Sem motivo
Amanheceu como um dia qualquer. Valentine levantou-se sem pressa, sabia que de qualquer maneira seria castigado. Arrumou-se, colocou a armadura e saiu de casa sem comer nada, fazia tempos que não sentia fome. Simplesmente ignorou tudo com a mesma expressão imutável de sempre e se dirigiu até o escritório de Radamanthis, esperando o mesmo dirigir-lhe a palavra, num xingamento ou numa ordem.
Valentine era subordinado direto de Radamanthis, então não podia fazer nada além de abaixar a cabeça e acatar suas ordens, mas por dentro tinha muito ódio contido, ódio de tudo e de todos, principalmente do Juiz, pois este só fazia reclamar de tudo, xinga-lo como se fosse tudo sua culpa, e humilha-lo, às vezes na frente de outros espectros.
Naquele dia não estava diferente, cada hora Radamanthis dava uma ordem diferente, não se importando com a dificuldade que Harpy parecia ter. Não o deixava descansar e fazia os pedidos mais descabidos, tratando-o como se fosse um verdadeiro escravo.
Valentine em nada mudava sua expressão indiferente e acatava as ordens do Juiz, e mesmo não conseguindo fazer direito o que lhe era ordenado, tentava cumprir as ordens.
Outro dia comum que se ia embora naquele verdadeiro inferno. Ele voltou para casa esgotado, caminhando devagar. Quando chegou tomou um banho e colocou uma roupa qualquer, pouco se importando com qualquer coisa. Já era tarde da noite, e ele continuava no mesmo lugar em que tinha estado há algum tempo. De pé, olhando pela janela, observava os arredores sem realmente ver muita coisa. Pensava no dia que tivera, nas coisas que aconteceram, sentindo mais raiva agora. Raiva de si mesmo, estava naquele estado meio letárgico fazia alguns meses, não sabia como começara, só sabia que não tinha mais vontade para nada, e o amanhã não importava. Saiu de perto da janela e andou até seu "quarto", um cômodo tão impessoal e pobre como qualquer outro daquela casa.
Tentou dormir por algum tempo, mas a insônia não deixava, desistiu de tentar e saiu de casa, ficando a caminhar pelos arredores. Perguntou-se que horas seriam, mais ou menos umas três da manhã pensou. Foi voltando devagar para sua casa, se sentindo fraco novamente, não ligou e continuou andando. Em determinado momento, faltou força a suas pernas e ele caiu de joelhos no chão, se obrigando a levantar rápido, temendo que alguém aparecesse por ali. Quando abriu a porta um barulho chamou sua atenção, se virou e olhou, mas não era nada. Deteve-se um momento e ficou olhando para a lua, que mal aparecia naquele céu cinzento e apagado. Entrou em casa e fechou a porta, teve que ir até o quarto com a mão apoiada na parede. Deitou na cama e finalmente conseguiu dormir, vencido pelo cansaço.
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No outro dia foi pior, acordou realmente atrasado, saiu de casa sem se alimentar de novo, e chegando ao trabalho foi surrado por Radamanthis, não podendo se defender, primeiro por que não tinha forças, e segundo porque não podia mesmo. Sabia que se tentasse alguma coisa, provavelmente seria morto. Não que se importasse com isso, mas não queria morrer pelas mãos dele. No momento, Valentine estava de pé, ao lado do Juiz, servindo o drink que ele havia mandado buscar, mas acabou se distraindo e deixou o liquido escorrer na mesa, molhando o outro. Nem teve tempo de perceber o que fizera e levou um soco na barriga, caindo no chão por causa da fraqueza. Cuspiu um pouco de sangue, estava realmente muito fraco, já não comia há uns cinco dias e só um soco já era demais para ele. Foi repreendido violentamente por Radamanthis, e antes que o Juiz resolvesse ataca-lo de novo, levantou-se devagar e foi rápido buscar um pano. Limpou aquela sujeira, e de forma seca pediu desculpas ao outro.
Sentiu o cosmo dele aumentar, sabia que estava irritado e que a culpa era sua. Abaixou a cabeça, esperando pelo golpe que não veio. O juiz mandou-o se retirar e fazer algo mais útil, como ficar treinando a guarda.
Saiu de lá sem falar nada e se encaminhou até onde estavam os guardas, deu-lhes algumas instruções, tentando não demonstrar que estava bastante fraco.
