Peter montou na scooter e fez três preces, uma para cada tentativa de dar partida naquele motor antigo e inútil. Todos os dias eram os dias que ele achava que seriam os últimos para Becka, a scooter. E também para si mesmo, porque sem ela o rapaz não tinha trabalho e sem trabalho Peter estava na miséria.

Desde que tio Ben foi assassinado durante um assalto à uma loja de conveniências, Peter e sua tia May passaram por muitas dificuldades, tanto emocionais quanto financeiras e o garoto, que era ainda muito jovem na época, precisou crescer muito rápido e assumir a maior parte das responsabilidades da casa.

May era idosa e doente. Pouco depois da tragédia, o estado de saúde dela piorou bastante e a descoberta de um câncer foi apenas um choque a mais para aquela pequena família.

Peter Parker começou a carregar um mundo nas costas.

Terminou o ensino médio aos trancos e saiu do colégio sem ao menos sonhar com a possibilidade de fazer uma faculdade. Arrumou logo a maior quantidade de empregos que pudessem ser realizados em um dia. Entregava jornais, fazia entregas para restaurantes, era garçom, pintava paredes, aparava gramas, limpava quintais, qualquer coisa, Peter fazia de tudo, mas nunca tinha dinheiro o suficiente. A preocupação o impedia de descansar e dormir.

Apesar de todo o esforço físico a que se submetia, Peter era um rapaz pequeno e pouco desenvolvido. Ele comia muito, mas sua alimentação não era saudável. O garoto, aos 20 anos, já estava bastante calejado pela vida e seu semblante era sóbrio e taciturno. Maduro demais para a sua idade.

E Becka era o único objeto de valor que ele tinha e que era só dele. Peter sentia um adormecimento mental incrível quando estava pilotando, o movimento, o fluxo, a velocidade, o faziam esquecer momentaneamente dos problemas e das dívidas. Por isso, era difícil para ele vê-la se deteriorar e não poder fazer nada além de assisti-la deixar de funcionar para sempre. Ele sentia o mesmo sobre sua tia May.

De qualquer modo, enquanto aquelas engrenagens girassem, Peter estaria trabalhando e, naquele momento, tinha comida japonesa para entregar em um dos bairros mais nobres da cidade. O lado bom é que os ricos sempre pagavam uma boa gorjeta, o lado ruim é que Peter sempre se sentia um moleque de rua dentro daquelas casas monstruosamente luxuosas.

Aquela, especificamente, era bem estranha. Tinha o mesmo molde das demais daquele lugar: dois andares; varandas em todas as janelas, que eram enormes; portas pretas e suntuosas; e grande espaço para jardim na frente. Mas aquela estava terrivelmente acabada. As flores que um dia decoraram a entrada eram agora uma massa podre e amarronzada, a maioria dos vidros estavam quebrados e tinham marcas de balas e cortes nas paredes e na madeira da porta.

Peter tentou tocar a campainha, mas não funcionava. Bateu na porta e ela se abriu suavemente no primeiro toque. Sinistro…

O rapaz chamou por alguém antes de entrar e se surpreendeu ao ver que o lado de dentro da casa era normal, inteira e limpa. Quando ia chamar novamente, Peter ouviu um cantarolar distante e que ia se aproximando, aproximando. A música não fazia o menor sentido.

A pessoa que apareceu na sala, entretanto, fez os pelos do entregador se eriçarem e seu corpo esquecer como se reagia. O homem tinha apenas uma toalha enrolada na cintura e seu corpo alto e musculoso estava quase completamente exposto. Peter poderia lidar com isso, o detalhe era a pele daquele estranho, cheia de marcas e cicatrizes da cabeça aos pés. Era hipnotizante. Era como se houvessem milhões de desenhos, texturas e relevos estampados pelo corpo. Era uma obra de arte humana e Peter Parker não podia parar de olhar.

— Okay. Já chega, o limite gratuito para encarar é de dois minutos, mais que isso eu cobro dez dólares por minuto. – o homem falou e tudo ficou duas vezes pior, porque Peter finalmente chegou nos olhos. Os malditos olhos que não tinham cor alguma. Apenas um espectro cinza-azulado quase imperceptível delimitava a silhueta da íris, o garoto só se deu conta disso quando o homem revirou os olhos, entediado.

"Foco, Peter!", ele tirou os pacotes da bolsa térmica e os colocou na mesa, se concentrando em não olhar para o homem de novo e mais ainda em não acabar dizendo nada idiota.

Já estava a meio caminho da saída quando lembrou que tinha que receber e ao se virar viu que o dono da casa havia vestido uma calça e viu também que isso não ajudava em nada, porque aquele jeans preto caía muito bem nele. Otimamente bem nele. E Peter estava envergonhando a si mesmo ao corar como um tomate. Ele não tinha culpa se a sua imaginação decidiu dar sinal de vida justamente naquele momento e menos ainda se o homem achou que aquilo era muito engraçado e que poderia ser divertido brincar com o garoto das entregas.

