i. Felicidade

"A felicidade é como o vidro; tem, como ele, o brilho e a fragilidade ¹".

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Era noite alta e os primeiros sinais do inicio do inverno davam mostras de que aquela seria das estações mais rígidas dos últimos tempos. A ventania fria e cortante fustigava impetuosamente uma antiga construção de madeira e pedra bruta, fazendo gemer as dobradiças da janela que se debatia submissa. O uivo longo e contínuo, gerado pela passagem forçada do vento pelas frestas da vidraça, completava o cenário bucólico atuando como som de fundo. Breves uivos abafados e alguns gemidos mal contidos também se faziam ouvir no interior de um dos aposentos da habitação centenária, mas não tinham nenhuma relação com as forças da natureza.

Apesar das baixas temperaturas que circundavam a Casa de Má-Fama, localizada nos arredores de Hogsmeade, no interior daquela alcova a temperatura era alta: ali não havia lugar para o frio, pois a primavera impunha o seu domínio, conferindo seu calor denso e sufocante, forçando naturalmente o desabrochar das flores, espalhando o seu perfume entorpecente pelo ar. Lá fora o frio era branco e cinza, mas no cerne daquele ninho de amor todas as cores desfilavam nuas e sem pudor.

Uns e outros flocos de neve, que se prendiam à vidraça morna e embaçada, decompunham-se qual lágrimas que escorriam lentamente pela superfície lisa e transparente. A exemplo daquelas gotículas que desenhavam filetes tortuosos à sua passagem, o suor também corria em bicas pelos corpos ardentes que compartilhavam o leito ali existente.

A cena que se desenvolvia no local demonstrava que o tempo era essencial, da mesma forma que era escasso, para os desejos do casal: uma capa verde com fios de prata abandonada ao chão, um sapato colegial dependurado pelos cadarços à borda da cama, a saia e a lingerie arriadas na altura dos joelhos. Tudo demonstrava que a ânsia pelo pecado se sobrepunha às normas de conduta e bons modos da garota sextanista da Sonserina, ainda iniciante na descoberta dos prazeres que seu próprio corpo poderia lhe proporcionar.

Bellatrix Black se encontrava deitada sobre a lateral do próprio corpo e gemia sofregamente sobre a cama velha, desconjuntada e que lhe fazia coro com seus rangidos estridentes. Os braços macios e sedosos de sua cúmplice a envolviam pelas costas, enquanto as mãos hábeis e precisas passeavam caprichosamente por seus contornos, desde as saliências protuberantes mal contidas sob a blusa desabotoada pela metade até a parte interna de suas coxas cor de alabastro, distribuindo uma sensação indescritível de satisfação e prazer.

— Sua tolinha – sussurrou Rosmerta ao seu ouvido, roçando os lábios propositadamente pela cartilagem delicada da orelha –, arriscar-se dessa maneira só para ficar comigo. – Sua voz era doce e não havia repreensão em suas palavras.

— De que vale conhecer as passagens subterrâneas de Hogwarts se eu não as usar para estar com você? – Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao sentir o lóbulo ser levemente mordiscado pela outra.

— Agrada-me que tenha enfrentado a neve e a noite por minha causa – ela se deliciava observando a pele da jovem se arrepiar e seus pêlos se eriçarem a cada palavra sussurrada próxima ao seu ouvido –, você é a melhor coisa que poderia me acontecer após mais um dia de devassidão. – Sorriu satisfeita e passou a língua quente e úmida lentamente pela pele cor de giz, lambendo-lhe o pescoço desde a base do ombro até o entorno da orelha, como uma gata faria com seu filhote, divertindo-se com a palpitação que o desejo desperto causava na respiração da menina.

A prostituta Rosmerta, apesar de jovem, era muito hábil com as mãos, com a boca, com seu corpo. E ela ia além do habitual e se superava ao passar toda a sua experiência para aquela relação incomum. O sexo emanava de seus corpos, fluía por sua pele. Elas se encaixavam com perfeição e se completavam: gostavam de afirmar entre si que haviam sido feitas uma para a outra.

A seqüência de caricias se intensificava com naturalidade, diversificando as sensações, avivando seu efeito. Ambas sentiam o peito arquejar e a pulsação tornar-se acelerada. A pele desnuda se enfeitava de pérolas nascidas da transpiração. Não havia mais lugar para as palavras, apenas o idioma do corpo, o dialeto da sedução, a linguagem do prazer.

Bellatrix se contorcia como se ardesse em febre, como se o fogo que queimava em seu interior forçasse passagem pela crosta de sua epiderme, aumentando sensivelmente sua temperatura até aproximar-se do momento de entrar em erupção.

A menina sentia o corpo todo tremer, bem como sua voz e sua respiração, que era entrecortada e descompassada. Não sabia se tudo isso era pelo simples toque em sua pele ou pela aflição de saber que em breve sentiria as ondas do prazer maior lhe tomarem totalmente a carne. As mãos da amante rondavam suas partes mais erógenas, atiçando-a, instigando seus desejos, excitando-a ao extremo.