O dia acabou de novo, foi novamente para casa, não comeu nada e não cuidou dos ferimentos causados por Radamanthis. Ficou novamente olhando pela janela, pensando em tudo, em nada e mais uma vez sentindo raiva daquilo
Quando estava indo para o escritório, depois de mais uma noite insone, acabou se distraindo e perdeu-se pelos corredores do castelo. Ficou durante algum tempo desorientado, mas logo se encontrou novamente e foi cuidar de seus afazeres.
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Depois de mais um dia insuportável estava voltando para casa, mas quando andava pelos corredores, ouviu passou fortes vindos pelas suas costas, mal teve tempo de se virar e levou um soco na lateral da cabeça. Caiu no chão e levantou-se irritado e confuso, querendo sair dali. Olhou a pessoa que o tinha acertado, Radamanthis, com certeza mais uma vez com raiva. Tentou falar alguma coisa, saber por que ele estava fazendo aquilo, mas recebeu um chute no estomago, caindo novamente no chão e ficando sem ar. Olhou para o cavaleiro de Wyvern, e ao ver a expressão sádica em seu rosto, pela primeira vez temeu-o de verdade.
Tentou se levantar devagar, apoiado na parede.
"Maldito", mal-dizia ele ao outro e a si mesmo. Enquanto se xingava mentalmente conseguiu afinal ficar de pé, droga, por que tinha que estar tão fraco?. Olhou com raiva para o outro, que o encarava com escárnio. Percebeu, sem demonstrar, que nos olhos de Radamanthis havia também uma expressão estranha, algo como... Malicia. Tentou ficar com o rosto impassível, apesar do estado lamentável em que se encontrava, com a armadura cheia de poeira e alguns hematomas aparecendo nos braços.
"Por que fez isso?", perguntou enquanto tentava não deixar transparecer o medo e a raiva que sentia naquele momento. Assustou-se quando o Juiz começou a rir sarcasticamente e falou de maneira séria depois:
"Faço por que quero, e não se atreva a reclamar...". Valentine olhou para ele confuso, pois apesar do 'leve' tom de ameaça usado, parecia que o outro não falava do que havia feito e sim de algo futuro...
Viu assustado Radamanthis dar alguns passos em sua direção e caminhou para trás, temendo-o. O Juiz deu mais um sorriso sarcástico e disse:
"Está com medo?... Pois é pra ficar." Não teve tempo de ver o que aconteceu depois, se virou de costas para tentar sair dali e sentiu o contato violento do punho do outro em sua nuca. Desmaiou caindo no chão e não viu quando o Juiz o levou para longe dali.
Acordou sentindo uma dor forte por seu corpo, olhou ao redor devagar, não sabia dizer com exatidão onde estava, mas parecia uma das salas abandonadas do castelo. Tentou se levantar, se apoiando na parede ao seu lado. Confuso, se perguntou como for parar lá. Olhou para baixo, e ficou surpreso ao constatar que estava sem sua armadura e que suas roupas estavam rasgadas em alguns lugares.
O cômodo estava parcialmente escuro, e em um dos cantos, aonde a luz não chegava, ele viu alguém se mover. Automaticamente deu um passo para trás, encontrando somente à parede. Encarou o homem que vinha em sua direção com medo, e afinal, por que ele o tinha "levado" ali?.
"Acordou finalmente, bela adormecida..."
Valentine sentiu um calafrio ao ver Radamanthis, pois, pela cara do Juiz, não era nada bom que iria acontecer. Viu ele se aproximar mais e levantar a mão, como se fosse bater nele novamente. Encolheu-se por instinto e fechou os olhos, mas não sentiu o soco que esperava receber. Surpreendeu-se e começou a se debater quando percebeu que o outro o agarrara e que agora o beijava violentamente.
Tentou em vão se soltar, mas é claro que não conseguiu, o Juiz era muito forte, e além de tudo ele estava fraco demais. Quis elevar o cosmo, obrigar o outro a solta-lo, mas também não pôde. O cavaleiro de Wyvern parou de beijá-lo, vendo um filete de sangue escorrer pelo canto da boca de Valentine.
O juiz o olhou com escárnio e mais uma vez deu-lhe um soco na barriga, fazendo Harpy cuspir mais sangue e comprimir o local machucado.
Ainda com um pouco de sangue saindo da boca, ele olhou para Radamanthis com um misto de raiva e confusão e apenas questionou:
"P-Por quê?"
O outro pareceu se divertir com a pergunta dele, mas não respondeu. Com um movimento de perna Radamanthis derrubou-o no chão. Encarou o rosto de Valentine e se abaixou no chão. Falou com desprezo:
"Por que eu quero, e também, você precisa de um castigo, espectro insolente..."
