Enigma

Eu ainda me lembro.

Eu não posso mais te falar. Não estou mais aí, e nem ele. Mas não tem importância. Agora eu só observo. Como sempre fiz. Só lamento não ter podido vê-los um pouco mais. Assisti-los. Como um tipo de história triste, daquelas que te fazem sentir vontade de chorar, mas não parece certo derramar lágrimas, porque os próprios personagens não derramam.

Mesmo assim, só pra te irritar, eu ainda me lembro. Eu ainda sei.


Por muito tempo, na Wammy's House, eu não o conheci.

Mas eu conhecia você.

Todos conheciam. Você; seus brinquedos, suas melhores notas e sua pele excessivamente pálida. O vício em enrolar sucessivamente as madeixas, os olhos brilhando de indiferença. As roupas e os cabelos e o jeito branco. A voz branca. Você era todo claro.

E então ele veio.

Ele sempre esteve lá, na verdade. Mas ele era só o segundo lugar, e nunca me preocupei em saber nada ao seu respeito.

Foi numa partida de futebol que o conheci.

Ele jogava bem, eu pensava, mas agora sei que não era isso. Ele não era especialmente bom, mas ele corria atrás da bola o tempo todo e os olhos dele brilhavam tanto, tanto, tanto que as outras crianças saíam da frente. E então ele marcava um gol e ele nunca comemorava com os outros. Ele sorria e ele continuava porque ainda não tinha ganhado. E quando ele ganhava, eu lhe dava os parabéns, com um sorriso tranqüilo que logo se tornou automático ao falar com ele.

E quando ele decidiu que eu era um bom goleiro, ele passou a vir me chamar, naquela sala quase sempre vazia a não ser por nós dois. Você brincava com os seus bonecos e dados e quebra-cabeças e eu jogava videogames, e nós éramos errados quando ele chegava lá, os olhos azuis brilhando tanto que ofuscavam o resto do rosto. E eu ria e desligava o videogame e me levantava. E ele ria de volta.

E você erguia os olhos do quebra-cabeça e observava.

E aí ele parava de sorrir e te encarava.

Foi naquela época que o seu branco se manchou.


Manchado. Eu percebi, ele não.

Mas você estava. Eu notei isso. Você começou a fazer coisas que eu não sabia que era capaz. Você passou a levantar os olhos para mim e me observar quase com interesse, quando ele vinha me buscar. Você passou a olhar pela janela quando nós estávamos lá fora, quando nós jogávamos e ele ganhava e os olhos dele brilhavam. E você via os olhos dele, você via tanto, porque os olhos dele brilhavam tanto e você não conseguia parar de olhar.

Às vezes, quando nós entrávamos novamente na Wammy's House, você continuava a olhar. Era preso naquela imagem, no terreno do orfanato depois dele. Porque você tinha aprendido, melhor do que eu, que ele era alguém que marcava um antes e depois em tudo que tocava, em tudo que encarava com aqueles olhos azuis.

E você, com o tempo, viciou-se.

Tornou-se obcecado, naquela indiferença usual. Por todos os antes e depois que ele causava, por decorá-los, por tê-los para si. E os tinha, os observava, sugava-os naquelas observações que pareciam tão insignificantes. Insignificância, aquela, que te tirou toda a sanidade, ou o que ainda restava dela.

Eu tinha doze anos quando percebi que a mancha em seu mundo branco era azul. Da cor dos olhos dele.


Os cabelos dourados e lisos que quase cobriam os olhos. Os próprios, azuis e brilhando tanto, da mesma forma como os seus não sabiam fazer. A voz, que muitas vezes era inútil. Tinha o papel substituído pelo olhar. E os gestos. Os gestos que o compunham, que permitiam que fizesse o que queria. Os gestos que, muitas vezes, agiam por si só.

Para você, ele sempre foi muito simples.

E, mesmo assim, naqueles momentos em que ele passava na sala para me buscar, lá estava você. Lá estavam os seus olhos. E você observava e observava e observava.

Às vezes, ele te encarava de volta. E foi naqueles momentos que eu soube que você já não podia mais seguir sem isso.


Ele nunca falou sobre você.

Apenas te encarava com ódio, nas vezes em que vinha me buscar naquela sala. Mas nunca me explicou. Nunca sequer o ofendeu, nem uma única vez que fosse. Nunca te bateu. A única coisa que ele fazia era parar e olhar. Depois, me chamava, indo em direção à porta.

Uma vez, eu te perguntei.

Perguntei por que ele te odiava tanto.

E a resposta foi É porque Mello tem inveja. É por isso que me odeia.

E eu ri.

Você, Near, era um estúpido.


Porque, naquelas horas em que você tentava decorar os olhos dele, ele também te observava.


Ele nunca te entendeu.

Não era ódio que o movia, apenas curiosidade. Ele te encarava com aquela raiva quando vinha me chamar pro jogo para te olhar. Porque era tudo em você; aquela sua estranha mania com os brinquedos, o jeito de enrolar uma mecha de cabelo (que parecia ser sempre a mesma), a aparente indiferença.

