À medida que o vermelho tingia a listra do visor para onde olhava, o coração da capitã do décimo terceiro esquadrão aumentava o ritmo com que fazia o sangue fluir por suas veias. Calafrios subiam por sua espinha, causando tremores involuntários em suas pernas. Quanto mais nítida as linhas horizontais e paralelas ficavam, mais difícil parecia o ato de respirar. Sentada no banheiro de seu esquadrão, Rukia deu-se conta de que não havia mais volta. Estava grávida.
Para uma mulher adulta, casada e com uma prole já gerada, aquele resultado, logicamente, não seria algo tão fora de ordem. Mas, então, por que carregar em seu delicado rosto um tom ainda mais pálido que a coloração original de sua tez? Por que carregar uma expressão que beirava a um sutil desespero? Não seria natural a face corada de felicidade a uma cadavérica representação do pavor?
Rukia levantou-se da tampa do vaso sanitário, apertando entre os dedos o teste de farmácia que comprara da última vez que fora à Karakura para visitar Ichigo, seu melhor amigo. Encarou a porta fechada do banheiro como se, a partir do momento que passasse por ela, tudo em sua vida estivesse fadado a virar de cabeça para baixo.
— Kazui! — A sobreposição das vozes de Ichigo e Rukia soou nostálgica aos ouvidos das outras sete pessoas reunidas na sala de estar da família Kurosaki.
Renji sentou-se ao lado de Tatsuki, deixando que o shinigami substituto e sua esposa se entendessem, afinal aqueles dois funcionavam apenas à base de agressões gratuitas. Seus olhos castanhos acompanharam o passo apressado de Rukia e Ichigo subindo as escadas que davam acesso ao andar superior onde ficavam os quartos da casa.
Apesar de não ser o mais habilidoso shinigami em sentir pressões espirituais, ele também sabia o que estava prestes a acontecer. E, por mais que não se sentisse exatamente à vontade com aquilo, aquele momento pertencia apenas aos dois.
Rukia reconheceu cada canto daquele pequeno corredor enquanto encaminhava-se em direção ao quarto onde dormira por tantas semanas escondida em um armário apertado. Parou ao lado de Ichigo de frente para a porta entreaberta, escutando a conversa que se passava no cômodo.
— Quem é?
— Abarai Ichika! Aprendiz de Shinigami! — A voz de sua filha soou após a indagação de um garotinho de tom tranquilo. — E quem é você?
— Eu? Me chamo Kurosaki Kazui. Também sou shinigami. — O menino se transformou diante de seus olhos, fazendo um punhado de lembranças infestarem sua mente.
A capitã do décimo terceiro esquadrão olhou para o substituto de shinigami, que observava igualmente quieto a cena que se desenrolava em seu antigo quarto. Não conseguia sorrir ao ver o passado repetindo-se.
— Ele é a sua cara, Ichigo. — A Kuchiki cerrou os olhos por uma fração de segundos, antes de voltar a observar as duas crianças por uma fresta da se não bastasse o quão tortuoso era estar naquele local junto dele, nessa situação, bem como ter de superar e seguir em frente com suas decisões, o destino vem estender seus dedos e fazer com que sua filha e o filho de seu amigo venha a ter um primeiro encontro, assim, tão similar ao que tiveram?
O Kurosaki, no primeiro instante, nada disse. Em seus olhos, era refletida a cena que ele conhecia tão bem. Por que o destino tinha que brincar com eles dessa maneira? Claro que sabia do que aquela cena representava. Rukia não sabia, pois ele não teve tempo para contar. Como será que a capitã reagiria de saber que eles compartilhavam o Destino e o Amor que ele herdou de seus pais? As cenas similares, o desenvolvimento, os laços, os sentimentos e os anseios? O que diria ela quando percebesse que esse legado que fora negado a eles agora é repassado para seus filhos? O que diria Rukia se entendesse o tamanho do seu sacrifício, ao perceber que o destino os uniu por algo muito mais forte do que parecia se desenhar?
Mas ela não sabia. Queria ter compartilhado isso com ela, mas o Rei Quincy deu a eles um destino com um novo design, e isso foi o que se obteve a partir de suas decisões. E, agora, como um sátiro cruel, o Destino cospe em sua cara que aquilo que ele preferiu não se arriscar pertence agora às suas proles. Suspirou, e respondeu Rukia com uma voz sussurrada e resignada.
— É o que parece. Ela tem muito de você e…Renji.
— Você faz soar como se a culpa fosse minha. — Disse em meio a uma risada breve e sarcástica.
Ichigo esfregou o rosto com um das mãos, subindo-a até os cabelos ruivos e desalinhando nervosamente os fios. Fazia muitos anos que não se falavam apropriadamente, não queria tocar naquele assunto.