Enquanto tentava recuar, encolhido, até a parede, viu o juiz ir em direção à porta, quase sentiu alivio, achando que ele iria embora. Mas ele apenas selou a porta com seu cosmo e voltou-se em sua direção.
Harpy tentou falar alguma coisa, abriu e fechou a boca varias vezes, mas não conseguiu articular uma palavra. Levantou-se devagar e foi em direção à porta, ignorando o fato de o Juiz estar bem a sua frente. Radamanthis o segurou pelos ombros e o atirou novamente no chão, sorrindo ao ouvir o outro gemer de dor.
Wyvern foi até onde Valentine caíra e o olhou com raiva, dando um chute em suas costas, gostando de ver a reação do outro a dor. O espectro caído tentou se arrastar para longe dali, não tinha mais forças para se levantar. Viu, com um pouco de desespero, Radamanthis se debruçar sobre si com uma expressão sádica, e tentou esboçar revolta ao sentir suas roupas serem arrancadas de seu corpo com força, ficando mais rasgadas do que estavam antes.
Mais uma vez tentou empurrar o juiz para longe de si.
"Não! Saia daqui! Me deixa em paz!"
Radamanthis ignorou-o e passou a 'examinar' seu corpo, com uma expressão de luxuria na face.
"... Até que você não é de se jogar fora..."
Deixando de lado os fracos protestos de Valentine, Radamanthis começa a passar as mãos pelo seu corpo, acariciando-o com força, deixando marcas vermelhas na pele pálida. Harpy tentava inutilmente se soltar, com raiva e medo, ignorando o fato de estar debilitado demais para conseguir sequer mover o outro por um centímetro que fosse.
Radamanthis irritou-se com ele e começou a machucá-lo novamente, apertando pescoço com força, vendo com satisfação o outro se contorcer a procura de ar. Soltou-o depois e deu-lhe mais um soco no rosto, fazendo mais sangue escorrer do ferimento aberto ao lado da boca.
O Juiz levantou-se e começou a tirar sua roupa, vendo Valentine se encolher e tentar se arrastar para longe dali, com um olhar desesperado na face, balbuciando coisas sem sentido. Depois de ter tirado toda a roupa agarrou Harpy pela cintura e o virou de bruços no chão, deitando em cima dele, ouvindo o gritar, já um pouco rouco.
"NÃO! ME SOLTA! NÃO!"
Radamanthis ri sarcasticamente e tira o cabelo das costas do outro, mordiscando seu pescoço, primeiro devagar, e depois com força, deixando marcas roxas naquela região e ouvindo-o gritar mais alto.
"Não adianta gritar, aqui ninguém vai te ouvir... Ninguém vai vir te ajudar..."
Sussurrou no seu ouvido, ouvindo agora, junto aos protestos, barulho de choro.
Valentine já não estava agüentando, se sentia humilhado demais, desprezado demais, machucado, usado. Ainda não entendia por que Radamanthis estava fazendo aquilo consigo. Rezava para ser um sonho ruim, mas sabia que não era, e assim, tentava inutilmente se soltar.
Sentiu o outro levanta-lo pela cintura, colocando-o de quatro. Desesperou-se mais, com as lágrimas já caindo abundantes em seu rosto e tentou se soltar, só conseguindo que o outro apertasse mais as mãos ao seu redor, machucando.
Radamanthis sorriu, sentia prazer em fazer Harpy sofrer daquela forma, sentia prazer em tocar seu corpo magro e agora fraco com brutalidade. Enquanto com uma das mãos segurava firmemente a cintura dele, com a outra passou a dar fortes tapas em suas costas, deixando-as vermelhas e doloridas, ouvindo o outro reclamar da dor.
O Juiz parou de estapeá-lo e guiou sem membro até a entrada do outro. Ao sentir o sexo de Radamanthis encostar em si, Valentine tentou se soltar desesperadamente, soltando um grito alto e cheio de dor ao senti-lo o preencher de uma só vez, seco. Sentia-se rasgar ao meio, a dor parecia que ia matá-lo.
Wyvern sentiu um imenso prazer ao ter-se apertado pelo interior do outro. Ignorando os protestos e a dor que sabia que o outro sentia, começou a estocá-lo, com uma força absurda e de forma rápida, adorando ouvir os gritos de dor de Valentine. Saía quase por inteiro para entrar de uma vez depois, e enquanto movia-se, puxava os cabelos de Harpy, como se estivesse cavalgando-o.
