1º Capítulo – O Anjo da Morte
POV - Shaka
Meu nome é Siddhartha Shakya Heaton. Um nome incomum, tal qual a minha origem. Sou indiano, nascido na cidade de Lumbini, na data de 19 de Setembro de 1981. Tenho, portanto, 26 anos. Meu pai é inglês, de Londres. Minha mãe nasceu em Darjeeling, também na Índia. Assim como eu, meus pais eram budistas. Os monges do mosteiro onde vivo acreditam que sou a encarnação de Buda, pois tenho uma marca de nascença avermelhada, no centro de minha testa, semelhante a um terceiro olho. Apesar dessa marca não ser única, a outra pessoa que a possuía infelizmente não está mais dentre os vivos. Em verdade, me sinto como o homem mais próximo de Deus; mas também o mais afastado Dele. Por que Buda reencarnaria após atingir a sua iluminação? Não creio nisso. Sou um homem, imperfeito. Quase perfeito, para ser preciso.
Meus pais e meu gêmeo partiram desta vida efêmera quando eu tinha apenas 6 anos. Fui levado por monges tibetanos para o Palácio Potala, na cidade de Lhasa, no Tibet. Conheci ali a criatura mais encantadora que poderia haver em Verso pelo Tao, não bastasse a bela alma que habita aquele corpo mortal. Lemuriano, descendente de uma casta quase extinta, e de beleza única. Não é nenhum segredo para mim, nem para ele, creio eu. Embora eu nunca tenha lhe dito, o amo. Palavras nem sempre são necessárias. Esse amor ultrapassa as barreiras do amor fraterno, e me tira de minha paz de espírito. Alegra-me e tortura-me. Embora esse amor seja dotado de tamanha amplitude, não pudemos ultrapassar uma última barreira: O Verso. Seria certo profanar tamanho amor? Ou o estaríamos sacralizando tornando-nos Uno? As respostas nem sempre são simples de se compreender. Minha mente desperta quando ouço sua voz: Ópio para minha mente, Patchouli para meu corpo. Que Buda preserve minha alma!
Pecados, muitos pecados. A vida não foi criada para ser tomada pelas mãos de simples mortais. Entretanto, em minha vida, usurpo tantas outras... Prefiro acreditar que sou a "Mão de Buda", tal como era conhecido em Lhasa. Pode o homem mais próximo de Deus tirar das criaturas o dom que lhes foi dado? Por que prolongar o sofrimento humano, quando posso extingui-lo? O fim do sofrimento só se dá com a morte. São cento e oito contas em meu rosário, a cada uma dessas almas ofereço cento e oito preces. Passo grande parte de meu tempo dedicando preces a elas, mas não me arrependo.
Em minha busca por almas perdidas, fui confundido diversas vezes com um anjo. Um deles me intitulou como "O Anjo da Morte". Sorri. Meu aspecto físico realmente se assemelha às imagens dos anjos ocidentais. Naquela noite, eu usava um manto branco, que pode ser facilmente confundido pelos ocidentais com uma veste celestial. Quando aquele senhor viu o rosário entre meus dedos, me fez seu último pedido: "Anjo da Morte, sei que me levará. Então faça uma prece por minha alma quando eu me for."
Há muito tempo tenho planejado a nossa fuga. Chegou o dia de ir embora daqui, e o mais importante de tudo: levá-los daqui. Mu e Hakurei viveram todos esses anos escondidos no palácio. O Exército Chinês pretende atacar-nos para levar os últimos lemurianos que restaram. Não pretendemos causar problemas aos monges, e, não bastasse o sofrimento deles por não terem uma vida fora do palácio, presos dentro de um quarto, tenho certeza de que meu amado sofre ao imaginar as represálias que aqueles que nos acolheram poderiam sofrer. Os lemurianos são inconfundíveis por seu aspecto físico, os cabelos de cor lavanda e os pontos sobre a testa são únicos.
