DISCLAIMER: Blood Plus e seus personagens não nos pertencem, isso é apenas um fanfic despretenciosa com intuito de divertimento.

Boa leitura!!!

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Monstro coisa nenhuma

- O que está fazendo,bambina? Saia já daí! Volte pra casa! Hein!!!

A mulher correu, sacudindo as saias enormes, enquanto subia a colina verdejante. Ignorando os brados agudos dela, a menina continuava observando à frente, com os olhos vidrados. Só de desconcentrou quando sentiu os ombros sendo sacudidos pelas mãos gordas da tia, que a levantava e guiava aos trambolhões.

- Téssera! Bambina sem jeito, vamos embora daqui! – olhava para trás afoita, e diminuía o tom da voz como em um segredo – Por acaso não tem medo do monstro que habita aquela ravina tão próxima? E se ele te vê?

Téssera não respondia. Apenas tentava olhar para trás, entre as saias da mulher, enquanto a colina diminuía a cada passo. Sorria por dentro. Agora sabia. Havia visto.

Monstro coisa nenhuma.

Era lindo como um anjo barroco.

Curiosa, sim, mas não só isso. Sentia falta daquela ravina. Gostava de ficar ali, pintar ali. E até ver o pôr-do-sol. Mas, desde que Giácomo Mambertini – o balofo filho da confeiteira – viera com aquela história de monstro, criara-se um mistério ao redor da ravina e todo mundo estava proibido de chegar perto. Proibido pelo próprio medo, ou pelo medo dos pais.

Mas como uma ravina tão linda poderia ser habitada por um demônio? Além disso, ora, dane-se. Chegara ali primeiro, não tinha nada contra o tal monstro, e ele poderia ficar caso não atrapalhasse. Ela não tinha medo para proibi-la.

Estava ficando engraçado ver a tia fazer a mesma coisa quase todo dia. Achou bom, assim ela ia emagrecer bastante, subindo e descendo a colina para resgatar a sobrinha, e poderia se casar. Era uma boa mulher, merecia um bom marido e filhos bonitos e saudáveis.

Não uma filha encrenqueira como Téssera, definitivamente.

O pai de Téssera teria se surpreendido se soubesse que a idéia partira dele.

- Monstro, é? Por que não leva uns bolinhos pra ele? Heh!

Embora avoado, o pai era um gênio. Cético, mas um gênio.

As estrelas estão brilhando, e todos dormem despreocupados em casa. Agora é a hora. A parte mais fácil é sair. A mais difícil já havia passado – fazer os bolinhos. Só precisava correr para a ravina, como sempre fazia, e não era a primeira vez que trilhava o caminho à noite.

Mas, quando se aproximou, notou algo diferente.

Música. Começara baixinho, recatada. Mas, conforme subia a colina, o vento frio trazia mais e mais acordes doces que enchiam a noite. Concentrada como em procissão, Téssera andava pé ante pé na direção do som. Até se esquecera do monstro.

Respirava devagar e pisava macio, não por sentir perigo por perto, mas para não prejudicar o delicado equilíbrio da música perfeita. Mais linda que a das igrejas de Florença. Mais emocionante que as orquestras de Roma. Música do céu.

Música de anjos.

Quando percebeu, já estava lá embaixo, na ravina, e o som maravilhoso preenchia tudo. Não fechou os olhos; estava bem à sua frente, e, por um momento, parecia uma visão fora desse mundo.

O lindo anjo de semblante sério que domava as cordas do instrumento, parecendo ser a materialização da música, não poderia ser real.

Não saberia dizer por quanto tempo ele tocou, até que os sons se recolhiam a cada vez menores espaços, como se voltassem para casa. Quase poderia jurar que vira as notas, em cores cintilantes, seguirem para dentro do instrumento, como os ratos do Violinista de Hamelin.

Então, ele a encarou diretamente. Perdeu o ar por um instante. Ele apontou os próprios olhos.

Só então ela percebeu que lágrimas escorriam dos seus olhos. Limpou-as, envergonhada.

- De-desculpe, eu...eu. – não sabia o que dizer. Ele continuava a olhá-la, sem emoção definida no rosto e nos gestos. Mal piscava.

Téssera lembrou-se do porquê de estar ali.

- Eu trouxe...pra você. – mostrou a vasilha de bolinhos. Como ele continuasse em silêncio, ensaiou se aproximar um passo. Como ele continuasse imóvel, continuou se aproximando, e lembrou-se de sorrir.

