Language: Portuguese
Título - Viagem ao Inferno
Sumário:
Idalino Nóbrega, um jovem de 26 anos, é enviado aos confins do Inferno.
Segredos sujos e verdades cruas são descobertos.
A transformação é iminente.
Há monstros a habitar a alma que não se conseguem controlar.
Nota de Autor:
A cidade e o multi-universo de Silent Hill, assim como os monstros que nela habitam e conceitos básicos inerentes aos jogos e filmes, é propriedade da Konami.
Significado dos Nomes:
Idalino – Aquele que viu o Sol
Nóbrega – Personalidade Múltipla; Sintonia com o Mundo que o rodeia.
OC(s): Idalino (Dali), Mariana, Matilde
Indisposição Matinal
O ar compacto do autocarro estava preenchido com a costumada panóplia de cheiros de variados perfumes, dos mais baratos aos mais caros e, passando, inclusive, pelo pungente odor corporal do cansaço. Para além do mais, o típico barulho das engrenagens e dos metálicos solavancos a que era sujeito, com as curvas apertadas, as lombas, ou as súbitas paragens para a entrada ou saída de passageiros, confundia-se com as conversas sussurradas entre companheiros de viagens ou os risos desinibidos dos estudantes.
A atmosfera de um dia normal numa das primeiras carreiras de transportes públicos que cruzava a paisagem montanhosa da província rural com a cidade mais próxima. Contudo, não era um dia normal para todos que naquele contíguo espaço conviviam durante os 45 minutos que durava a viagem.
"Faz hoje 8 anos que vivo sem luz… Como acha que eu me sinto, meu filho?"
O discurso de sua mãe não abandonava a cabeça de Dali que, constantemente, lhe interrompia a linha de raciocínio, ou melhor, a inexistência desta, sempre que os seus olhos tentavam percorrer os planaltos progressivamente urbanizados. O sentimento de culpa era avassalador, obrigando-o a fechar os olhos momentaneamente, a fim de atenuar a dor de cabeça que ameaçava formar-se a qualquer instante.
Porém, deveria sentir-se assim tão culpado? Afinal, estava apenas a tentar viver mais um dia rotineiro. Tinha trabalho para cumprir, sendo que, para não faltar, via-se obrigado a levantar-se por volta das 5 horas e meia da manhã. Além disso, bem vistas as coisas, neste momento não tinha assim tanto para se lamentar. Quase que recompensando-o por todo esforço que, muitas vezes contrariado, impingia a si próprio todos os dias, podia estar prestes a dizer adeus à sua posição como simples empregado de caixa de supermercado.
Dias antes, o seu responsável tinha-o informado que um colega da parte administrativa seria promovido em finais de Dezembro, e, como tal, vagaria um lugar no seu departamento para qual, induzira-o, ele, para além de um dos muitos candidatos, era um dos preferidos.
"Já era sem tempo…" – refletia consigo mesmo, enquanto uma vaga sensação de alívio lhe preenchia o peito. Melhor remuneração, um horário mais flexível e confortável, e, a cereja no topo do bolo, uma posição na qual não teria de aturar clientes das mais variadas espécies.
Verdade seja dita, sempre se esforçara por ser simpático e agradável, coisa nem sempre fácil, com a frustração do curso de advocacia por terminar e a solidão amorosa que, por vezes, o assaltava. Contudo, nunca fora um ser propriamente social. "Sim…pode ser que consiga, finalmente, o crédito e arranje um carrinho baratinho, ou até um apartamento, quem sabe…" – continuava, recostando-se no assento gasto do autocarro, cruzando os braços sobre o velho casaco de fazenda – "…já estou demasiado velho para isto." – concluiu, mirando de canto a azáfama entre os estudantes na parte traseira.
- Eu sento-me aqui! - a voz aguda de uma criança afastou-o dos seus pensamentos, assustando-se com o recente movimento ao seu lado.
- Mariana! Já para a minha beira! – alertou a mãe em tom ameaçador, sentada poucos bancos a frente.
- Olá! – saudou a sorridente menina, com os caracóis loiros cobertos pela lã cor-de-rosa de um gorro da "Hello Kitty" – Chamo-me Mariana. E tu?
- O-Olá. – respondeu, hesitante e surpreso por tanta simpatia. Retribuiu o gesto, sorrindo timidamente, escondido por trás da lã escura do seu cascol. – Idalino. – a voz soou mais ríspida e rouca do que o costume. Clareou a garganta discretamente.
