Essência

– Bobo!

– Idiota!

– Feio!

Foi por essas e outras que Kazuma aprendeu a bater. No início doía mais nele do que nos adversários, até porque ele apanhou um bocado até conseguir a primeira vitória.

E ela veio quando ele menos esperava e com um brinde mais incrível ainda. Depois de ouvir todos os nomes feios que a irmã sabia enquanto varria os cacos do bibelô caríssimo herdado da avó, ele foi dar uma volta e o viu. Logo ele, aquele idiota que se passava por bom moço na escola, mas vivia fazendo arruaça, cantando os pneus do carro do pai e levantando as saias das colegiais, até aquelas que nem tinham desenvolvido corpo ainda.

Naquela noite Kazuma o viu tentando agarrar uma menina... Aquela menina bonita que ele paquerava de longe e nunca – nem nos sonhos dele – lhe dirigiria a palavra. Bem, era o que ele pensava até ouvir um tímido obrigada. E o cara lá, estirado no chão. Kazuma viera por trás, aplicara uma gravata, uns murros no nariz e livrara a menina bonita dos braços inconvenientes do folgado.

Depois do agradecimento, um beijo! Um beijinho mixuruca na bochecha, mas impactante o bastante para Kazuma não lavar a face direita por uma semana. Então uma espinha profanou o local sacralizado pela carícia inocente. Mas água, espuma e um curativo pequenino não apagaram a sensação de bem-estar que ele sentia ao passar a mão na área agraciada com o carinho. Bem, ele não ganhou o coração da garota, mas teve sua simpatia por muito tempo, até que ela foi embora sabe-se lá para onde. Pobre Kazuma, não teve despedidas e sequer notícias da menina. Mas a essa altura já conquistara respeito. Talvez por isso não doesse mais fazer moleques folgados de saco de pancada. Até porque ele aprendeu a bater de um jeito que era difícil superar.

Então veio Urameshi, o metidinho a valente que usava gel no cabelo e fez Kazuma saber – do pior jeito – que havia alguém melhor que ele na área. A indignação não foi maior porque não houve tempo para isso. Depois do soco, ou melhor, depois de Yusuke Urameshi, o mundo virou de pernas para o ar. Kazuma conheceu mundos que nem sonhava existirem. Aí sim, ele teve que aprender a lutar de verdade e tirar partido de sua energia sobrenatural, e ao mesmo tempo em que se orgulhava do progresso conseguido a duras penas, sentia medo. Afinal, o que eram os pirralhos das gangues metidos a bestas frente aos demônios que ele teria de enfrentar? E como Kazuma sofreu! Ele era sensitivo e nada mais. Não era um koorime nem um meio-youkai. Sua essência era humana. Mas depois de derramar litros de suor e sangue, viu que não era qualquer humano. Era um guerreiro, e dos bons.

Kazuma encheu o copo. Nem sabia quando tinha aprendido a beber saquê, talvez tivesse sido com Yusuke mesmo. Ora, quem diria. O cara que teve a ousadia de machucar o "grande Kuwabara" era agora seu companheiro de aventuras. E que aventuras! Com elas vieram Koenma, Botan, Kurama, Hiei. Os quatro – Hiei meio a contragosto, parecia que os santos dos dois jamais se bateriam – , com a ajuda de Keiko, Yukina e Shizuru, haviam preparado uma festa surpresa para ele. Coisinha simples, porque ele adorava as coisas simples.

Nem sabia que horas eram quando os amigos deixaram a casa onde ele morava com a irmã Shizuru. Mas, apesar da percepção alterada pelo efeito da bebida, ouviu Yusuke dizer, olhos castanhos brilhando, enquanto estendia um envelope vermelho:

– Eu fiz isso pra você. Não gosto muito dessas paradas melosas e pra falar é pior ainda. Então tá aí. Mas só abra quando eu sair, que eu não tô a fim de ver um homão feito você chorando na minha frente.

Kazuma riu e abraçou o amigo com força. Ajudou Shizuru a pôr ordem na pequena bagunça que se instalara na sala, tomou um banho frio para espantar o efeito do álcool e, envolvido no edredon recendente a sabão em pó, abriu o envelope e se deparou com a caligrafia miúda de Yusuke.

E aí, mané! Tá ficando velho, hein?

Só você pra conseguir essa proeza de me fazer escrever mensagenzinha. Então, sem enrolação: cara, te admiro pra caramba. Incrível como você evoluiu a ponto de lutar em pé de igualdade com youkais. Isso prova que no fundo você talvez seja o mais poderoso dessa equipe, porque tem uma persistência que nunca vi numa pessoa comum. Confesso que não esperava tanto de você.

Só não entendo como, com todo esse poder, você vem chorar no ombrinho do amigo aqui quando alguém te ofende e diz que é idiota, paspalho e sei lá o quê mais. Da próxima eu não vou passar a mão na sua cabeça oca nem quebrar a cara do mané que te ofendeu, quebro você e te mando ir atrás do cara pra dar um corretivo nele!

Ei, fica na boa que é brincadeira! Sei que você é um cara tranqüilo e que aquela fase de bad boy já era. Ainda bem, porque você é um dos poucos que bota juízo nessa minha cabeça de vento. É por essas e outras que te considero meu melhor amigo

Agora chega, já tô querendo chorar, e olhe que não chorei nem quando tentei escrever um bilhete de amor que já faz tanto tempo que nem lembro pra quem foi (também, tava tão ruim que rasguei).

A gente se vê por aí, meu irmão. Meu irmãozão de coração enorme e bom. Abraço meu e do povo que cismou que eu tinha que escrever a mensagem pra você porque sou mais amigo e tal...

Feliz aniversário.

Yusuke Urameshi

O aniversário passou, e quando vierem outros o envelope vermelho continuará na gaveta do criado-mudo, para ser lido com a mesma emoção daquela noite em que Kazuma foi dormir chorando, mas imensamente feliz... Para que ele continue a lembrar de que é muito mais do que aparenta ser.

Fim