Shot

Bárbara E. Johnson

1

Sentia frio. Não estava acostumado com aquele clima. Lamentava por isso e praguejava baixinho enquanto arrastava aquele saco preto por aquele beco que aos seus olhos parecia cada vez mais longo.

Era um lugar perigoso e fétido, ótimo para se livrar de corpos. – pensou.

Não sentia a presença de quase ninguém, a não ser daqueles ratos que ao acaso passavam rente aos seus pés fugindo da sua presença.

Transpirava pelo esforço, mas não era o suficiente para se manter aquecido. Precisava encontrar um lugar o mais rápido possível. Avistou uma caçamba e suspirou aliviado. Seria ali mesmo.

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- Uma hora e quarenta minutos. – afirmou logo depois do outro ter praticamente se jogado dentro do carro. Parecia trêmulo, e podia sentir sua respiração pesada e fria.

- Não sei o que há de tão complicado em encontrar um lugar para depositar um morto, Milo.

- Ora, talvez eu seja um necrófilo ou qualquer coisa parecida. – esfregava freneticamente suas mãos na calça jeans um pouco surrada, na vã tentativa de aquecê-las. O outro apenas sorriu com o seu comentário.

- Só não acredito nessa sua resposta por conta de eu ter uma ótima memória e me lembrar bem do rosto da vítima: Velho, feio e obeso.

- Eis aí, exatamente o ponto que eu queria chegar, meu caro Mú. – tateou seu bolso esquerdo em busca de seu maço de cigarros. – Acha mesmo que foi fácil carregar aquela criatura que no mínimo pesava uns cento e oitenta quilos por quase dez quadras?

- Como reclama... – deu partida no carro e em segundos já se afastava daquele lugar.

- Certo. Da próxima o trabalho sujo fica por sua conta.

-

Apenas uma mala. Uma grande mala um tanto suspeita. E seu interior era demasiado interessante. A primeira vista, teria a visão de apenas roupas, sapatos e outros tipos de inutilidades. Mas como nem tudo é o que parece, e sempre devemos suspeitar das coisas mais óbvias, ela tinha um fundo falso. E que se tirassem toda aquela parafernália de cima, surgiria nada mais nada menos do que um casal de rifles AK-47.

Ninguém andaria por aí com uma bagagem tão suspeita no porta-malas. Não alguém em sua sã consciência. Mas aqueles dois não pareciam estar preocupados com aquele carregamento, mas sim em esvaziar aquele carro, e por fim, jogado direto por aquele desfiladeiro.

- É o nosso terceiro carro este mês. – Milo fez as contas enquanto retirava aquela imensa mala com certa dificuldade.

Lembrava-se bem dos outros dois carros. E sentia um aperto no peito ao se recordar do primeiro que teve de ser destruído. Um Jaguar XJ-S de 1975 por quem estava começando a se afeiçoar. Foi uma grande perda, pensou Milo logo depois de ter ateado fogo no automóvel.

- Pense pelo lado positivo, escorpião. – Juntou-se ao outro na missão de colocar aquela mala pra fora do carro. - Nós não pagamos por eles.

- Nesse ponto você tem razão. – suspiraram os dois aliviados, depois do pequeno esforço que fizeram.

Conferiram mais algumas vezes se não estavam deixando para trás nenhum rastro ou algo que se parecesse com uma impressão digital ou até mesmo alguma mancha de sangue da vítima.

Tudo perfeito, como já era de se esperar.

- Esse trabalho já está ficando monótono. – declarou o homem de cabelos cor-de-lavanda, enquanto tragava seu cigarro de canela. Não se familiarizava muito com o tabaco, mas o frio era tanto que talvez pudesse sentir uma sensação mais calorosa dentro de si enquanto a fumaça percorresse seus pulmões. E além do mais, aquele cigarro nos lábios do Milo lhe pareceu tão convidativo...

- Como assim? – O questionou não tirando o olhar daquele abismo, observando como as ondas batiam agressivamente nas pedras como se quisessem forçá-las algo do que elas não gostassem, mas elas ficavam ali, firmes, fortes e corajosas sem se moverem por mais que aquilo doesse. Admirava aquela sincronia.

