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Zelda, A Gande e Teível


Beta: none.

Disclaimer: Pet Sematary é uma obra de Stephen King e a ele pertence. Os personagens, o ambiente, o plot, tudo, tudo, absolutamente tudo é dele. Eu não possuo coisa alguma, apenas admiro o trabalho fantástico desse autor.

Nota: Essa fanfiction foi escrita logo após a releitura da obra que para mim, junto com The Shining, são as masterpieces do Mestre King. Escolhi escrever sobre a Zelda porque é a personagem que mais me assusta na trama, afinal ela é real. É gente. E eu tenho medo de gente! haha

Se você ainda não leu o livro e quiser se aventurar nessa fanfic, aviso que o spoiler estapeará a sua face. Não é um mega spoiler, mas chega perto disso. Dá um certo entendimento do contexto que seria melhor não ter antes de ler Pet Sematary. E também penso que para quem não leu a história não tem sentido ler isso aqui, mas eu não mando em ninguém, então fica só o recado. =D

Para esclarecer, está escrito "Gande e Teível" no título porque é como traduziram na versão para o português a expressão "Gweat and Tewwible", que é como a personagem Zelda falava "The Great and Terrible" quando criança.

Aos que lerão, fiquem a vontade e enjoy the journey!


As dores eram insuportáveis. Tão fortes, tão intensas, tão constantes, e presentes por tanto tempo que Zelda sequer se recordava de como era a sua vida antes da atual agonia a qual se via submetida.

A meningite a abatera de uma forma cruel. Veio sorrateira, silente, preparou o bote no escuro e se jogou sobre seu corpo com voracidade, destruindo tudo o que encontrou pela frente.

Primeiro fez sucumbir seu interior. Com garras afiadas, abateu sem piedade a resistência de seu organismo, reduzindo seu sistema imunológico a frangalhos. Em seguida a doença arrastou seus dedos longos e ressequidos pelos ossos e músculos, trincando-os, torcendo, formando vincos e gerando ranhuras, transformando sua estrutura, antes plenamente saudável, num amontoado amorfo e inútil.

Então ela insinuou-se para fora. A pele ressecou, as unhas endureceram. O branco dos dentes e o rosado dos lábios cederam lugar para o amarelo opaco e o esbranquiçado leitoso. Os cabelos, um dia cheirosos e sedosos, hoje eram um emaranhado quebradiço e sem vida.

Em pouco tempo Zelda em nada lembrava a garota de outrora. A doença surrupiou-lhe toda a graciosidade, fez desaparecer a vivacidade, escoou pelos poros a intensidade da juventude. E nessa perda constante de tudo aquilo que representava a própria humanidade, Zelda viu ser corroída, dia após dia, a sua sanidade.

O lado bom que há em qualquer pessoa, então, encolheu-se no canto mais escuro de sua mente, ficando cada vez mais encurvado, a cada instante contorcendo-se um novo tanto, até que, num dado minuto, desapareceu. Sumiu, fugiu, abandonando-a por completo, sem deixar vestígios. A partida de sua face positiva foi tão efetiva que Zelda passou a acreditar que jamais existira. Seu comportamento, até o momento resignado e sofredor, modificou-se inteiramente.

Instalou-se no peito um severo ressentimento contra tudo o que a rodeava. Não suportava saber que todos tinham o direito de viver bem, menos ela. Detestava o fato de que moscas, pernilongos, baratas, ratos, sapos e escorpiões tivessem uma expectativa de vida melhor que a sua. O que causava o ódio maior, porém, era ver que sua família estava de pé enquanto ela definhava a cada inspiração.

O pai, deste sequer sabia. Desde que fora, por covardia e vergonha, trancafiada naquele quarto bem longe de todos, não o via mais. Ao que tudo indicava o homem, numa atitude de extremo egoísmo, não queria ter mais nada a ver com ela, a julgar pelo total desapego com que era tratada por ele. Sentia como se o sujeito preferisse que ela nunca tivesse nascido. Que tipo de pai negligencia a própria filha adoentada?

A mãe, por sua vez, era uma alma condenada que, muito embora estivesse presente, não conseguia disfarçar o alívio que seria se ela, Zelda, evaporasse de uma vez. Estava ali patente em seu olhar o quanto ela desprezava a filha e ansiava pelo instante em que piscaria e a encontraria morta, finalmente. Sempre que trocava suas roupas de cama ou suas vestes Zelda sentia a repulsa e o nojo nos toques distantes e ligeiros que a mulher empregava. E a compaixão materna, onde ficava? Em lugar nenhum, com certeza.

