Capítulo 1
Tudo a sua volta era um mar de silhuetas, ofuscadas por uma forte luz branca posicionada sobre ele. Sentia que seus braços, pernas e tronco iriam ficar com marcas quando se soltasse das cintas de couro que o prendiam à mesa fria e reta. Um cheiro forte de químicos impregnava o ambiente e ele achou melhor não saber do que era…
Ele podia ignorar tudo isso, mas o que o estava deixando louco era aquele simples "Plop".
Plop.
O barulho era constante, vindo de algum líquido pingando em alguma parte daquele ambiente escuro... e tirava toda a sua concentração.
Uma figura masculina se moveu em sua visão periférica. Ele ouviu ruídos de borracha esticando e metal batendo contra metal. A silhueta aproximou-se. "Mais uma vez, peço desculpas por qualquer… incômodo que venha a sentir, mas esta é a maneira mais eficaz para o procedimento. Então, por favor, permaneça acordado."
Plop.
Ele deu uma risada sem humor algum, não acreditando na sinceridade daquelas palavras. Era difícil acreditar em alguém com uma voz tão fria e indiferente. Em suas mãos enluvadas, a sombra segurava uma pequena espátula, afiada e brilhante.
Ele se perguntou se a silhueta estava tentando deixá-lo com medo… nervoso.
"Só acabe logo com isso," foi o que ele decidiu responder, sem quebrar contato com seu olhar, sem mostrar o medo.
Plop
A silhueta o estudou com aqueles olhos vermelhos e sem vida, finalmente dando-lhe um pequeno sorriso. "Como desejar," e caminhou até o pulso direito dele. Ele sentiu a sensação aguda de uma agulha perfurando sua pele. A silhueta se moveu novamente em direção a sua cabeça raspada, murmurando para si mesma enquanto saía de seu campo de visão.
Plop.
Suas pálpebras ficaram pesadas e ele queria dormir.
"Incrível," a mesma voz fria dizia em algum lugar distante. "Tanto poder, tão jovem… Tudo jogado fora."
Plop
Ele não conseguia responder, mas podia jurar que ainda sentia tudo a sua volta. Tudo. Podia jurar que sentia o metal partindo sua pele… sentia enquanto ela era puxada para formar um buraco.
Plop
Ele tentou pensar em outra coisa. Pensou em seu irmão. Seu pai. Nas promessas que fizera. Pensou naqueles lábios. Naqueles olhos azuis esverdeados. Naqueles cabelos claros e sedosos pelos quais adorava passar os dedos. Pensou naquele sorriso que se formou tão rapidamente quando ouviram aquela… proposta. Ele se lembrou do quão feliz ela ficou. De como ele sorriu em resposta... ainda que seu coração parecesse estar se despedaçando, mesmo não querendo admitir na época.
Plop
Ele podia sentir… sentir uma parte sua sendo arrancada dele, sem que pudesse dizer nada, mas ele tinha que deixar. Não tinha como recusar.
Era o que ele deveria fazer, não havia outra opção.
Plop
De onde esse barulho vinha?
Ele tentou olhar a sua volta sem mexer a cabeça, mas aquela luz piorava tudo. Ele conseguia ver apenas manchas brancas, até quando fechava os olhos. As batidas fortes e aceleradas de seu coração pareciam tentar avisá-lo de que algo estava errado.
Plop
Ele tinha que parar. Dizer não. Pedir. Implorar.
Ele se lembrou das promessas que fizera. Lealdade no lugar de liberdade. Um favor em troca de controle… Ele não queria nada disso. Ele entrou em pânico, mas seu corpo não se moveu, mantendo-se inerte sobre a mesa fria.
Plop
Essa promessa foi um erro, pensou, mas qual das promessas se referia, nem mesmo ele sabia. Ele só não queria nada disso. Estava cansado. Cansado de seu pai. Cansado de sua vida. Cansado do que ele era.
Plop
Ele nem conseguiu tremer ao ouvir o barulho de uma serra sendo ligada próxima a sua cabeça. Ele sabia o que viria a seguir... Mas lembrou-se de que iria apenas ouvir.