"Que raio…". Havia algo de estranhamente familiar e cativante naquela criança, contudo, igualmente perturbador. Os olhos azuis, fixados nele, ameaçavam ver para além da sua própria alma.
- Ida-quê? – retorquiu, enquanto balançava as pernas fininhas, cobertas por uma meia-calça colorida que surgia da minissaia de ganga.
- Mariana! Eu já te avisei! – a voz da mãe, mais elevada, atraiu a sua atenção.
Aqueles diamantes focavam a figura materna, visivelmente irritada. Porém, não se deteve. Antes, muito pelo contrário. Escondia o riso juvenil com as mãos frágeis.
– Não me obrigues a ir aí! – continuou. O rubor na face denunciava o desconforto de quem, para além de estar a ser desafiada pela filha de 7 anos, se via no centro das atenções. Desconforto, esse, partilhado pelo jovem de 26 anos.
- És simpático. – elogiou a pequena, voltando a concentrar-se no homem a seu lado.
- O-Obrigado, acho eu… - respondeu, observando de canto, com algum receio, o comportamento da mãe da Mariana. A mulher, apesar de um pouco roliça, aparentava ser frágil e mostrava-se bem vista, demasiado até para viajar ali, com o cabelo castanho-claro, preso sobre o seu ombro esquerdo, a pender sobre a gabardina preta e brilhante que envergava. Porém, as aparências enganam e, pela agressividade da sua voz, parecia cada vez mais instável.
Progressivamente, o barulho inicial foi substituído pelo silêncio, ocasionalmente interrompido por tímidos comentários entre os viajantes que, atentos, observavam a cena. Dali era capaz de jurar que vira o próprio motorista a olhar de relance, repetidamente, pelo espelho retrovisor.
- Eu perdoou-te. Não te preocupes. – sussurrou a menina.
- O quê? – inquiriu, confuso. "Afinal que raio se está a passar? Terei ouvido bem?"
- Estás perdoado. – confirmou, sem tirar os olhos das botas cor-de-rosa – Só tens que me prometer uma coisa…
- Mariana! – interrompeu a mãe. Os avisos mostraram-se inúteis, obrigando-a a levantar-se do seu assento. O tacão das botas era pequeno, contudo, suficiente para dificultar o equilíbrio e, consequentemente, a sua movimentação, atrasando-a.
- Aah.. – gemeu Dali, que, devagar, massajava com a mão direita as têmporas. Fechou os olhos. Tudo começava a mover-se demasiado depressa. A dor de cabeça desenvolveu repentinamente, tornando-se mais forte. A ânsia de vomitar crescia no fundo do seu
estômago, e os sons exteriores eram abafados pelo tambor incessante do seu ritmo cardíaco.
Todavia, um toque morno e suave acordara-o momentaneamente do seu desespero, levando-o a abrir os olhos num reflexo inconsciente.
A intensidade com que a criança o olhava assustara-o. Era feroz e escondia um medo animal, um desespero verdadeiro. "Tudo isto por causa de mãe? Será que ela lhe bate?" A menina apertava, agora, com as duas mãos, a sua, já calejada com o trabalho e ressequida pelo frio. Apesar de pequenas, conseguiam tornar o aperto doloroso.
- Não me abandones! Estás a ouvir? – o azul, outrora brilhante, estava turvo. – Não voltes a abandonar-me…
- MARIANA!
Uma buzina. Uma travagem. Um estrondo.
E, de repente, todo o mundo mudou. E, aquele, deixou de ser mais um dia normal e rotineiro numa das primeiras carreiras de transportes públicos.
- Bom dia, mãe. – saudou Dali ao entrar na cozinha.
O espaço era exíguo, mas acolhedor. O cheiro a pão fresco e chá de tília inundou-o ainda no corredor.
Tal como esperava, Matilde sentava-se num dos bancos que rodeavam a pequena mesa de madeira. Aconchegada com um roupão laranja-claro, enquanto brincava vagarosamente com a saqueta de ervas. Era adepta de chá desde criança, habituada pela sua avó. Tília e camomila sempre foram os seus preferidos.
- Bom dia, Idalino… - a resposta pouco passava de um sussurro, com a voz frágil, ausente de qualquer força.