- Tudo fácil demais.

Estavam sentados na grama fria e espessa, ao lado de suas bagagens e bem próximos ao desfiladeiro. O vento lhes cortava o raciocínio e enquanto conversavam, havia longas pausas entre uma resposta e outra.

- Pois eu não abro mão disso. Quero dizer, dessa monotonia, já que assim você a denomina.

- Não vejo graça quando não se corre um perigo a mais. Como daquela vez no Alabama, com aqueles trezentos atiradores de elite descarregando suas armas sobre nossas cabeças. E também aquela vez na Turquia...

-... Em que eu tomei um tiro no traseiro. Lembro-me bem dessa. – completou com uma leve angustia na voz. Seu parceiro não pode deixar de cair no riso, por lembrar daquele fatídico dia. – Você ri porque não foi você que ficou quatro malditos meses sem poder fazer sexo.

- A culpa foi toda sua, Milo. Eu bem que avisei para você parar de se engraçar com a filha daquele banqueiro. Mas como você nunca me escuta, deu no que deu no final.

- Não precisa ficar jogando na minha cara o quanto eu ainda necessito que você troque minhas fraldas. – não parecia estar ofendido no tom de voz que utilizara. Apenas dizia em outras palavras o quanto precisava do amigo e de seus conselhos.

- Parceiros servem para isso também. – tocou suavemente em sua mão, que parecia estar tão gelada quanto a sua. Recebeu um sorriso agradecido do amigo e pensou que talvez essa fosse a única coisa bela que tinha visto naquela noite.

- É melhor nos livrarmos dele depressa, antes que eu me arrependa. – apontou para o carro e se prontificou e levantar-se e ajudar o amigo a fazer o mesmo.

Puseram cuidadosamente suas luvas, e começaram a empurrar o carro direto para o precipício. Era bem alto, e Milo calculara que não demoraria menos de dois segundos para o carro chegar finalmente ao seu destino: as ondas e as pedras.

- Era um belo carro. – concordaram olhando para o que um dia fora um Rolls-Royce Silver Shadow cor ônix extremamente luxuoso.

- O que eu mais precisava agora era de um cobertor com cinco centímetros de espessura, um chocolate quente estilo vulcânico e alguém para ficar comigo na cama assistindo qualquer coisa na tevê, me esquentando com seu calor humano a noite toda. – Milo comentou, parecendo que aquilo fosse talvez a coisa mais difícil de se conseguir em todo o mundo. Pelo menos na situação em que ele estava agora.

- Eu não queria parecer pessimista, mas talvez isso não seja possível. Em primeiro lugar, quando chegarmos – e se chegarmos – já será dia, então impossível você querer passar a noite com alguém. E mudando o ponto de vista, caso cheguemos em algum lugar, não haverá ninguém por lá que o queira. Mas no caso do chocolate quente talvez eu possa arrumar pra você.

- Pode?

-... Caso haja alguma loja de conveniência aberta nesse fim de mundo a essa hora da madrugada.

- Ora, aquilo foi só um devaneio, Mú. Não precisava de toda essa constatação pra me deixar ainda mais deprimido. - começaram a andar a procura de algum hotel barato prestando atenção apenas no vapor quente que saía de suas bocas.

-

Sete e meia em ponto. Seu despertador natural nunca falhava. Estava parcialmente disposto quando se levantou. Foi direto ao banheiro onde pode tomar um longo banho quente. Pediu um café da manhã pelo serviço de quarto e aguardou sentado no sofá, onde lia as primeiras noticias do dia no The Times.

Ouviu alguns ruídos vindo do quarto. Presumiu ser Milo acordando finalmente. Apenas o observou ir sonolentamente até o banheiro e fazer suas necessidades. Sentou-se a mesa da pequena cozinha e ainda com os olhos semi cerrados resmungou algo inaudível.

