Scent
Era só mais uma daquelas semanas - daquelas semanas que se repetiam sempre, três vezes ao ano, quando não sabia o que comprar para Ginny. Harry jamais fora particularmente criativo, e com o passar de todos aquele tempo, sua criatividade só ia diminuindo. Seus pés caminhavam a esmo, quase sem ver todas as vitrines pelas quais passava, quase perdido - dentro de si, na rua - quase sonhando com o que Hermione dissera.
"Compre algo diferente. Sei lá, inove, busque algo trouxa."
E ele corara, violentamente, achando que se referia a algo vindo de um sex shop. Mas não, sua tentativa de explicar o que pensou tinha gerado risadas que se tornaram tosse, que se tornaram lágrimas de tanto rir. Ron, então, era melhor nem lembrar. Bem, não que o amigo fosse deixá-lo esquecer em qualquer momento dos próximos dez anos.
Bem, depois de mais de trinta anos de amizade, é exatamente o que você esperaria que acontecesse, não é?
Sem sequer perceber que entrara na loja, começou a mexer em perfumes. Perfumes e sabonetes e óleos de banho, essas coisas que mulheres gostam - e gostavam ainda mais com o passar dos anos, com a chegada da idade. Nunca dera a ela nada daquilo, e achou que merecia um prêmio pelo momento de criatividade.
(Na verdade, sempre procurava razões para se dar "prêmios".)
A mocinha que o atendeu tinha cabelos cor de mel, e um nariz um tanto esquisito. Os olhos eram de um tom belíssimo de azul, mas os traços eram fortes demais para que fosse bonita. Quase despedaçava seu coração olhá-la. Ela parecia tanto com outra pessoa. Mas, claro, os anos tinham passado e tinham deixado marcas.
"Boa escolha senhor. O cheiro da Violeta é bom para equilibrar e tranqüilizar."
Harry engasgou enquanto ela fechava o embrulho, já estando com o dinheiro em mãos. Sua cabeça estava lhe pregando peças novamente, atos falhos, arriscando desfazer tudo que tentara manter a tanto custo. Riu consigo mesmo, pensando que se havia algo que ela não tinha era equilíbrio e tranqüilidade. A ironia cortante, na verdade, quase não lhe passou pela cabeça, enquanto a menina o oferecia uma segunda prova do perfume.
Tinha um cheiro fresco e suave. Não era o cheiro de pecado que ela exalava, tantos anos atrás.
Mas, não, não devia nem lembrar que aquelas poucas ocasiões aconteceram. Era óbvio que nunca poderia ter funcionado, e se lembrar disso agora era estimular uma tentação que não queria ceder.
(Não gostava de sequer pensar coisas más.)
Escolheu, sem sequer cheirar, outro conjunto daquele, e mandou embrulhar. Uma embalagem bela, em tons de vermelho, impossível de ser confundida com o azul-lilás da outra.
Saiu, andando perdido, até se perceber no mesmo lugar de sempre, na mesma posição de sempre, e xingou-se, achando idiota. Ele parou, dando voltas em frente à casa, antes de deixar o embrulho azulado na porta, tocar a campainha e se esconder sob a capa.
Ela abriu a porta, olhando em volta com alguma desconfiança. Viu o saco, o embrulho de presente, e quase sorriu. Ele pode vê-la olhar diretamente para onde ele estava invisível, e balançar a cabeça como quem já desistiu.
(Mas mesmo aquele quase sorriso, já era um prêmio. E ele se odiava por querê-lo, e se odiava por ganhá-lo. E se odiava ainda mais por saber que, em uma semana, voltaria com mais alguma coisa, só para vê-la sorrir.)
Chegou em casa mais cedo do que o normal, e Ginny sorriu cansadamente. Falou algo, que nem sequer registrou, dando para ela o presente de aniversário.
"Como sabia que era meu favorito?"
A voz da ruiva parecia vir de longe, e ele deu uma resposta rasa, mas foi o suficiente para que ela sorrisse e saísse da sala.
Harry sentou, o Profeta Vespertino nas mãos, mas sem conseguir olhá-lo realmente, imerso em pensamentos desconexos e quase-incoerentes. Perdido em uma loucura com cor de violetas e cheiro de pecado. Em uma lembrança da juventude que nunca seria mais do que isso. Em tocar campainhas para ver, sem sequer falar - ou tocar. Nunca completamente culpado, nunca completamente inocente.
Precisava mudar de rotina, concluiu, olhando a ruiva tornar a se aproximar, ainda sorrindo.
(Mas, claro, não mudaria. E ela continuaria recebendo presentes a cada aniversário de sua esposa.)