Ele pegou a vasilha e olhou do conteúdo para a garota. Silêncio. Téssera pensou se ele falaria a sua língua, mas ficou sem jeito de perguntar diretamente.

- Qual é o seu nome? – arriscou.

- Me chame Hagi. – respondeu, depois de um tempo.

- Me chame Téssera! – sorriu, animada com o primeiro contato e com uma voz tão linda.

Podia vê-lo melhor, mais de perto e sob a luz da Lua. Agora tinha certeza de quê havia algo de mágico nele. Começou a pensar que não poderia ser um anjo da guarda, mas devia ser um anjo importante. Para ter uma aura assim. Mais uma vez, tentou ser sutil nas suas curiosidades.

- Eu pensei...que todos os nomes de anjo terminavam em "el".

- E terminam. Eu não sou um anjo.

- Mas...só anjos tocam assim... – não se convenceu, partindo logo para o argumento cabal. Em resposta, ele esticou a mão e apertou o ombro dela de leve.

- Sou apenas...humano.E muitos podem tocar assim, e melhor. Você verá.

Por um tempo, ela ficou paralisada, sem saber o motivo. O simples toque da mão dele quase a desfalecera. Só voltou a si quando ele a soltou, e ela pôde notar a mão enfaixada com a qual tocava. Sorriu calmamente.

- Senhor Hagi, por que o senhor se esconde aqui? Florença é uma cidade de beleza e arte. Sua música merece. Todo mundo ia gostar.

- Estou só de passagem. Até resolver um assunto.

Téssera entristeceu-se imensamente por um instante.

- Deve ir para casa. Já é tarde.

- Eu sei...hum...eu... – sorriu – Eu sabia que era mentira. Que não havia monstro nenhum.

Ele não respondeu.

- Senhor Hagi...eu... não vou dizer nada. Mas... –corou – posso voltar...de vez em quando...para ouvir sua música?

Levantou os olhos para ela, a expressão enigmática.

- Prometo não atrapalhar...nem trazer problemas...bem...enfim...tchau!

Começou a se retirar, envergonhada.

- Téssera.

Ela estacou.

- Faça como preferir.

- Sim! – sorriu, radiante – Obrigada, senhor Hagi! Boa noite!

Saiu correndo noite adentro. Hagi ainda poderia ouvir seus passos por muito tempo. De quê adiantaria negar? Ela voltaria, de qualquer forma. Pessoas com olhos assim sempre voltam...

Naquela noite, Téssera sonhou com óperas e anjos de asas multicoloridas.

- Garota, que imaginação fértil!

Os pais de Téssera olhavam com interesse para a última aquarela da filha. Nela, um teatro de ópera tinha como platéia apenas anjos, de asas e túnicas das mais variadas cores.

- E o que são essas linhas coloridas atravessando a orquestra? – a mãe perguntou.

- São as notas musicais. Cada uma delas é de uma cor diferente. Como a música toma o salão inteiro, todos têm todas as cores nas roupas e nas asas também.

- Fantástico. – o pai se encantava – Filha, sabe que não foi a primeira a pensar na relação entre música e cor?

- Não?

- Grandes mestres pintores já estudaram a fundo essa relação. Ah, eu vou te trazer um livro do Kandinsky e explicar essa história! Espere-me à noite!

Levantou e colocou a boina e o casaco, saindo inspirado.

- Até mais, amores! Ah, isso é o que Florença produz! Encantador!

Téssera sorriu por dentro. Os pais sempre a encorajavam nas suas artes, e, mesmo sendo um matemático cético, seu pai era um florentino. Está na veia. Mas nunca o tinha visto tão maravilhado.

- De onde tirou essas idéias todas, bambina? – a mãe alisava-lhe os cabelos.

- Sei lá, mãe... –disfarçou – Só sei que tive um sonho semana passada. Apesar de que, na minha cabeça, era bem mais bonito... – fitou o papel, um pouco decepcionada.

- Pois eu achei maravilhoso. Vou até emoldurar! Vamos à cidade fazer isso, e passar uma tarde agradável! Ponha seu chapéu!

Adorou a idéia. Passear com a mãe era uma das coisas que mais gostava de fazer, apesar de ela ficar sempre parando em todas as vitrines... mas sempre compravam flores e tomavam café com creme. Não pôde esconder a enorme satisfação que teve ao ver seu desenho emoldurado como os quadros no museu.