Não vou sentir, pensou consigo mesmo. Vou apenas ouvir. Não vou sentir.
"Apenas uma criança… e tanto poder assim. Um desperdício."
Só faça isso! Queria gritar. Só acabe com isso.
Plop
Ele pensou nela novamente. Em sua boca. Sua pele macia. Sua primeira vez. Quão boa era a sensação de tê-la embaixo de seu corpo enquanto passava seus dedos por alguma parte sensível que passou a conhecer bem.
Ele prometeu que ela seria dele. Ele prometeu. Eles queriam que ele prometesse.
Eles o fizeram prometer.
Mas talvez desse certo.
Plop.
Não vai doer, ele pensou novamente. Não vai-
Ele gritou quando sentiu sua cabeça abrir ao meio.
Vampira acordou em um salto, contendo um grito de dor. Sentando-se em sua cama, sentiu pingos de suor escorrendo em sua testa enquanto suas mãos instintivamente moviam-se para seu couro cabeludo. Seus dedos procuravam por algo incomum entre os fios de cabelo: uma linha fina de pele cicatrizada... uma prova de quando ele procurou por… pelo quê? Ele não se lembrava mais a razão… Apenas que precisava desesperadamente de-
"Não!" Vampira finalmente percebeu o que estava acontecendo e colocou a cabeça entre as mãos. Não havia cicatriz. Pelo menos não nela. Ela. Uma dor repentina fez sua cabeça latejar e ela fechou os olhos.
Plop, plop.
Pingos de chuva batiam contra a janela de seu quarto e Vampira finalmente notou a tempestade que começou depois de ter ido dormir. Olhando a sua volta, deparou-se com os olhares fixos de artistas góticos em pôsteres grudados na sua parte do quarto. Vampira repetiu o nome de cada um. Lembrando a razão de estarem ali; a razão de ela colocá-los ali.
Plop, plop.
Finalmente, virou-se para observar sua colega de quarto, que continuava a roncar em sua cama sem indício algum de ter acordado.
"Kitty," Vampira repetiu para si mesma. "Kitty Pryde, minha amiga."
Voltando sua atenção para suas mãos esbranquiçadas e sem luvas, lembrou-se de seus poderes. Relembrou a razão de estar ali e não… em qualquer outro lugar que achava estar em seus sonhos.
Algumas vezes, Vampira sentia que sua própria mente a forçava a esquecer de quem as lembranças eram… aquele sonho foi uma lembrança, disso tinha certeza. Anos convivendo com as consciências de diversas pessoas em sua cabeça a fizeram experiente em identificar quando outras personalidades a estavam dominando. Não que isso a ajudasse a resisti-las com mais facilidade.
Plop, plop.
Um calafrio percorreu seu corpo enquanto relembrava o que experienciou no sonho, mesmo que não conseguisse identificar o dono da-
Plop, plop, plop.
Ela encarou a janela com raiva e fechou as cortinas.
Vampira sempre gostou de dormir ao som de chuva, mas hoje o barulho era a pior coisa que poderia ouvir no mundo.
Plop, plop.
Encostou a cabeça contra os joelhos dobrados e fechou os olhos tentando acalmar-se.
Plop, plop, PLOP.
Não se atreveu a olhar o relógio, pois sabia que iria se enfurecer mais ainda.
PLOP.
Abafando um grunhido de raiva para não acordar Kitty, Vampira arrancou as cobertas de seu corpo e caminhou até a porta para ir até a cozinha.
Um copo de leite quente, ou talvez um pouco de chá, iria ajudar a acalmá-la.
Porém, andar pela mansão à noite durante uma tempestade, com relâmpagos eventualmente iluminando os corredores escuros (seguidos pelo rugido de trovões) não foi de muita ajuda.
Ao pisar fora dos tapetes, ela imediatamente se arrependeu de não colocar as meias que perdera no meio das cobertas enquanto dormia. O chão estava gelado e a deixava ainda mais friolenta. Ao chegar à cozinha, foi diretamente ao armário que guardava os pacotes de chá e torceu para encontrar um de camomila.