- Que ótimo. Nada de comida. - se arrastou até o frigobar e encontrou nada além de gelo.

- Bom dia pra você também escorpião. - disse sem tirar os olhos do jornal. - O serviço de quarto já deve estar chegando. E não espere muito da comida dessa espelunca.

- Não estou preocupado com a qualidade, e sim com a quantidade. Não como nada há dias! Qualquer merda serve.

- Tudo bem, já está aqui. - concluiu segundos antes de ouvir a campainha tocar. Seu ouvido era apuradíssimo e muito útil no trabalho.

Foi atender a porta e se deparou com algo que não esperava. Um banquete digno dos melhores hotéis da cidade, que não era o caso daquele onde os dois estavam hospedados. Vários tipos de pães, bolos, frutas e sucos variados compunham a refeição. O cheiro forte da comida fez com que o estomago dos dois saltitassem. Agradeceu e deu a gorjeta à moça e seguiu com o carrinho até a cozinha junto de Milo.

- Ora, ora! Finalmente alguém lá em cima prestou atenção nos mocinhos aqui! - esfregou as mãos umas nas outras contentes, e comendo primeiramente com os olhos toda aquela fartura.

- Tem um bilhete. - Um observou um pequeno papel azul ao lado do prato com a manteiga.

"Para os meus garotos preferidos pelo ótimo trabalho de ontem". - o bilhete dizia com uma letra dourada e bem desenhada.

- Simpático da parte dela mandar isso para nós, não acha?

- Hum? - estava com a boca completamente cheia de bolo de chocolate. Um apenas negou com a cabeça se divertindo. Tomou um gole do suco para baixar a comida. - Aquela vaca não fez mais do que a obrigação! - continuou devorando o bolo de uma forma assustadora.

- Ela deve estar tentando se redimir. - voltou para o seu jornal, direto para a parte dos óbitos.

- Por ter nos deixado sozinhos nesse fim de mundo sem comunicação, sem grana, sem comida, apenas com dois rifles e munição? Por acaso nós somos algum tipo de máquina? Ok, ela vai precisar de muito mais do que um café da manhã pra se desculpar por isso.

- Todos erram Milo, mas o importante já foi feito. Concluímos o trabalho e iremos para casa sãos e salvos.

- E com que dinheiro? - pararam tudo o que estavam fazendo, e se entreolharam interrogativos. Dessa vez nem Mú tinha uma resposta. - Vamos gênio! Pense em algo para nos tirar dessa agora! - continuava comendo compulsivamente. Estava nervoso e odiava aquele lugar. Queria se ver livre de lá e de tudo o que lembrasse a Inglaterra.

- Me dê algumas horas e eu arrumo alguma coisa. Não sei, talvez exista um banco nesse município. Posso retirar alguma grana e...

- E toda a polícia do continente estará colocando as mãos em você em minutos. Não, não podemos mexer na nossa conta agora. Acabamos de matar o vice-presidente daquela maldita organização e todo mundo está atrás de nós.

- Eu sei, mas então como vamos dar o fora daqui?

- Você é o cérebro da dupla, Mú. Eu é que pergunto. Hum, e encha essa barriga com alguma porcaria porque saco vazio não pára em pé. E nem pensa.

-

Enquanto Milo fazia algumas séries de abdominais, Mú maquinava em sua mente algum plano para que pudessem sair daquela maldita cidadezinha. Não estava sendo fácil, pois as condições não estavam nada favoráveis a eles.

Talvez a sua agenda de contatos ajudasse em alguma coisa. Ela nunca falhara anteriormente. Correu o dedo pelos nomes, observando e lembrando das fisionomias deles. Hum, e lá parecia existir muitas pessoas interessantes, mas nenhuma que os salvassem daquela bendita enrascada em que se enfiaram.

Quando já estava desistindo, eis que surge um luz no fim do túnel.

- Milo, acho que já encontrei nossa salvação. – foi correndo até o amigo que apenas lançou-lhe um olhar desconfiado e continuou com suas abdominais. – Nós vamos a uma festa hoje.

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