Ela fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, sentindo o quarto girar ao seu redor. Abriu-os novamente e se viu perdida entre a fartura de cores e a profusão de aromas com que a primavera de sentimentos lhe brindava: já não havia sons, apenas um zumbido muito ao longe. Fixou o olhar para se ver refletida nas profundas gemas azuis da outra, para lhe implorar sem vergonha que desse fim ao seu martírio e lhe brindasse com o prazer, abrindo-se despudoradamente e oferecendo sua dádiva de maneira servil.

Rosmerta se arqueou sobre seu corpo, esfregando seus seios fartos pelo contorno das costas da parceira, deixando suas madeixas louras caírem sobre o rosto da amante, então lhe agarrou os cabelos de ébano com força e puxou-lhe a cabeça ainda mais para trás, expondo-lhe o pescoço que também foi regiamente lambido em meio a palavras de sedução sussurradas quase que despercebidamente. Então, atacou-lhe os lábios, rápido como uma fera que caça, e lhe violentou a boca num frenesi desmedido.

Bellatrix sentiu o ar lhe faltar. Mas, para que respirar se ela tinha a chance de saborear sua língua? Percebeu que a mão da parceira se deslizava insinuante para satisfazer sua vontade mais urgente e sentiu o sangue ferver, o corpo levitar e a visão se embaçar ainda mais. Ela gemeu mais alto, como forma de súplica, clamando para que seu desejo fosse saciado e, quase em júbilo, sentiu seu pedido ser atendido.

Um urro grotesco escapou por entre seus lábios, ainda selados aos da outra, quando seus dedos a invadiram. Lágrimas escorreram de seus olhos e ela se percebeu a ponto de desfalecer. Sua amante sabia como usá-la com perfeição, conhecia com exatidão as suas arestas e os seus atalhos: em fração de segundos ela sentiu seu corpo ser tomado por indescritíveis ondas de calor que se alastraram e a entorpeceram, fazendo-a duvidar do que era real e o que era ilusão: o vulcão estava ativo e lhe proporcionava um longo e extenuante clímax, a primavera a dominava e lhe mostrava sensações que ela jamais julgara existirem.

O rosto de Rosmerta abriu-se num sorriso de satisfação, aguardou as chamas da outra se abrandarem e, então, recostou-se na cabeceira da cama de modo a aconchegar a cabeleira negra e úmida de suor da sua amada em seu colo. A face afogueada da menina e a respiração irregular não deixavam perceber se ela estava lúcida ou não, mas suas pernas se travaram ao redor da mão da protagonista de seu deleite, quando ela tentou recolhê-la.

— Deixe mais um pouco – balbuciou com um fio de voz.

— Minha Bella! – Respondeu a outra ajeitando seus cabelos e depositando um beijo terno em sua têmpora.

O toque da cortesã sempre levara a garota da tradicional família de sangue-puro à entrega total e absoluta, aos quais sempre se seguiam momentos de languidez e esmorecimento. Quando se tornavam uma só sentia que nada mais na vida tinha significado, nada mais importava: pertencer e entregar-se a ela era o momento que ansiava hora após hora e minuto após minuto, nas ocasiões em que ficavam afastadas.

A jovem Black parecia tomada por um sortilégio poderoso que a prendera e viciara absurda e incontestavelmente àquela bruxa mundana que a completava com tanta perfeição, era como se um feitiço de grande magnitude a elevasse e presenteasse com os prazeres mais devassos da turgescência. Mas, não era a magia que a mantinha atada à sua outra metade, tampouco uma poção poderosa que a fazia atingir indescritíveis auges de prazer. A explicação não estava na bruxaria.

Ela estava viva! Ela se sentia viva! E era a praticante do meretrício que a fazia se sentir assim. Era o encanto que ela lhe oferecia num sussurrar suave, o deleite que lhe ministrava em cada caricia ousada, a alegria que lhe proporcionava no simples fato de estar com ela. Felicidade, sensação essa que ela julgava improvável de vir a experimentar um dia, numa conjunção carnal compartilhada.

Rosmerta era uma mulher de muitos homens, mas era a primeira vez que se envolvia numa relação como essa. Já havia perguntado a si mesma o porquê daquela empatia, e a única resposta que obtivera era a de que mesmo ela precisava de um amor e, na sua profissão, isso não era coisa que encontraria entre os homens.

O vento continuava a surrar as paredes do antigo casarão. Logo, as primeiras luzes da manhã inundariam o ninho de amor e o casal se separaria uma vez mais. O inverno as observaria, por mais algum tempo, voltarem às suas atividades rotineiras: uma educando seu corpo e instruindo sua mente, outra usando o corpo para sobreviver e convivendo com a sua consciência. Mas, o desejo comum das duas era de que sempre haveria aqueles momentos de cumplicidade e luxúria, em que seria eternamente primavera e elas se satisfariam apenas com a presença e o toque uma da outra.

