Todo mundo sabe,

Que você quebraria seu pescoço para manter o queixo erguido.

Chin up – Copeland

Capítulo um – Danem-se as nuvens

A dor deveria ter me feito perder a consciência, estou convicta disso. Mas pelo contrário. Ela se tornara a única certeza de que continuo viva. Embora isso, estar viva, doa – e muito.

Meu corpo calejado implora para que eu ceda, e, pela primeira vez, minha mente concorda com ele. Afinal de contas, até mesmo teimosia tem limite.

Já não suporto. Cansada e ferida, a energia para me manter respirando parece grande demais. Já chega. Eu lutei bastante, fui forte por muito tempo. Agora chega, não é? Foi o suficiente... certo? Certo?

Morrer se tornou a opção menos dolorosa. A mais fácil.

Aceite-a.


"Tão azuis... Tão bonitos!", sua voz era rouca, "Olhe, olhe para mim".

Abro os olhos, de repente me lembrando dos motivos pelos quais devo continuar viva.

Lembro-me de minha família. Meu adorável pai que nunca, nem mesmo nos momentos mais difíceis de meu treinamento ninja, amaldiçoou-me por eu ter nascido menina e por ser sua filha única. "Você foi um presente", ele diria, "Será um acréscimo inigualável para a formação InoShikaChou. De uma forma que nenhum marmanjo conseguiria ser". "E com muito mais graça e beleza", completaria minha mãe.

O rostinho choroso e angelical de Sakura surge em minha mente. Ajudá-la a enxergar sua própria beleza fora, talvez, o ato de maior altruísmo que eu praticara na vida. Sim, ela trocara nossa amizade por um garoto que sequer conhecíamos direito. Mas percebo que já não sinto mágoa nenhuma em relação a isso, e descubro que não preciso perdoá-la – não há motivo. Deixar de ser minha amiga para tornar-se minha rival fora apenas a maneira que Sakura encontrara para sair de minha sombra e exercer sua própria individualidade. E, de certa forma, nós conseguíramos resgatar nossa amizade, não é mesmo? Sem ressentimentos, passo para o próximo item da lista.

Lembro dos meus amigos e companheiros de time. Primeiramente, do doce Chouji, com suas bochechas protuberantes e as mãos gordinhas. Como eu o adorava – caçoar dele sempre fora minha maneira de demonstrar afeto. Ao pensar nele, é inevitável não lembrar também do último integrante de nosso trio. Nosso outro amigo de infância.

Pensar em Shikamaru é como enfiar um punhal em meu peito. Porque, por mais que a maioria de nossos momentos juntos tenham sido bons, não consigo evitar a lembrança e, portanto, a seriedade do que ele fizera comigo.

Lembrar-me de meus entes queridos inunda meu coração de sentimentos. Amor, coragem, esperança. Mas pensar em Shikamaru como um elemento único, faz com que eu transborde em raiva. Muita raiva. Principalmente de mim mesma.

Ele mentira para mim, jogando no lixo anos de amizade e companheirismo, sem pensar duas vezes. Traíra-me. E de todas as maneiras imagináveis, sua traição era a causadora de meu atual sofrimento. A razão de eu estar em cativeiro sofrendo todo o tipo de violência, física e psicológica.

Ainda assim, apesar de todos os danos que me causara, Shikamaru tinha a audácia de me ferir mais uma vez.

Como ele se atrevia a ser minha última chance de salvação?

Eu sabia que ele era o único capaz de me tirar dessa. Eu não continuava em cativeiro por outro motivo. Se meus raptores fossem inimigos comuns, eu já teria conseguido me livrar deles. Mas não era o caso. Minha única chance era contar com uma equipe de resgate altamente qualificada. O que basicamente queria dizer a existência de um mediador e um estrategista competente nela.

Cerro os olhos e os dentes, engolindo minha realização com amargura. Sei que não tenho outra saída.

Eu o odiava. Ainda assim e mesmo assim, eu o espero. Eu deposito minha esperança em suas mãos, rezando para que ele não faça com ela a mesma coisa que fizera com meus sentimentos.

