou pouco tempo depois, e só então, quando tiraram os lençóis das pernas de Dorothy, foi que Solo pôde vislumbrar a fratura exposta em um de seus tornozelos. O osso quebrado rasgara-lhe a pele, fazendo-se visível de uma forma horripilante e Solo se perguntou o nível de dor que aquela menina não havia sentido. Teve pena dela.
Suspirou novamente, voltando para a realidade e preparando o chocolate quente dos meninos. Depois que Dorothy saíra da casa, ninguém mais a havia habitado, mas o lugar continuava belamente conservado. Talvez pelo antigo mordomo dos Catalonia, que continuava a cuidar do lugar com um estranho zelo.
A placa de 'aluga-se' continuava presa ao portão, como se não houvesse sido sequer tocada pelo tempo e Solo esperava que continuasse assim. Ainda temia pelo que poderia acontecer a quem alugasse Evenfall, apesar de tentar se convencer de que estava exagerando.
Chegou ao quarto, vendo os dois meninos olhando para a porta ainda assustados, enquanto praticamente suspiraram aliviados por ver que era ele quem entrava no aposento. Observou a cama, feita supostamente para ele e arrumada com visível cuidado, e afagou-lhes os cabelos após entregar a cada um deles uma xícara com o chocolate.
Conversou com Quatre e Duo até que se acalmassem e dormissem, deixando que sua mente voltasse a vagar pelo dia em que vira o estado de Dorothy. Queria saber o que em Evenfall havia feito o tão centrado senhor Catalonia virar um louco varrido, a ponto de matar a própria esposa a marretadas e perseguir a filha.
Tinha plena certeza que Evenfall não era uma casa normal e estava realmente disposto a descobrir os mistérios que ela guardava.
Notas da Beta: Oh mais uma fic de presente para a Blanxe da Niu 333
Nossa... eu ainda to impressionada com tudo que acabei de ler..
Só tem duas palavras pra descrever essa fic: assustadoramente instigante.
Bem, esse prólogo me deixou realmente curiosa sobre esse mistério todo em Evenfall: que venha a casa mal assombrada \o/