— Não foi isso que eu quis dizer…
— Foi você que terminou tudo, Ichigo. — Rukia virou-se de costas para a porta, pronta para seguir até as escadas. Antes, porém, de voltar à sala de estar para junto de seus amigos e marido, direcionou o olhar ao ruivo.
Ele pôde ler em seus olhos de tom violeta a mágoa que perdurara por todos aqueles anos. Naquele momento, ele desejou que a Kuchiki não fosse tão transparente para si como sempre fora. Desejou também que seu coração parasse de bater tão rápido.
E, sem mais nada a dizer, ela desceu as escadas deixando Ichigo para trás.
Enquanto vários pares de olhos observavam atentamente a luta transmitida pela televisão, os olhos âmbar do dono da casa concentrava-se em um casal sentado em seu sofá. Renji abraçava Rukia, que quase dormia esperando que fosse a vez de Chad entrar no ringue. Sentindo o sangue fluir quente por sua cabeça, ele desviou para observar o resto do pessoal espalhado por sua sala de estar. Não era obrigado a ficar aturando casal em lua de mel eterna.
Orihime bebia seu quinto copo de cerveja, suas bochechas estavam rosadas e ela já ria por qualquer coisa. Tatsuki brigava com Keigo, suas irmãs cochilavam e seu filho corria em volta da sala com Ichika em seu encalço. Poderia ser a cena de um domingo perfeito, entretanto tudo ali soava errado em sua cabeça. Aquelas pessoas apenas emolduravam o tom de normalidade daquele dia, daquele casal que conversava qualquer coisa inútil em tom baixo e vez ou outra mandava a filha se comportar.
A voz do locutor anunciando o intervalo despertou alguns dos que estavam em torno da televisão. Keigo levantou-se se espreguiçando e indo direto para a mesa de centro que estava repleta de salgados e bebidas. Revirou algumas latinhas de cerveja, dando-se conta de que restara quase nada.
— Eita, a cerveja já acabou.
— Vai comprar mais então — Tatsuki revirou os olhos ao notar a cara de tristeza de seu namorado ao ver que Orihime bebeu metade do fardo de cerveja sozinha. — E vai logo, antes que o intervalo acabe.
— Eu vou com você — Renji levantou-se do sofá, espreguiçando-se rapidamente. Olhou para sua esposa avisando que já voltava e seguiu para a rua junto de Keigo.
Rukia também levantou-se, murmurando que iria ao banheiro e mandando Ichika parar de correr pela casa. A menina ignorou as ordens da mãe, continuando a brincar de esconde-esconde com seu novo amigo.
Ichigo observou de longe a morena subir as escadas, voltando para o andar de cima onde tinha o único banheiro da casa. Quando a perdeu de vista, direcionou-se para a mulher, que estava quase cochilando no ombro de Tatsuki e disse a ela que iria verificar algo lá em cima. Orihime ronronou em entendimento, enquanto Tatsuki tentava manter a amiga acordada para assistir à luta.
Quando o Kurosaki chegou ao andar de cima, espreitou-se na penumbra perto de onde ficava o banheiro, esperando pelo surgimento da pequena Kuchiki. No momento em que ouviu o som provindo do cômodo e o clique do trinco, o ruivo agarrou no braço esquerdo da amiga, arrastando-a sem que a mesma tivesse tempo para alguma reação.
Rukia, no momento em que sentiu ser tocada ao sair do cômodo, pensou em gritar, devido ao susto que tomara. Mas, sem sombras de dúvida, reconhecia o toque daquelas mãos grandes e calejadas. Enquanto sentia ser arrastada pelo seu amigo no corredor sombreado, vários pensamentos tumultuavam sua mente, e todos levavam para a mesma suposição. Suposição essa que seria fatal. Esse idiota realmente estava pensando em dar cabo a isso? Torceu internamente para estar errada.
Suas conclusões chegaram quando sentiu suas costas tocarem a superfície do colchão de casal do quarto principal daquela casa, ao ser praticamente atirada sobre ele por um Ichigo atordoado. Seu coração falhou uma batida quando seus olhos encontraram-se com os dele, em uma troca de olhares intensa e de significado que apenas ambos conheciam.
Não conseguia evitar o turbilhão de lembranças que invadiam sua mente. No passado, por muitas vezes, pensou que seu destino estava já traçado, entretanto, fora o próprio Ichigo quem destruiu o pouco que haviam construído. Ele estava louco se achava mesmo que ela aceitaria ser jogada na cama em que ele dividia com Orihime.
— Ichigo! — Ela chamou sua atenção, com seu tom altivo característico.
O ruivo nada disse, e não precisaria. Seus olhos eram a resposta para todos os questionamentos que pairavam na mente da Kuchiki.
Com os lábios, porém, ele a calou. Como fizera tantas outras vezes no passado.