Confesso que sou uma pessoa melancólica e pessimista. Às vezes penso que os Céus foram injustos comigo, tamanha a minha tristeza em ter ficado só neste mundo ao perder os meus pais e o meu irmão. Mu é minha única família. Eu e Hakurei somos a única família dele. Não o vejo como um amigo ou como um irmão, o vejo como Uno a mim. Sim... Somos Um em alma, estamos interligados para sempre, não há outra palavra para descrever o que sinto por Mu. O destino nos uniu no Palácio Potala. Se não fosse por ele, creio que minha vida não teria sentido. Ele passa seus dias trancado dentro de um quarto, e ainda me recebe com o mais belo sorriso que pude ver em toda a minha vida. Ele sofre em silêncio para não me chatear, e sempre tenta disfarçar as lágrimas que caem constantemente por seus olhos. Seus olhos... Minha alma dói quando vejo aqueles olhos verdes banhados em lágrimas. Meu maior desejo é fazê-lo feliz, ser capaz de fazer com que toda a dor dele seja substituída por felicidade. Ninguém neste mundo merece tanto a felicidade quanto ele, não creio que exista alguém no mundo tão bom como ele.
Faço muitas listas em meu quotidiano, e uma lista, em especial, foi a que me tornou capaz de nos tirar deste lugar: A lista das pessoas que devo matar. Nessa lista estão contidos os nomes de todos os malditos que ajudaram a dizimar a etnia lemuriana. Eles não merecem viver, sua sentença é a morte e eu sou o encarregado de executá-la. Eles não ficaram satisfeitos em tirarem de Mu tudo o que ele tinha, querem a vida de meu amado. Não tenho dó ou piedade, os executo com minha Vajrapani, sempre com um golpe aplicado milimetricamente sobre o chakra frontal. Cegos de alma não precisam de um terceiro olho. Pesquiso sobre cada um dos indivíduos em minha lista. Descubro quem são seus inimigos, e ofereço meus serviços a eles. Mato apenas quem está em minha lista. Os meus clientes podem pensar que sou um assassino qualquer, mas a verdade é que eu escolho as minhas vítimas, e tenho um enorme prazer em matá-las. A cada nome riscado, sinto como se a liberdade de meu amado estivesse mais próxima. Eu jurei para mim mesmo que um dia eu faria com que ele pudesse andar pelas ruas sem medo de ser perseguido ou morto, e sempre cumpro com as minhas promessas.
Não condeno os comunistas pela sua convicção política. O fato é que a grande maioria de minhas vítimas são comunistas e chinesas. Por tal motivo, sou adorado pelos capitalistas. Para a minha sorte, as potências capitalistas são poderosas. A forma como elimino pessoas inconvenientes e a feliz coincidência de que grande parte dos que restam em minha lista são justamente aqueles que o governo inglês deseja eliminar me levou a conseguir o apoio do governo britânico.
Um discreto helicóptero virá nos buscar daqui a algumas horas, não temos muito tempo a perder. Tenho nacionalidade inglesa por ter pai inglês, e tenho o direito de permanecer na Inglaterra. Mu e Hakurei são tibetanos, e já foi acertado que eles serão recebidos como asilados políticos. Há uma forma de garantir o direito de permanência de meu amado e seu pai no país de meu pai, conforme o agente britânico sugeriu, mas não sei se Mu concordará. Tenho medo de que ele me interprete mal ou pense que estou me aproveitando de sua situação como refugiado. Falo inglês fluentemente, e o ensinei a Mu e Hakurei, não teremos problemas quanto ao idioma. Minha aparência européia fará com que eu me misture aos ingleses sem me destacar. Afinal, no Tibet, sou o único loiro de olhos azuis do qual tenho conhecimento. Tenho medo de que Mu e Hakurei não se adaptem ao país. Porém, na situação em que estão, qualquer lugar do mundo, com exceção da China, seria melhor para eles. Pelo menos na Inglaterra eles não precisarão se esconder e temer que os soldados chineses cheguem a qualquer momento.
Fito mais uma vez minha bela Vajrapani, minha querida arma, feita por Mu. Pequena e extremamente letal, feita em ouro maciço. Não sei qual o valor material dela, mas é inigualável em estimação para mim. Vajrapani, como todas as obras de Mu, foi elaborada com perfeição, com ricos detalhes talhados e desenhos budistas. Com ela já tirei a vida de muitas pessoas, e é com ela que finalmente terminarei a minha extensa lista. Chegou a hora, finalmente. Guardo Vajrapani em minha bolsa e pego a minha pequena mala. Não tenho muitos pertences, mas tenho guardado todo o dinheiro que ganhei durante esses anos. Sigo até o quarto onde dormia junto a Mu por todos esses anos, me preparo para levá-lo dali junto a mim. Você será livre, meu amor, e não precisará mais se esconder mais dessa maneira.