Ele tirou duas cédulas altas do bolso e os pousou em sua palma aberta, olhando desafiador para Peter.

— Vem. Pega. – disse e a dificuldade do rapaz em ir lá e pegar não era por nojo ou medo da condição dele, mas pela curiosidade que o estava corroendo por dentro.

Peter não pensava que voltaria a estudar, mas se voltasse se tornaria com toda a certeza um cientista. Aprenderia tudo o que se poderia aprender sobre o mundo e o que vive nele. Ele achava o universo fascinante.

Muito mais agora, conhecendo uma pessoa tão única quanto aquela à sua frente.

O rapaz hesitou no começo, mas a oportunidade era tentadora demais para não ser aproveitada e Peter vestiu seu jaleco imaginário ao se aproximar do homem e usar o pretexto do dinheiro para abarcar a mão estendida por inteiro. Ele tinha que sentir aquela pele, entender quais as possíveis origens de tantas marcas, saber como alguém tão danificado poderia estar vivo e tão… como ele.

O seu objeto de estudo ficou, claramente, surpreso com a atitude de Peter. Ele não soube o que dizer, embora sua mente estivesse terrivelmente barulhenta naquele momento. Quer dizer, só as crianças costumavam reagir daquela maneira, impressionadas, curiosas. Só elas tinham aquele brilho nos olhos quando o viam. Os outros tinham medo e asco.

— Eu posso te dar essa mão de presente, a que eu gosto de usar é a outra. – ele acabou dizendo e Peter enrijeceu-se, porque a essa altura a estranheza já havia alcançado níveis extremos, até mesmo para os seus padrões. — Ela é mais macia e nós temos uma espécie de compromisso, você entende.

E ficou pior. Porque no mesmo instante uma mulher loira entrou na sala e encontrou os dois ali, em pé, com a mão um no outro e o dono da casa semi nu.

— Okaaay… Hora errada. – ela disse, achando graça, especialmente da expressão chocada no rosto do mais novo. Ela encostou-se no batente da porta e começou a avaliá-lo descaradamente, de cima abaixo, com um sorrisinho sacana nos lábios pintados de vermelho-sangue. Sem tirar os olhos dele, continuou: — Quer que eu volte depois, Wade?

— Não, senta aí. Eu só estou pagando pelos serviços do garoto.

Peter não estava mais corado. Estava roxo de vergonha. O sangue de seu corpo pareceu fluir completamente para o rosto, tanto que ele se sentia meio fraco, com as pernas dormentes e incapaz de falar para defender a si mesmo. Ele era ansiedade pura.

Meio que de modo automático, o jovem entregador desgrudou de Wade, colocou a bolsa no ombro e saiu calado, ignorando as vozes dos dois que ficaram tagarelando lá, falando sobre ele, é claro.

Mas algo que Peter nunca soube foi como sair de situações constrangedoras com dignidade. Na verdade, um única coisa ruim que acontecesse em seu dia era o estopim para que o universo se voltasse contra ele e uma sequencia de desastres desabassem em sua miserável vida.

Quando saiu, Becka não estava onde Peter havia deixado. Não estava em lugar algum.

— Puta que pariu! – o garoto xingou e chutou a lata de lixo mais próxima, derrubando-a e espalhando sacos mais do que suspeitos na calçada. Esse pequeno ato de rebeldia o faria, provavelmente, ficar acordado a noite se sentindo culpado e inconsequente, mas naquele momento Peter tinha tanta raiva! Ele já estava se sentindo mal por causa da ceninha que acabara de acontecer e agora era como se seu sistema tivesse entrado em erupção. Seu estômago queimava e doía e ele se dobrou de leve para a gastrite que estava preste a tornar-se uma úlcera.

Era como se a vida estivesse lhe dando um tapa na cara e o comendo por dentro ao mesmo tempo.

— Quem te deu autorização pra vandalizar o meu patrimônio? – ouviu Wade dizer e assustou-se, não só porque ele tinha se aproximado silenciosamente, mas por causa das katanas que ele tinha nas mãos. — Só eu posso destruir as minhas próprias coisas.

— Mas o que… – Peter apontou vagamente para as armas e deu um passo discreto para trás, considerando seriamente a possibilidade de sair correndo.

— Ah, isso? Eu ouvi o barulho e achei que podia… hm, ser outra pessoa. – Wade sorriu como se estivesse dizendo algo muito corriqueiro e colocou um braço em torno dos ombros de Peter, a lâmina passou alguns centímetros acima de sua cabeça e o rapaz congelou. — Agora me diz, o que fez você levantar o pezinho e agredir a minha útil e inocente lata? O que te afeta, garoto?