E tinha, por fim, a irmã. Numa escala de ira, Rachel era quem fazia a campainha soar mais alto. Era injusto que estivesse murchando enquanto a outra ficava ainda mais saudável e bonita todas as vezes em que a via. Delirava de raiva quando Rachel entrava em seu quarto com aqueles fios de cabelo brilhosos, com os olhos cheios de vida, as bochechas coradas e o hálito perfumado. Simplesmente não era certo.

Por que a doença não escolhera a irmã ao invés dela? Ou um dos pais que fosse? Por que justamente ela? Eram as perguntas que sempre se fazia.

Para respondê-las havia somente Oz, O Grande e Terrível, ou como ela costumava denomina-lo desde a infância, Oz, O Gande e Teível, preso na parede à sua frente, num enorme cartaz de onde, impassível e sádico, observava-a ficar decrépita e menos parecida com um ser humano pelas seguidas noites adentro.

Com o tempo, contudo, Oz começou a falar com ela. Saiu de sua passividade e resolveu orientá-la, doutrinando-a com suas lições de rancor, crueldade e medo. Aos poucos, passou a alimentar os sentimentos ruins de Zelda, incitando-a a odiar mais, mais e mais cada um daqueles parentes que a olhavam com pena e rejeição. Foi assim, pela influência do Grande e Terrível Oz, que Zelda deixou de ser o que fora e assumira outra personalidade, de forma definitiva. Detestar e destruir eram seu lema.

O seu maior desejo era poder se levantar e quebrar os pescoços de cada um naquela casa. Imaginava-se robusta e dona de si erguendo-se da cama, caminhando até a porta e saindo por ela rumo ao quarto dos pais. Via-se subindo as escadas silenciosamente, um pé depois do outro, cautelosa, para não despertar ninguém. Adentrava na alcova dos genitores e ia à cabeceira da cama deles, onde dormiam o sono dos justos, sossegados, como se a filha não estivesse morrendo aos poucos no térreo, escondida e esquecida.

Era quando via os rostos relaxados e enfeitados num meio sorriso de contentamento que seu corpo se esticava e a musculatura crescia. As unhas, atrofiadas, aumentavam e se transformavam em finas navalhas. Os dentes ficavam pontudos e enormes, não podendo mais ser contidos pela boca, saindo pelos lábios. Os pés se revestiam de uma couraça estranha, assemelhando-se a patas de galinhas, porém, bem maiores e mais resistentes.

Olhava-se no espelho próximo e via um monstro. Tinha deixado de ser uma menina doente e virara uma criatura forte, saudável, indestrutível. E sedenta por sangue e vingança. De repente ela não era mais a pobre Zelda, mas Zelda, A Gande e Teível, assim como Oz no pôster afixado em seu quarto. Liberta das amarras da meningite, livre das desgraças daquela doença infernal. Poderosa, armada com a ira e a vontade de destroçar o planeta inteiro.

Ela, então, enxergava-se colocando os longos braços para frente. As mãos iam sozinhas ao encontro dos pescoços dos pais. Eles não tinham tempo sequer de abrir os olhos. Antes que os cérebros processassem o ocorrido, as cabeças já estavam pendendo para o lado, penduradas pelas peles flácidas, balançando ao som dos ossos fraturados.

A visão do líquido vermelho vertendo pelas narinas e lábios dos dois fazia com que asas saltassem de suas costas. Gigantescas, densas, negras asas com penas revestidas de piche. Batia-as com vontade, gerando um vento tão intenso que movia as cortinas e os lençóis, tirava objetos do lugar.

Sentia o corpo largar o solo, sobrevoando o espaço. Ria, fazendo pouco caso da mortalidade daqueles que não a amaram como deveriam, triunfando porque, agora, era ela quem os diminuía, e não o contrário.

Satisfeita com a cena, saía voando em direção ao local onde dormia Rachel. Alcançava a porta e esta se abria com velocidade, batendo contra a parede, quase sendo arrancada, sem que Zelda a tocasse. Era a energia da raiva que derrubava todos os obstáculos.