Estocou-o mais um pouco, sabendo que ele não estava sentindo nada além de dor. Gostou disso, desse prazer sádico, com um gemido alto de puro prazer, gozou dentro em seu interior, caindo por cima dele, ofegante.
Ficou por alguns minutos assim, se recuperando. Depois se retirou de dentro de Valentine, se levantou e colocou suas roupas e sua armadura, que havia tirado um pouco antes. Antes de sair de lá foi até onde estava o outro, encolhido, chorando e ainda com medo. Olhou-o com desprezo e disse:
"Você teve o que mereceu. Nem pense em contar isso a qualquer outra pessoa, e esteja no trabalho amanhã, se não..."
Não chegou a terminar a frase e levantou-o pelos cabelos, dando outro soco em seu rosto, abrindo um ferimento profundo ao lado da boca, do qual o sangue começou a sair abundante. O largou novamente no chão, vendo que ele já não esboçava nenhuma reação, saiu de perto daquela cena deplorável e abriu a porta, passando por ela e fechando-a.
Valentine não soube quanto tempo ficou ali, parado, sem se mover, olhando para a porta. Levantou-se devagar então, sentindo o corpo inteiro doer horrivelmente. Caminhou lentamente, apoiado na parede, até onde o Juiz havia jogado suas roupas, praticamente destruídas.
Vestiu-as, sentindo o corpo doer a cada movimento. Colocou também a armadura, pois esta ajudava um pouco a esconder os ferimentos. Passou a mão na boca, tentando, pelo menos, limpar um pouco do sangue que ali estava. Colocou o capacete da armadura que felizmente cobria a maior parte de seu rosto. Depois de pronto, saiu daquela sala e foi andando muito devagar até sua casa, não mais se importando que os outros vissem que ele parecia totalmente fraco e ferido. Chegou até a sua casa, tendo demorado muito mais tempo que o normal. Entrou e foi até o banheiro, lutando para não perder a consciência. Olhou-se no espelho, observando sua imagem miserável: Os cabelos desgrenhados, o rosto com alguns hematomas e um grande corte ao lado da boca, além da palidez quase mórbida, o corpo estava cheio de ferimentos, hematomas, e ele mal se agüentava em pé.
Foi até o chuveiro, e tomou um banho rápido, querendo tirar todos os rastros que sobraram do ocorrido. Depois de cuidar, precariamente, dos piores ferimentos, passou a mão no rosto e percebeu que algumas lágrimas ainda insistiam em cair.
Naquela noite, não foi até a janela, não olhou a lua, tudo parecia ter perdido o pouco brilho que já tinha, e ele percebeu então que não se importava de morrer, aliás, sentia como se já houvesse morrido. Deitou-se em sua cama, desejando mais uma vez não acordar, não encontrar mais ninguém, e desejando não precisar olhar o rosto da pessoa que fizera aquilo consigo.
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E no outro dia, apesar do que havia acontecido, Valentine estava lá novamente, mal se agüentando em pé, na frente de Radamanthis, esperando suas próximas ordens. Além de tudo, o corpo inteiro ainda doía, e alguns ferimentos apareciam em seu rosto e braços. Maior do que isso era a humilhação. Os risinhos maliciosos, sarcásticos e desprezíveis do juiz, os quais tinha que ouvir. E claro, Wyvern continuava a dar ordens como um ditador. Varias vezes Harpy sentia vontade de desaparecer dali, de simplesmente fugir e acabar com tudo. E tinha que cumprir as ordens calado, se segurando para não chorar. Tinha medo, medo do juiz, medo de alguém descobrir o que havia acontecido. Seu orgulho fora destruído, e ele temia não agüentar mais.
O dia passou num verdadeiro inferno, literalmente. Valentine chegou em casa e desabou no chão, mal se agüentando em pé. Se forçou a cuidar dos ferimentos, alguns ainda não haviam cicatrizado, como estava fraco em demasia, nem seu cosmo o ajudava a curá-los. De novo não comeu. Já fazia tempos que não se alimentava. Simplesmente não tinha vontade, não tinha por que, não conseguia.
Mesmo não tendo forças, passou umas boas horas vagueando por entre os arredores de sua casa, pensando em muita coisa, mas não se fixando em nada. Pela primeira vez na vida queria alguém para desabafar, mas nunca tivera amigos, e os outros espectros não se aproximavam dele. Conhecido era como anti-social.