Abro a porta do quarto, me deparando com um Mu ansioso e nervoso, sentado no chão, ao lado de suas malas, abraçado aos joelhos. Os olhos verdes fitam-me desesperados, com temor de que algo ruim nos aconteça em nossa fuga. Aproximo-me dele e agacho-me, tocando a face alva, fitando-o nos olhos. Ele deita o rosto delicadamente sobre a minha mão. Beijo-lhe os pontos lemurianos, tentando acalmá-lo, e nos abraçamos fortemente.
– Eu prometi que tiraria vocês daqui. Não tenha medo, tudo vai dar certo. Está tudo preparado. Você confia em mim?
Senti sua cabeça se mover em afirmativa sobre meu ombro, que encontrava-se molhado. Afastei-me dele o suficiente para fitá-lo novamente.
Era a hora de falar.
– Mu, eu não quero que você me interprete mal ou pense que quero me aproveitar da sua situação como refugiado, mas tenho que lhe dizer uma coisa. É uma proposta que tenho a lhe fazer, que nos trará muitas facilidades na Inglaterra. Você sabe que eu tenho nacionalidade inglesa e serei aceito sem problemas no país de meu pai, mas para que você possa permanecer na Inglaterra sem maiores burocracias, terá que se casar com uma pessoa de nacionalidade inglesa. – Fiz uma breve pausa, receoso em magoá-lo, mas continuei ao ver que ele já entreabria a boca para me fazer perguntas, e eu precisaria de muita coragem para lhe dizer isso.
– Mu, quero pedir a você que se case comigo. Não estou pedindo a você que se deite comigo; por favor, não pense isso de mim. Quero resolver o problema da sua permanência o mais rápido possível e me certificar de que você não poderá ser extraditado da Inglaterra.
– E meu pai? Como ele permanecerá na Inglaterra? – As orbes verdes encaravam-me com desespero.
– Eu já conversei com ele, e seu pai concordou em se casar com uma dos agentes que virão nos buscar, ela mesma sugeriu o casamento.
– Quem é essa moça? – Meu amado se surpreendeu ao saber que o pai havia concordado em se casar, pois ele nunca havia se interessado por alguma mulher desde a morte de sua mãe.
– Eu não a conheço pessoalmente, mas é a líder do grupo que virá nos buscar. É conhecida como Tenente Coronel Ananda, do serviço de inteligência das forças armadas britânicas. Não sei como ela é fisicamente, mas pelo que conversamos pelo computador, parece ser uma pessoa de personalidade agradável e prestativa. É apelidada de Rapunzel pelos militares, por isso imagino que seja uma moça de cabelos longos.
– Ananda? Por que essa mulher inglesa possui um nome sânscrito? – Meu amado fitou-me com curiosidade, e compartilhamos a mesma curiosidade em saber quem é a noiva de seu pai, aquela que me ajudou a planejar a nossa fuga.
– Ela me disse que seus pais eram praticantes de Yoga... E que ela ganhou esse nome porque sorriu alegremente quando sua mãe a envolveu em seus braços pela primeira vez. Eu ainda me recordo dele toda vez que escuto esse nome... – Cerrei os olhos e suspirei, lembrando-me da minha infância. Tirei do bolso da calça a única foto de família que eu possuía, sorrindo ao encarar os olhos azuis radiantes de meu irmão. Sempre brincalhão, os cabelos loiros à altura dos ombros lhe caíam sobre a face enquanto ele me convencia a sorrir para a foto. Aquela foi uma das poucas vezes em que eu sorri verdadeiramente.
– Ananda era tão diferente de mim, tão cheio de vida... Eu deveria ter morrido naquele dia, não ele. – Senti meus olhos úmidos, e os braços de meu amado envolveram-me em consolo.
Vajrapani (o nome que Shaka deu a seu punhal), o Detentor do Vajra, foi um dos 8 Bodhisattvas discípulos de Buddha. É o protetor dos Tantras, e acredita-se que a sua prática nos ajuda a integrar os conteúdos do inconsciente para lidar melhor com o seu lado obscuro.
Ananda significa "a perfeita felicidade", em sânscrito.