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O canto do galo trouxe a jovem de volta à realidade: precisava voltar a Hogwarts antes que a escola despertasse. Saltou da cama, juntando aqui e ali suas vestes e se recompondo, enquanto Rosmerta apenas puxava um lençol sobre o corpo seminu e sorria da afobação da outra:

— Se a expulsarem, te arranjo um trabalho aqui comigo! – Debochou.

— Não seria de todo mau – respondeu a garota, enquanto enrolava o cachecol verde da Sonserina ao redor do pescoço como toque final.

— Nem pense seriamente numa bobagem dessas – ralhou a outra, fazendo um beicinho –, é só uma brincadeira.

Bellatrix esboçou um sorriso por um momento, mas logo ficou séria novamente:

— Rô... Tem uma coisa... – Hesitou por um momento, apesar da pressa que a fizera postar-se ao lado da porta.

— Hum... São seus pais, não? – Ela adivinhou, ajoelhando-se na cama e recolhendo os seios para dentro do corpete que usava.

— Eles virão procurá-la, não tive como impedir – uma sombra passou diante de sua face, mas não era o rubor da vergonha.

— E... O que devo esperar dos temíveis Black? Uma maldição da morte? Uma fortuna em galeões? Ou... Talvez, um pedido de desconto para uma orgia com o casal? – Ela sempre deixara o bom humor nortear suas conversas mais sérias. Esse era seu modo de relaxar ao inevitável, mas Bellatrix não compactuava desse seu predicado.

— Eles vão querer comprá-la, Rô – por um instante, sua fisionomia demonstrou insegurança.

— Não se preocupe, amor. Não vou deixá-la por menos que uma pequena fortuna! – Zombou.

— Você é a única coisa que tenho! – A voz dela tornou-se ligeiramente embargada e, procurando não demonstrar aquele momento de fraqueza, virou-se de supetão para sair pela porta, porém estancou ainda sobre a soleira.

A mulher na cama percebeu o momento de indecisão da outra e, enquanto ajeitava os longos cabelos d'ouro num coque desajeitado, perguntou-lhe com ternura na voz:

— Alguma coisa ainda te preocupa?

Bellatrix girou lentamente nos calcanhares, mas seu olhar se manteve fixo num ponto aleatório no soalho do quarto.

— Disseram-me que o diretor Dumbledore foi visto se retirando da Casa... E que você o acompanhava... – O olhar inquisidor ergueu-se lentamente até pousar no semblante tranqüilo da outra, mas o sorriso com que Rosmerta sempre recebia suas dúvidas mais tolas ou suas perguntas mais contundentes tinha o poder de desarmá-la.

— E se eu lhe dissesse que o velho Albus é um dos meus clientes? – Provocou-a, divertida.

— Sei que não é... Você já me disse que ele...

— Ele se preocupa com você, Bella. – Seu tom de voz tinha a intenção de tranqüilizá-la, mas não surtiu o efeito desejado.

— Como se não me bastasse meus pais... – Ela bufou, cruzando os braços e batendo os pés nervosamente no chão.

— Quando as pessoas se preocupam com você, quer dizer que te amam! – Pela primeira vez ela desviara seus olhos dos dela para falar, demonstrando que a frase não era de todo verdadeira.

— Pra mim, só existe você, Rô. E, "ai" daquele que se colocar no nosso caminho. – Os olhos dela brilharam com tal intensidade que deixou sua anfitriã pouco à vontade.

Bellatrix tinha uma personalidade muito forte e, apesar de se aparentar meiga e frágil na companhia da amante, seus momentos de dependência e doçura limitavam-se a estes breves períodos.

Rosmerta sabia de seus tormentos e suas fraquezas, bem como reconhecia que seus sentimentos por ela eram verdadeiros e, da mesma forma que a outra, não pouparia esforços para vê-la feliz.

— Deixe de ser boba, venha me dar um último beijo e corra para os seus livros mofados – seu rosto iluminou-se num sorriso, enquanto lançava os braços em direção à menina.

Bellatrix se aproximou mais confiante e seus lábios se colaram uma vez mais. Apesar da fé que Rosmerta lhe passava, ela fez questão de sentir ao máximo o sabor daquela língua, ao mesmo tempo em que procurava decorar com o tato a maciez da sua pele nos contornos de sua face.

Rosmerta era para ela, ao mesmo tempo, a doença e a cura, a dor e a anestesia, o veneno e o antídoto. Ela iria até as ultimas conseqüências para continuar ao seu lado.

Seus planos eram simples: enfrentaria os pais e toda a tradição dos Black para fugirem da clandestinidade de sua relação, terminaria seus estudos e, de posse do seu reconhecimento como bruxa e da sua maioridade, resgataria sua amada do meretrício e viveriam juntas, desafiando a tudo e a todos que se opusessem ao seu amor.

E, aqueles que insistissem em confrontá-la, teriam que pagar o preço por seu desafio: assim era e assim pensava Bellatrix Black.

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¹Públio Siro