Destroçar.


As próximas horas de minha vida resumem-se à espera. Acordo, espero. Durmo, e espero mais. Afinal de contas, eu havia descartado a morte de minha lista de opções – o que significava que, agora, ela se encontrava bastante compacta. Não me restava mais nada, a não ser isto. Esperar.

Portanto, aguardo. Mesmo sentindo dor. Mesmo perdendo a noção do tempo. Sem saber se sentia fome ou frio. Silenciosamente, espero.


Ouço vozes. Mas estão tão distantes, e me parecem tão irreais, que demoro alguns instantes para identificá-las como gritos, misturadas a barulhos metálicos no fundo. É engraçado como meus instintos ninja acordam mais rapidamente que os normais. Esses sons são obviamente os de uma batalha.

O desespero me envolve como numa bolha e sinto-me sufocar dentro dela. Mais inimigos? Ou estes só representariam perigo para meus raptores? Sendo, portanto, meus... amigos? A consequência da inanição finalmente surge. Não consigo raciocinar logicamente. Mas apesar disto, meu cérebro parece lembrar de uma prece. Então a repito várias vezes, em silêncio, misturando-a com meus pedidos pessoais.

"Por favor, que não sejam mais inimigos'', porque ainda que eles matem meus raptores, eu sei que meu corpo apenas trocaria de proprietários. "Não quero mais ser machucada. Não sou capaz de evitar outra tentativa de estupro. Não quero que eles me toquem. Já basta o que fizeram com meu cabelo. Eles não podem me tirar isto também".

Minha garganta se fecha e sinto o nariz pinicar fortemente. Uma lágrima desliza por minha bochecha.

Por algum motivo, lembro-me das noites que passara com Shikamaru. E me odeio por isso. Mas eu sabia, e a verdade era tão inegável que ardia no âmago de minha existência. Eu fora muito feliz naqueles braços.

Sim, ele havia mentido e me traído. Mas tudo que acontecera entre nós fora consentido, sem violência alguma – apenas seguira a natureza de nossa vontade. Eu me entregara a ele por amor. E a ideia de ter homens desconhecidos e cruéis me tocando era simplesmente aterrorizadora.

Eu sabia que não tinha forças para resistir a outro ataque desse tipo. Tomo minha decisão.

Nada mais importa. Só sei que preciso manter alguma integridade física – meu corpo estava todo ferido, mas não queria que ele fosse também violado. Porque eu poderia viver com o trauma de ter sido torturada de todas as forma possíveis, físicas e psicológicas, mas não com a ciência de que eu havia entretido sexualmente os meus agressores.

Não possuo qualquer arma, obviamente. Mas procuro me concentrar, ignorando a fome e a fraqueza. Reúno minha última reserva de chakra na ponta dos dedos. Se eu conseguisse a rapidez necessária, eles teriam a força de um bisturi. Levanto a mão e calculo a distância até minha artéria femoral. Meu último recurso. Meu último grito de liberdade.

Chega.

Mas jamais consigo alcançá-la. Pois uma mão forte segura meu pulso.


Tenho vontade de chorar, pensando no quanto sou patética. Sequer conseguira tirar minha vida a tempo. Quanta ineficiência. Agora, meu corpo teria de passar por mais violência.

Porém, acabo reconhecendo esse toque antes mesmo de reconhecer a voz de seu dono:

- Ino.

Abro os olhos. Estou salva. Sei que sim. Mas isso não significa que a humilhação acabou. Meu anjo salvador era justamente a pessoa que me empurrara naquele poço de sofrimento.

Ele grita pedindo reforços médicos. Agacha-se ao meu lado e segura minha mão.

- Meu Deus – ele diz, a voz embargada. – O que eles fizeram com você. O que eles fizeram com você. Perdoe-me... perdoe-me! Meu Deus – Repete.