Vendo que não havia ninguém por perto, deixou as lágrimas doloridas caírem, seus olhos vazios. Voltou a sua casa de madrugada e tentou dormir, pois sabia, não podia se atrasar.
Acordou com um grito mudo, suando frio e chorando abundantemente. Havia revido tudo num pesadelo, e agora estava confuso e desesperado. Nem percebeu que o dia já estava clareando. Levantou-se, cambaleante, e foi ao banheiro. Lavou o rosto e se olhou no espelho, sem conseguir se reconhecer. Os olhos fundos, sem vida. O rosto e o corpo magros, com os ferimentos espalhados por todo lado. Sentiu uma tontura e teve que se segurar na pia. Um flash rápido passou em sua mente. Uma cena viva do pesadelo real.
Desesperado, insano e com mais medo do que havia estado até então, abriu o armário de medicamentos e logo achou o que queria. Abriu a caixa do sedativo, era o mais forte que tinha, e Valentine estava fora de si. Tirou todas as pílulas dali. Hesitou um pouco, mas mudou de idéia, ao pensar que tudo poderia acontecer novamente. Tomou todas as pílulas, uma a uma. Quando percebeu a caixa inteira havia se esvaziado. O remédio começava a fazer efeito, e sua visão já estava um pouco borrada, os sentidos começavam a falhar. Apoiou-se na parede e escorregou devagar ao chão.
De alguma forma, sentia-se em paz, pois sabia que provavelmente, depois daquilo, não teria que agüentar mais nada. Não teria que ver mais ninguém, não seria humilhado novamente.
Sentiu que perdia a consciência. Deixou a cabeça pender a frente do corpo.
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Radamanthis estava muito irritado. Os espectros estavam treinando para uma possível batalha, mas entre eles faltava alguém, o espectro Valentine de Harpy. Apesar de ser um dos juizes do mundo dos mortos, e de não ser trabalho dele, resolveu procurar Harpy, pois gostaria de "conversar" com ele. Aumentou seu cosmo, procurando sentir o do outro.
Localizou-o fraco, fraco demais, provavelmente na sua residência. Usou seu cosmo novamente para chegar lá o mais rápido possível, estava impaciente.
Não bateu na porta, simplesmente escancarou-a e procurou o espectro pela pequena casa. Encontrou-o sentado no chão, com a cabeça caída para frente, e uma caixa de remédios vazia ao lado. Abaixou-se no chão, e pegou a caixa. Sedativos. Perguntou-se quantos ele teria tomado. Levantou-se e olhou com desprezo para Valentine. Chutou a lateral de seu corpo, tentando acorda-lo. Ao ver que não havia funcionado e sabendo que provavelmente não funcionaria, saiu da casa e retornou ao campo de treinamentos. Chamou um de seus espectros, Sylphid de Basilisc e mandou-o cuidar de Harpy, afinal, Lord Hades não gostaria que um de seus espectros ficasse "doente".
Sylphid usou de sua velocidade para chegar onde Harpy estava. Encontrou-o na mesma posição que Wyvern o havia deixado. Surpreso, ao ver o espectro naquela situação, tentou acorda-lo por algum tempo. Não tendo êxito, colocou-o por cima do ombro e levou-o a enfermaria, deixando-o lá para ser tratado.
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Três meses depois.
Valentine sentiu a consciência voltando aos poucos. Abriu os olhos devagar, tentando saber onde estava. Percebeu, apesar da visão estar meio borrada, que estava na enfermaria do castelo de Hades. Perguntou-se confuso, por que estava lá. Lembrou-se então do que havia feito, ao mesmo tempo em que estava frustrado e com raiva por não ter dado certo, estava "feliz" por estar acordado. Tentou levantar-se, mas descobriu-se ainda fraco, mas bem menos do que antes. Percebeu que nenhum dos ferimentos estava visível, e que apesar da mínima fraqueza, estava mais forte. Perguntou-se quanto tempo havia se passado desde que havia tomado os sedativos.
Ao ver que não havia ninguém por perto, levantou-se devagar, estava com uma túnica branca que ia até os pés. Olhou pelo aposento e viu as roupas que vestira antes. Colocou-as devagar, e se encaminhou para a porta da enfermaria.
Quase caiu para trás ao ver a porta se abrir e entrar por ela Radamanthis. Apesar de estar com medo, e de querer mandá-lo para longe dali, lembrou-se que devia obediência a ele, por isso falou com cuidado e receio.
"Senhor Radamanthis, o que faz aqui?"