Peter suspirou.

— Eu fui roubado. – ele disse e Wade o encarou como se perguntasse "e daí?" e o futuro-ex-entregador não conseguiu evitar justificar a si mesmo. De repente era muito importar pra ele que aquele homem sentisse o seu drama e parasse de tratar o seu problema como se não fosse nada. — Aquela moto era tudo o que eu tinha. Ela era o meu trabalho! Como é que eu vou fazer agora!?

— Moto? Você chama aquela coisa velha de moto? – a voz da mulher loira veio da entrada da casa e Wade e Peter girara juntos em torno de si mesmos para olhá-la. Ela riu.

— Cala a boca, Louise! Respeita a crise do garoto! – Wade gritou de volta para ela e depois, virando-se para Peter, sussurrou: — Ela é uma vadia sem coração.

— Eu ouvi isso!

— E quem se importa? – cantarolou Wade e o mais novo, já doente daquela situação, desvencilhou-se do outro, um pouco mais agressivamente do que devia.

— Você viu quem foi? Viu levarem e não falou nada?

Louise deu de ombros.

— Esqueçam… – Peter suspirou, frustrado, especialmente porque nessa hora ele se deu contra de que teria que prestar contas pela comida que ainda estava lá para entregar e o pagamentos dos outros clientes que ele, estupidamente, tinha deixado em Becka.

Ele saiu caminhando sem dizer mais nada, ressentido daquela gente, os culpando, mesmo que injustamente, pelas suas desgraças. Mas uma faca voadora atingiu a madeira da caixa de correio que estava bem ao seu lado e Peter congelou, virando-se devagar, sentindo-se parcialmente aterrorizado.

— O… o que você é? Um ninja!?

— Tipo isso… E você é um panaca, fica me ignorando e nem se despede. – Wade estava de braços cruzados e batia o pé no chão impacientemente.

— Ah, claro! E por isso você joga uma faca em mim? – Peter não podia evitar ficar meio histérico.

— Mas eu tenho algo importante pra dizer!

— Então fala!

O homem, que por acaso ainda estava descamisado e descalço, foi até Peter, tirou um pedaço de papel do bolso e o empurrou contra o peito do rapaz, que quase perdeu o equilíbrio e caiu para trás.

— Se você precisa de grana… – Wade terminou a ideia lançando um olhar significativo para a folha. — Agora vaza. Cansei desse seu jeitinho de vítima.

O maior deu as costas e começou a voltar para casa. Peter estava afogueado, por vários motivos. Estava indignado com o que aconteceu e com aquele Wade. Ele todo deixou Peter, de alguma forma, perturbado.

A vontade que ele tinha era de pegar aquele maldito papel e jogar fora, ele não precisava da ajuda e da pena daquele horroroso para continuar vivendo. Peter, então, fez uma bolinha do folheto e saiu pisando duro.

Gastando os únicos trocados que tinha no bolso, o garoto pegou um ônibus e foi dar explicações sobre o que havia ocorrido. É claro que Chester, o dono do restaurante, não teve a menor compaixão com a tragédia de Peter e o demitiu no mesmo instante, como se ele tivesse feito tudo de propósito. Para completar, o homem achou que era pura justa causa e se recusou a pagar o mês de salário e os outros direitos que ele deveria ter.

Peter saiu de lá xingando, ameaçando entrar na justiça e tudo mais, mas todos sabiam que as palavras eram vazias e que o garoto não teria grana nem mesmo para contratar um advogado.

Ele tinha 20 anos, sem nenhuma experiência com trabalho formal ou com carteira assinada; nunca estudou nada além da escola, que já era horrível por si só; não tinha mais idade para pegar serviços pequenos. E haviam as dezenas de remédios que tia May precisava tomar. As dívidas com o hospital, com as consultas, com o tratamento. E havia o aluguel da casa, as despesas, as contas. E eles ainda tinham que comer nessa equação toda.

O garoto estava miserável. Teve que voltar para casa a pé e só se esforçou para conter as lágrimas quando chegou em sua vizinhança. Ele não poderia se mostrar fraco, pequeno e vulnerável ali, porque todos os conheciam, sabiam da história deles e do que estavam passando. Alguém tinha que ser o adulto dessa história e Peter vestiu a camisa, ele tinha que parecer forte e parecer que tinha uma solução e que tudo estava sob controle.

Contar o que aconteceu para a tia estava fora de cogitação. O plano de Peter era fingir que ainda estava trabalhando com Chester e procurar outro emprego enquanto estivesse na rua, simulando estar fazendo entregas.

Na melhor das hipóteses, ele encontraria algo melhor do que o que tinha antes.

Na pior, eles estavam ferrados.