Pelo menos nisso estava com sorte, pois achou o último sachê no canto do armário. Enquanto preparava sua bebida, ela decidiu pensar em coisas boas: como o fato de finalmente estar próxima de sua formatura.
Um ano perdido, graças ao número de faltas que adquirira por passar metade do ano tentando "salvar o mundo" ao invés de se preocupar com provas de Francês e Matemática (quem disse que ser heroína não tinha lá suas desvantagens?). Ainda assim, ela obrigou-se a continuar na escola e repetir o último ano para conseguir seu diploma, o que lhe rendeu um sorriso orgulhoso do Professor Xavier ao pedir-lhe desculpas por não conseguir convencer o diretor Kelly a dar uma chance de fazer as provas, mesmo com uma boa razão para as faltas.
Apenas mais alguns meses lhe restavam, e ela estaria livre.
Não que ela pensasse em ir para a faculdade como Jean fez.
Vampira esperava se tornar uma X-Man em tempo integral como Scott: trabalhando para o Professor Xavier, encontrando novos recrutas, ajudando Hank em suas pesquisas sobre mutações, coletando dados… e eventualmente monitorando as atividades de organizações anti-mutantes como as empresas Worthington ou ameaças para a humanidade como Magneto e Mística. Tudo em busca de paz e um futuro melhor...
Ela sorriu para si mesma, lembrando-se de uma época em que queria ser uma heroína como nos desenhos animados.
Ainda que não estivesse nem perto de ser uma Mulher Maravilha, Vampira nunca teria adivinhado que estaria usando uma roupa apertada e realizando o sonho da paz mundial de toda Miss Estados Unidos.
Sentindo-se menos inquieta, ela despejou água em uma caneca até que se assustou com a silhueta gigante de Piotr na entrada da cozinha.
"Desculpe, Vampira," falou enquanto ajudava-a a limpar o pouco de água que havia derramado no balcão. Ele manteve uma distância para mantê-la confortável, como sempre se preocupava em fazer desde que chegou na à mansão. "Não sabia que era o único sem conseguir dormir," ele olhou para o pacote de camomila que ela acabara de pegar.
Vampira deu-lhe um leve sorriso quando ele perguntou se ela estava bem.
Quando Piotr juntou-se aos X-Men, alguns meses depois da batalha contra Apocalipse, ninguém pareceu muito surpreso. Antes mesmo de fazer parte da equipe, o gigante russo conseguiu conquistar boa parte dos integrantes (principalmente Kitty e Kurt) com seu jeito retraído mas gentil, e alguns (Kitty, Kurt e Tabitha) até apostaram o tempo que demoraria para que Colossus mudasse de time oficialmente - Kitty ganhou, apostando em dois meses.
Scott foi o mais desconfiado (como sempre), mas o comportamento leal do russo durante os treinos na Sala de Perigo foram suficientes para fazê-lo mudar de ideia. E ao descobrir o amor de Piotr por carros, os dois não se desgrudaram mais - ou melhor, Scott sempre procurava uma brecha em suas conversas com Piotr para falar fervorosamente sobre o assunto.
"Estou bem," Vampira respondeu enquanto observava Piotr colocar um pouco de leite em uma caneca qualquer. "Só tive… um sonho ruim," outro problema era a facilidade em ser mais…. aberta perto dele. Ele era um ótimo ouvinte e nunca deixava escapar qualquer tipo de informação alheia, diferente de uma certa… pessoa que atualmente dividia seu quarto com Vampira.
Mas isso não significava que Vampira contava para o colega X-Man seus problemas constantes de insônia… ou a ansiedade que tinha ao ficar em uma sala com mais de cinco pessoas, por maior que fosse o espaço… ou o medo que tinha de esquecer como era tocar uma pessoa… ou que não se lembrava da última pessoa que tocou antes de seus poderes terem aflorado.