Percebia o exato segundo em que Rachel acordava sobressaltada, sem entender nada. E apreciava o arregalar dos globos oculares quando a querida irmãzinha a via, ainda sem saber do que se tratava. O grito emitido pela garota ao notar que era ela, Zelda, o demônio que adentrava o recinto soava-lhe como música. A imagem, então, era coroada pela urina que se seguia ao berro, molhando as pernas perfeitas da menina e escorrendo pelo colchão.

E era o bastante para que a festa começasse. Se com os pais a morte fora lenta e indolor, com a irmã tomaria o seu tempo.

Antes que Rachel pudesse fugir, precipitava-se sobre ela e começava a arranhá-la, marcando a pele em todos os pontos que podia alcançar. Rachel gritava a plenos pulmões, jorrando esguichos de sangue para todos os lados, sentindo as feridas arderem. Zelda, impiedosa, passava a empreender cortes mais profundos, entrando firmemente na carne, lanhando a estrutura óssea. A irmã tentava se defender, colocava os braços sobre o rosto, pedia para que aquilo parasse. Nada, porém, surtia o efeito desejado.

Parava quando o quarto e o corpo de Rachel não deixavam mais espaço para outra cor que não fosse o vermelho tinto daquilo que corria em suas veias. Via a irmã respirar devagar, chorando, o terror estampado nos soluços, as lágrimas queimando nos cortes, a hemorragia se agravando.

Reiniciava os trabalhos. Desta vez, as navalhadas eram dadas com tanta agressividade que arrancava a pele, a carne, os ossos, jogando tudo contra as paredes, pintando o teto, decorando as janelas. Lançava os pedaços da jovem por todos os lados, gargalhando num som gutural e sinistro, enquanto a vítima implorava pelo fim daquilo.

Interrompia a atividade quando deixava a outra quase desacordada, o corpo descarnado, as vísceras expostas, as fibras esbugalhadas. Voando, agarrava os cabelos de Rachel e a erguia, fazendo-a soltar aquele que seria seu último grito verdadeiramente ensurdecedor. Botava-se a girar, rodopiando o que restava da irmã com toda a força, levando o que sobrara dela a se soltar e se prender onde batia.

O término da atividade a presenteava com a pintura magnânima formada por Rachel em mínimos pedaços. Fígado para um lado, tripas para o outro, coração, ainda pulsando, preso na ponta do lustre... E a cabeça, com a língua para fora e os olhos saltando, repousado entre seus dedos. Num último ato de ódio, jogava para longe o crânio que fora de Rachel, fazendo-o ricochetear pelo quarto, detonando sua estrutura e espalhando os miolos por sobre o resto, como se fosse a última pincelada de um renomado artista, o retoque final, o grand finale que vale ouro.

Sorrindo de orelha a orelha, coberta pelo sangue, órgãos e fezes da irmã, Zelda saía batendo as asas pela janela, pronta para agraciar o mundo com sua ira implacável e seu poder destrutivo.

Era nesse ponto que o devaneio acabava. Repetia-o muitas vezes, inspirada pelo olhar incentivador de Oz na parede, até à exaustão. Um dia, ela bem sabia, isso iria acontecer. Teria sua vingança, e ela seria deliciosa. Oz, O Gande e Teível, era quem lhe dizia isso. E ela acreditava no único que, entre todos, ainda lhe dava forças para lutar pela vida.

Mas esse dia não seria hoje. Outro qualquer, longe ou próximo, porém, certamente, não o presente dia. Sendo assim, a maldade que lhe comandava ainda não podia ser espalhada como pretendia. Isso, entretanto, não significava que nada faria.

Iria esperar pela vinda da mãe e da irmã. Aguardaria que elas fizessem seu asseio, lhe medicassem, lhe oferecessem a comida. E então, depois de alimentada e limpa, vomitaria tudo no rosto de Rachel, liberaria a bexiga sobre os lençóis limpos e apuraria a secreção fétida de seus brônquios para cuspir na genitora quando esta se aproximasse. E, sorrindo, olharia para ambas com ar de vitória.

Constataria a derrota no rosto de cada uma quando, após um suspiro, se pusessem a higienizar tudo outra vez. Nessa hora, lançaria um olhar para seu mestre. Tinha certeza de que Oz lhe brindaria com um belo sorriso nos lábios, como se dissesse "Muito bem, minha discípula".

_ FIM _