É a primeira vez em muito tempo que minha mente não precisa estar em alerta constante, a espera do próximo movimento do inimigo. Seria minha primeira chance, desde que eu fora capturada, de relaxar. Mas não consigo. Meus olhos continuam bem abertos.

Apesar de saber que ele jamais me machucaria - pelo menos, não dessa forma -, não consigo descontrair meus músculos e me render ao cansaço. Que eu finalmente lembro que é enorme.

Sinto-me tão cansada, tão fraca e tão esgotada que parece uma piada que eu vá perecer justamente agora. Mas não deixa de ser verdade. Parece que sou capaz de ouvir meu próprio corpo trabalhando para que meu coração continue batendo. Mas os esforços já não são assim tão eficientes – estão cedendo. Minha fonte de energia, minha vitalidade, havia acabado no momento em que eu tentara tirar-me a vida.

Shikamaru entra em meu campo de visão. Sua imagem está embaçada e sua voz muito, muito distante. Mas me concentro em seus olhos pequenos e escuros. Para os menos observadores, seriam apenas olhos negros. Mas não era o meu caso. Eu passara tantas horas fitando aqueles orbes que podia dizer com muita propriedade, que eles não eram negros. Eram cor de chocolate – daqueles bem escuros e amargos.

É claro que eu não o perdoei. Mas eu queria que a última coisa que eu visse fosse algo bonito. E os olhos dele definitivamente o são.

Meus pulmões param de funcionar e eu engasgo tentando respirar. Mas o ar me falta.

- Ino – Ele me chama, desesperado. – Não se atreva. Ino!

Eu teria sorrido, se pudesse. Não com escárnio, para que Shikamaru se culpasse até o último de seus dias pela minha morte. Mas apenas... como um sorriso. Para dizer que, embora eu não perdoasse sua traição, estava tudo bem.

Está tudo bem.


Morrer era algo bastante curioso. É claro que a dor ainda existia, mas eu já estava acostumada com ela. Sinto meu corpo leve e percebo que é como se estivesse flutuando para dentro de um sonho.

Na falta de um cenário bonito para morrer, minha mente me transportara para um momento em que as coisas ainda não eram complicadas. Era reconfortante saber que, apesar de tudo, lembranças não podiam ser alteradas.

Aquele seria para sempre um momento perfeito.

- Queria poder olhar as nuvens – ele comentara. – passeando pelo céu azul, num dia bem ensolarado. – Termina com um resmungo, tragando seu cigarro.

- Mas está chovendo – respondo, revirando os olhos e encarando-o em seguida.

Shikamaru fica em silêncio por alguns instantes. Finalmente, seus lábios assopram a fumaça. Sorrio, pensando que seu corpo estava cuspindo sua alma, como se nem ele fosse capaz de suportar a sua presença tediosa.

- Celeste – ele murmura, concentrado. – Quer dizer "o que é proveniente do céu".

- Tá. E daí? – Respondo com impaciência.

- Os seus olhos – ele explica – são azul celeste. É como olhar para o céu, como se fossem uma extensão dele.

Sinto meu rosto esquentar.

- Certo – digo, franzindo o cenho. – Mas eram as nuvens que você queria olhar.

- Que se danem as nuvens.

Nós rimos. E ele finalmente me beija.


Por algum motivo, volto para o presente. Fico um pouco desapontada, porque seria muito melhor ter continuado presa naquela lembrança. Mas ao lembrar que um dia fôramos felizes daquele jeito, era inevitável não lembrar também o que estragara tudo. E a lembrança se tornou tão vívida que foi como ter passado por toda aquela situação outra vez.

Traidor.

- Você não pode se vingar de mim desse jeito – Ele chorava. – Você não pode!

Mas a verdade é que eu podia, sim.


Notas da autora: E aqui estou com o prometido spin-off de Alcançar-te, dessa vez, explorando o universo ShikaIno. Enfim, como é de praxe, só continuo postando a fanfic se achar que vale a pena. Ou seja, imploro por suas reviews. Haha

Beijocas! Espero que gostem, mas lembrem-se que críticas são sempre bem-vindas!