Assim que se aproximava, reparou nas fortes olheiras que decoravam o olhar cansado de Matilde. O rosto, enrugado e esgotado, emoldurado por um emaranhado oleoso de ondas castanho-escuro, já tivera, definitivamente, melhores dias.
Na verdade, aquele era o aspeto mais provável que todos nós temos assim que nasce um novo dia. O que mais o intrigava era a sua presença ali, àquela hora. Afinal, apenas tinha que abrir a loja por voltas das 9h, e, mesmo tendo os seus momentos de vaidade, não demoraria 3 horas a arranjar-se.
- A pé? A esta hora? – decidiu perguntar Dali, começando a preparar o seu pequeno-almoço.
- Não estava a fazer nada na cama. – disse, prontamente. O tom era azedo.
Durante a breve conversa, a matriarca não retirara os olhos da caneca de chá que, pelo que se observava, já deveria estar frio.
Subtilmente, o ambiente tornara-se mais penoso. Havia um ressentimento sombrio no próprio ar.
"A que horas se levantou afinal?" – indagou. Porém, acho melhor não o perguntar diretamente, dada a aparente má disposição e pesada atmosfera.
- Dormiu mal?
- Pura e simplesmente, há coisas que não se esquecem…
- Desculpe? – questionou Dali, parando de verter o café numa chávena amarela. Houve algo de deslocado naquela resposta que lhe chamou a atenção. – Como disse?
- Há coisas que não se esquecem… - repetiu, gelando-o com o seu olhar. Os olhos castanhos mostravam-se baços, pedras de vidro, denunciando o vazio profundo e gélido que a habitava naquele momento.
- O que quer dizer com isso, mãe?... - algo no seu subconsciente avisou-o de que aquela pergunta não seria uma boa ideia. Porém, a confusão genuína, e patente na sua voz, fez com que arrisca-se.
- O que quero dizer com isso?! – a raiva tornara-se visível na sua voz, agravando-a, transformando-a. Matilde levantou-se de rompante, desviando o roupão com o movimento brusco. – O QUE QUERO EU DIZER COM ISSO?! – gritou.
Bateu os punhos na mesa, tombando sobre esta a caneca de chá. Um silêncio tenso pairou sobre ambos, filho e mãe, apenas interrompido com o escorrer suave do chá derramado. Uma cascata longínqua entre dois rochedos. Os deltoides e os trapézios contraíram-se com a pressão, os tendões do pescoço sobressaíam. Dali sentia-se como uma presa encurralada por um predador, pronto a atacar a qualquer momento.
Todavia, não foi um rugido feroz a cortar o silêncio. Foi, sim, um soluçar singelo, um choro derrotado, filho de uma mágoa que, por muitas vezes que se derrame, nunca perderá a fonte.
Matilde levou as mãos ao rosto, tapando os olhos avermelhados e as lágrimas que escorriam lentamente.
- Não percebe mesmo, pois não? – soluçou, retoricamente, com a voz fraca, quase inaudível e abafada. Uma angústia profunda irradiava de cada silaba.
- Mãe… - Idalino não sabia como reagir. Segundos antes o seu corpo estava tenso, chocado com o breve relâmpago de fúria, assimilando o cenário que se construía sob pressão. Por outro, via agora a sua mãe chorar desalmadamente, indefesa, angustiada.
- Sente-se bem? – perguntou, tentado aproximar-se lentamente da pobre mulher.
- Faz hoje 8 anos que vivo sem luz… Como acha que eu me sinto, meu filho? – a tristeza dominava agora sobre a raiva. Uma centelha de luz brilhava no olhar pesaroso, um fogo do inferno.
Impressionado, manteve-se imóvel e em silêncio. Contudo, quando ainda tentava apreender tudo o que acontecera, ouviu passos preguiçosos ecoar no corredor. Preenchendo o silêncio, este interrompido ocasionalmente com brandos soluçares chorosos.
- Idalino… - a voz do pai estava cansada, mais rouca do que o habitual. - …não se atrase. – aconselhou-o, secamente. As olheiras profundas denunciavam a noite sem descanso.
Uma forma delicada de lhe pedir que se retirasse. E, sem o refutar, obedeceu, cabisbaixo.
Todavia, enquanto abria a porta de entrada, conseguiu ouvia-la chorar, distante, tremula, agora nos braços do seu companheiro de há 30 anos.
Um maremoto de culpa inundou o seu coração inconsciente nas trevas.