E ele encarava os seus dedos pálidos contornando as peças e buscava um motivo. Porque você não tinha um antes e depois em nada, você só estava ali e não mudava e modificava nada e por isso era fascinante. Tão fascinante que, você nunca reparou, mas os olhos de Mello nunca brilhavam tanto como quando te encaravam.


Às vezes, eu perguntava.

"Mello, o que você tem contra o Near?"

E ele ria.

Mello nunca odiou sua indiferença.

Mello nunca odiou você.

Ele era obcecado, só isso.


Você sabia explicar cada detalhe dele. Ele não conseguiria te descrever nem ligeiramente.

Mas você era estúpido.

Por que ele te odiava? Porque ele tinha inveja. Por que ele não trabalhou com você? Porque se sentiu humilhado. Por que ele come tanto chocolate? Porque é uma forma de escape.

Estava certo, é claro. Menos sobre uma coisa.

Um detalhe.

Eu descobri isso depois da Wammy's House. Quando ele se jogou no meu sofá, a cicatriz hedionda no rosto, e passou as mãos pelos cabelos, calmo. Eu sabia que merecia uma explicação. Um cara não procura um amigo de anos com um enorme ferimento na cara se a coisa não for séria. Sentei-me em frente a ele, observando suas mãos despentearem os fios dourados.

Mas a única coisa em que consegui pensar foi que a resposta para Por que Mello usa um crucifixo? Era Porque ele tem fé.

"Mello?"

Ele tirou um chocolate do bolso. O crucifixo balançou com o movimento.

"O que foi, Matt?"

"Você acredita em Deus?"

Um riso.

"Sei lá. E você?"

Dei de ombros.

"Pra mim, não faz diferença. Deve ser uma questão de fé."

Ele gargalhou, mais alto do que antes. Levantou uma das mãos até a altura dos olhos e permaneceu ali, observando o crucifixo.

"É, acho que tem razão. De qualquer forma, não é por isso que uso essa coisa."

Era típico dele, adivinhar minha dúvida. Não me surpreendi. Apenas ergui as sobrancelhas.

"Por que, então?"

Ele sorriu, aquele sorriso que era tão doentio que eu já havia me acostumado. Então, para minha surpresa, pegou o crucifixo entre os dedos, levando-o até os lábios.

E lambeu.

"Já ouviu essa, Matt?" murmurou, os olhos cerrados, quase em êxtase. "É um pouco clichê, mas faz sentido. As pessoas costumam dizer que "fé é um salto no escuro"."

E aí, eu soube.

Um salto no escuro.

A fé tinha o seu gosto.


Nas últimas horas antes de nossas mortes, posso dizer que ambos pensamos em você.

"Cara," falei, rindo, antes de caminhar até o carro. "você é louco."

"Eu nunca te disse o contrário."

Foi há muito tempo que ele se perdeu na idéia de te decifrar.


E agora, eu vejo.

Eu vejo as suas mãos, agarradas a um chocolate, e sei que você come devagar porque não quer que acabe. Eu vejo os seus olhos que nunca vão brilhar. E eu vejo as pessoas, aquelas pessoas que teimam em ser diferentes, aquelas pessoas que você teme. Aquelas pessoas que você não entende porque você só entende a ele e ele não está mais aí. Aquelas pessoas imprevisíveis, insuportavelmente imprevisíveis, porque nenhuma delas é imprevisível como ele, nenhuma delas é simples.

Você odeia essas pessoas, odeia cada uma delas por não pode odiá-las como odeia a ele. Porque nenhuma delas quer te decifrar, nenhuma delas se perdeu na sua escuridão. E olhar para elas é como se olhar no espelho, porque elas, todas elas tem os mesmos olhos sem emoções, os olhos inexpressivos e indiferentes e que não brilham tanto quanto os dele.

Eu vejo que você parou de erguer a cabeça dos brinquedos porque, afinal, você precisa deles, não é? Porque ele era tão simples quanto eles, tão simples e tão fascinante que te fazia olhar. E olhar, olhar, olhar.

E agora, você não pode mais observar.

E eu vejo que você já não existe mais.


No final, vocês foram um enigma bem fácil de resolver.


N/A: Cara, eu não sei nem o que dizer. Só que, afinal, pra alguma coisa essa fic serviu: Antes eu achava que não levava jeito pro yaoi, agora tenho certeza que não. Puta coisa COMPLICADA de desenvolver! A Abracadabra mencionou que está mais para shounen-ai e eu concordo; mas cara, cês não sabem o sacrifício que foi pra isso aqui não virar OUTRA Wammy's-centred. Well.

Agora... Espero que você goste, Ray. Eu acabei demorando muito pra terminar, mas enfim... A fic é sua, você merece. Na verdade, você merecia uma bem melhor, mas está além da minha capacidade HAHAHA. Enfim XD