Piotr estudou a expressão de Vampira por alguns instantes, procurando responder de uma forma que não parecesse intrometido. "Ia recomendar um chá de camomila pra se acalmar, mas obviamente você já pensou nisso," disse em um tom calmo, concluindo que ela não queria se aprofundar no assunto do pesadelo.
Vampira sorriu. "E você? Por que não conseguiu dormir?"
"Ainda estou acostumado com o horário da Rússia, acho. E nunca gostei de tempestades."
"Acho que ninguém gosta muito de uma tempestade como essas," ela riu e um trovão coincidentemente rugiu no lado de fora. "Talvez apenas Ororo, mas ela não conta."
Piotr então falou sobre sua irmã, que continuava na Rússia e como gostaria de trazê-la para visitar os X-Men algum dia. A conversa ajudou Vampira a se distrair e logo se viu esquecendo o pesadelo. A tempestade continuava a trabalhar do lado de fora, mas os dois X-Men não mais se incomodavam com o barulho.
Ao ficarem sem assunto, Piotr esquentou seu leite e decidiu voltar para o quarto para tentar dormir novamente, não antes de virar-se e falar, "Vampira, eu sei que estou aqui há pouco tempo, mas… se precisar de algum amigo, estou aqui para conversar."
Sua sinceridade a deixou tocada. "Obrigada, Pete." Ela sabia que sempre teria alguém para ajudá-la na mansão… que ela não estaria completamente sozinha.
E ele se foi.
Vampira pensou em todos as noites que passava tentando esconder seu pânico, tentando reprimir lembranças que não eram dela, como as dessa noite. Pensou em todas as vezes que podia ter pedido a ajuda de Kitty, ou do professor Xavier… ou até de Logan… e como sempre estavam dispostos a ajudar. Ainda assim… jogar suas tristezas, inseguranças… problemas para os outros e esperar que encontrassem uma solução que nem mesmo ela conseguia achar a deixava ainda mais angustiada.
A última coisa que queria era causar ainda mais sofrimento aos outros.
Vampira sabia que não estava sozinha, mas também sabia que alguns de seus demônios deveriam ser enfrentados por ela e apenas ela, não é?
Pelo menos, esse era o caminho mais seguro. Para ela e para todos a sua volta.
Em um suspiro, ela pegou a caneca com seu chá e assustou-se ao sentir a superfície quente da porcelana…
Confusa, Vampira tentou lembrar-se de quando havia colocado sua água para esquentar...
Ela desistiu, concluindo estar tão imersa em pensamentos que nem percebeu o que estava fazendo a sua volta.
O cheiro de camomila a fez suspirar de alívio e, enquanto caminhava de volta para seu quarto, o frio não a incomodava mais, seus pés estavam quentes e suas mãos formigavam com o vapor da água.
Ao sentar-se em sua cama, Vampira demorou para beber seu chá, tentando aproveitar ao máximo o calor da xícara entre suas mãos sem luvas. O barulho da chuva não a incomodava mais e ela até ousou abrir suas cortinas novamente, observando os pingos de água batendo contra o vidro.
Quando terminou seu chá, a xícara continuou quente entre seus dedos e Vampira a segurou até que todo o calor fosse embora.
O sono logo veio e ela voltou a dormir com o gosto doce e suave de camomila em sua boca.
Dessa vez não sonhou, e isso foi algo bom.
Oi pessoal! Primeiramente, agradeço por darem uma chance a essa fic e peço desculpas se o primeiro capítulo parecer meio… parado? Ainda assim achei necessário escrevê-lo antes de iniciar a história, só pra dar uma situada melhor na história geral.
Enfim: Só se passaram dois meses depois da Batalha Final contra o Apocalipse. Tudo que aconteceu na série é canon mesmo (até aquele penteado do Remy, sinto dizer) e Vampira só tem as personalidades que absorveu depois do Apocalipse tocar nela (no final da terceira temporada, lembram?).
Essa fic está sendo um exercício para melhorar meu português, então espero que o que escrevi não pareça estranho e, se parecer, aceito criticas construtivas.
Beijocas!