Harpy viu que sua pergunta não tinha sido bem recebida, afinal o outro não lhe devia explicações sobre nada.
Wyvern ignorou a pergunta e simplesmente disse:
"Vejo que finalmente acordou, Valentine..."
"Por quanto tempo estive desacordado?"
Radamanthis pareceu considerar se responderia sua pergunta ou não, mas por fim resolveu contar. Falou com descaso e raiva.
"Três meses, o que pensou que estava fazendo? Lord Hades quase desconfiou de que eu tivesse feito algo!"
Valentine se surpreendeu, três meses, era bastante tempo, mas ainda preferiria não ter acordado. Deu um passo para trás ao ver o juiz se aproximando. Olhou para o ele com amargura, e deixando de lado o fato de estar sendo insolente disse:
"Não te interessa, posso ser seu subordinado, mais minha vida pessoal não lhe diz respeito."
Viu com medo os olhos do juiz perderem o tom de descaso e se encherem de ódio. Soltou um pequeno gemido de dor ao sentir seu braço ser apertado com força.
Radamanthis se aproximou ainda mais dele e falou:
"Calado, espectro idiota! A partir de quando seus 'assuntos pessoais' interferem nos treinamentos, passa a me dizer respeito sim!"
Alguns filetes de sangue já começavam a surgir do ferimento provocado pela mão do juiz. Ao ver aquilo, Radamanthis suspirou e se afastou, por mais que fosse divertido, não poderia machucar Harpy por algum tempo. Foi em direção da porta. Antes de sair, se virou e disse:
"Esteja amanhã no campo de treinamento. Não ouse se atrasar, e não quero nem saber se está fraco ou não."
Wyvern saiu batendo a porta. Valentine apoiou a mão na parede, pensando no que acontecera. Não sabia o que faria agora, como agiria. Resolveu que primeiro voltaria a sua casa e depois pensaria nisso.
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Valentine havia recomeçado os treinamentos, ainda muito debilitado e assustado, mas pouco se importava com isso. Pouco se importava com tudo. Quando saíra daquela enfermaria, tomara uma decisão. Iria mudar. Não importaria o quanto doesse, não importaria. Passou a se portar diferente. Mesmo que estivesse desencorajado, debilitado, não demonstraria fraqueza a ninguém. Nunca mais. Não por orgulho mas por autodefesa.
Estava sentado numa velha cadeira de madeira em sua casa. Olhava pela janela e para dentro da casa, mais uma vez gostaria que houvesse alguém ali. Estava sozinho. Não que fizesse muita diferença, pois quase sempre foi só.
Morara com seus pais, numa vilazinha no interior de seu país, Chipre. Sempre fora uma criança reservada, mas pelo que se lembrava, tivera alguns amigos. Aos seus seis anos, uma epidemia chegara ao vilarejo, e destruíra tudo. Ele ficara muito doente, e seus pais, antes de morrer, pediram à Hades para poupá-lo. Revoltado e doente foi "acolhido" entre os espectros. Passara a treinar, treinar muito, mas nunca deixara ninguém se aproximar. Aos poucos, os outros foram parando de "falar" com ele, até que ninguém mais chegava perto, até que ninguém mais se importava. Cresceu assim, sem ninguém, a vida voltada inteiramente ao maldito treinamento e a revolta ainda sentida. Quando se sagrou espectro, passou a servir à Radamanthis, e nunca fora bem tratado por ele. No inicio, até o admirava pelo seu poder e força, mas com o tempo passou a não gostar dele, a odiá-lo. E tudo se seguia ao que era hoje.
Harpy sabia que poderia procurar alguém, tentar conversar. Mas tinha receio. Além de ser muito orgulhoso, não conseguia confiar nos outros.
Parou de pensar nisso quando notou que estava prestes a chorar. Droga, não ia chorar, não ia!
Balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos e se levantou. Enquanto ia para seu quarto pensou. Pelo menos as coisas já pareciam menos ruins do que antes. Não estavam boas, apenas um pouco melhores. Radamanthis passara a tratá-lo com indiferença, não fosse um comentário maldoso aqui e outro ali, mas dava para agüentar, sabia que duraria pouco tempo, até a poeira baixar, mas por enquanto a situação continuava estável. Pensando bem, não havia mudado muita coisa, não havia mudado praticamente nada, mas desde que decidira não mais fraquejar, estava alheio a isso.
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Fim... Por enquanto... Quem sabe talvez um dia eu resolva continuar?