O pai realmente trouxe o livro do tal Kandisnky, que, segundo ele, foi um russo muito inteligente que criou muitas coisas interessantes. Ele devia ter sido mesmo, Téssera concluiu, já que não conseguiu entender quase nada dos escritos dele até a hora de dormir. Por isso, seu pai sugeriu que ela lesse devagar, sem pressa, não era para se preocupar.

Não era bem com isso que ela estava preocupada, e não conseguiria mesmo entender o livro com a cabeça tão longe. Contava os segundos para o momento em que todos estivessem realmente dormindo e ela pudesse saltar a janela e danar-se a correr até a ravina.

Sem esquecer o quadro e o Kandinsky, ela chegou à colina, afoita, mas tudo era silêncio. Será que ele já tinha ido embora? Desceu até a ravina, para ter certeza.

- Senhor Hagi? – chamou com cuidado – É a Téssera...hum. – baixou os olhos, sentindo um nó na garganta se formar e logo se esvair, sufocado pelos passos que ouvia atrás de si.

- Senhor Hagi? – virou-se, feliz por encontrar aqueles olhos de novo.

Mas não eram os olhos dele. Não era um anjo. Nem mesmo humano, ou perto disso.

- Demônio.

Ela estava errada. Havia um monstro, sim. Enorme, de olhos vermelhos, garras afiadas e dentes enormes. Contudo, todo o medo que a horrível visão impostara nela, petrificando-a, converteu-se em fúria por conta de um único pensamento.

- O QUE VOCÊ FEZ COM O SENHOR HAGI???

O grito entre lágrimas foi como o gatilho para a criatura atacar, lançando-se sobre Téssera em uma investida faminta. Não conseguia parar de olhar, mesmo com o pavor de uma morte horrível à sua frente.

Então, aconteceu. O monstro caiu a meio caminho. Algo saltara sobre ele, de espada em punho, impedindo sua ação maligna.

Téssera não pôde deixar de se lembrar da história de Gabriel.

O anjo. O salvador. O matador de demônios.

Com movimentos fluidos, a dança da batalha media as forças graciosas do anjo contra a fúria troglodita do monstro. A espada silenciosa ganhava vantagem a cada segundo.

Só anjos lutam assim.

- Senhor Hagi... – ela antevia o momento em que o Mal cairia derrotado, com a espada invencível do Bem cravada fundo em sua existência.

Mas não foi assim que aconteceu.

Em um milésimo de segundo, o demônio cravou com precisão suas garras no adversário, fazendo o sangue jorrar, vermelho e quente. Ensandecida pela visão, a criatura arremeteu enquanto o outro ainda sentia o golpe.

Mas sua mordida escancarada foi repelida ao mesmo tempo em que as faixas da mão de Hagi caíam ao chão.

Téssera caiu sentada logo depois, incapaz de sustentar os joelhos.

A mão monstruosa prendeu-se ao focinho da besta, que, desesperada de dor, balançava-se e produzia grunhidos horríveis. Com precisão e força, a cabeça do monstro foi separada do corpo em um só golpe. O sangue jorrou..

O corpo sem cabeça continuou tentando golpear, e teve de ser retalhado em todos os pontos para que desistisse e caísse imóvel, derrotado.

Sob a luz da Lua, era claro e visível.

Não um anjo. E não apenas humano.

Nesse momento, teve medo que ele a visse. Queria correr, se conseguisse. Começou a rezar baixinho para que verdadeiros anjos aparecessem e a levassem dali, em segurança. Fechou os olhos.

Podia ouvir os passos dele se aproximando, devagar, caminhando no mar de sangue. Ele iria arrancar sua cabeça também. Só podia chorar a respeito.

Então, o baque surdo a forçou a abrir os olhos. Ele caíra na poça de sangue, imóvel. Viu a extensão do rombo aberto pelo gigante.

- Os monstros...se mataram... – teve vontade de rir, feliz com a providência divina. Virou-se de súbito, energizada, para se retirar, e seus olhos encontraram o violoncelo, até agora oculto pelas sombras. Ele brilhava como uma estrela, como um amigo do Sol. A melodia intensa voltou com tanta força à mente de Téssera que parecia ser o instrumento a entoá-la sozinho.

- Só...anjos... – o nó na garganta voltou – Só anjos. Tocam assim. – começou a tremer e a soluçar, mas finalmente conseguiu se levantar – SENHOR HAGI!!! – largou o livro e o desenho que ainda mantinha junto ao peito.

Correu até ele, em lágrimas, patinando no sangue. Segurou sua mão humana com força, fitando o rosto sem expressão.

- Desculpe... me perdoe, senhor Hagi... o senhor me salvou, e eu...eu... – desatou a chorar, ajoelhada ao lado dele.

- Téssera...?

- Sim! – levantou a cabeça de um pulo, surpresa por vê-lo de olhos abertos. Ele também parecia um pouco surpreso.

- Ainda está aqui...

- Senhor Hagi, não fale... – engoliu o choro – Vou buscar ajuda... agüente, por favor!

- Não – segurou o braço dela – Apenas... – engoliu em seco, contendo a dor – apenas me alcance o punhal, por favor.

- Ah...sim! Sim, agora mesmo! – correu até um pedaço do monstro morto, onde o punhal jazia coberto de sangue. Sem se importar, o pegou e levou imediatamente ao dono.

- Senhor Hagi, cuidado! – alarmou-se ao vê-lo sentado.

- Obrigado. – pegou o punhal e esticou o braço monstruoso. Téssera prendeu a respiração.

Hagi fez um corte na mão inumana, deixando o sangue escorrer para o ferimento. Só aí Téssera notou que havia uma camada negra se formando ao redor do rombo, que parecia ácida e tinha um cheiro horrível. Conforme o sangue entrava em contato com o ferimento, o negrume se desfazia com um som borbulhante. Como Hagi segurava o ar como quem sente muita dor, Téssera voltou a segurar-lhe a mão com afinco.

A operação pareceu durar um século, até Hagi relaxar. Olhou para Téssera, que ainda tremia muito, e não o soltava de jeito nenhum.

- O senhor vai ficar bom? – perguntou como se faz a alguém muito querido. Ele fez que sim com a cabeça.

- Que bom... – baixou os olhos, chorando baixinho, ainda envergonhada de sua atitude – Por favor...me perdoe, Senhor Hagi...fui horrível...

- Perdoar o quê?

- O quê...? – engoliu o choro – Eu tive medo... que fosse um monstro...quase... quase larguei o senhor aqui...sozinho, depois de ter me salvado...pensei...coisas...

- Mas não largou.

De repente, dissipou-se toda a culpa e descrença que ela tinha em si mesma.

- Não há o que perdoar. – Hagi foi se levantando devagar, indo na direção do violoncelo. Téssera o acompanhou o caminho todo. Antes que ele se encurvasse para guardar o instrumento, ela adiantou-se.

- Por favor, senhor Hagi. Eu tomo cuidado. – disse, trazendo a caixa. Ele acedeu e sentou-se em uma saliência da ravina, encostado na parede.

O cheiro de sangue começou a deixar Téssera levemente zonza. Pensou em como faria para jogar fora suas roupas e tomar um banho assim que chegasse em casa, para que ninguém visse aquilo. Agora, com a calmaria, tudo começava a fazer sentido. O assunto do músico em Florença agora estava morto.

- Caçadores de monstros... – disse baixinho. Olhou a mão deformada de Hagi, já sem susto, mais focada no sofrimento daquela cruz.

- Senhor Hagi, o senhor... vai embora? – mirou o ferimento, que ainda estava feio.

- Alguns dias. Só esperarei que se feche...

Em silêncio, Téssera recolheu suas coisas, cuidando para não sujá-las de sangue. Voltou-se para ele, sorrindo com ternura.

- Obrigada novamente, senhor Hagi.

- Não há o que agradecer.

- Eu... preciso ir, é tarde. Mas não esquecerei.

Hagi fechou os olhos. Téssera pensou que ele devia estar exausto.

- Boa noite, senhor Hagi. – saiu, tomando seu rumo. Não tinha por que correr.

- Boa noite, senhorita. – ainda pôde ouvir, entre as sombras. Apertou mais suas coisas junto ao peito, sentindo-se aliviada e perdida em pensamentos.

- Sério, distante, frio... mas tem um coração humano, apesar do peso que carrega. Ele quase não fala, mas seus olhos cantam. Sua alma canta.

- Ah, o que estou dizendo? – confidenciou para a Lua – Pretendo competir com os poetas?

E naquela noite ela sonhou com a parábola do filho pródigo, que errou, voltou e foi perdoado.

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Notas finais: escrevi essa fic em 2006 e só agora inventei de postar...tem poucas fics de Blood Plus em português!Mesmo que esta seja bem esquisita, acho que vale a pena...resolvi dividí-la em dois capítulos para não ficar muito longa, então, conclusão no próximo!