Do título: O título da fanfic, "Sub occasum solis", está em latim e significa "Ao cair da noite".

O Tango utilizado chama-se "Reina Del Tango", de Carlos Gardel.

O título do primeiro capítulo, também em latim, "Evanidus Réquiem", significa "Réquiem triste".

Réquiem: Missa fúnebre.

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"...Da mesma matéria que compõe os sonhos..."

O.o.O

SUB OCCASUM SOLIS

By Esmeralda Amamiya

O.o.O

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Os amores felizes se parecem entre si. Já os infelizes, o são cada um a sua maneira. Ia alta a lua. Na mansão da Morte já meia noite com vagar soou. Ao longe, funéreas portas com fragor rangeram, para voltarem a cerrar-se com um surdo estampido, seco e disperso. Dentro, o silêncio sepulcral preenchia todo o ambiente, entrecortado pelo crepitar das velas já de todo consumidas, cujas chamas bruxuleavam nas paredes envelhecidas de onde pendiam retalhos de seda escarlate, impregnados de odor adocicado de verbena.

As mesas negras, de aspectos seculares, estavam espalhadas peremptoriamente pelo salão e naquele momento encontravam-se ocupadas por homens da decadente sociedade alemã, que buscavam, afundados no tédio que regia suas vidas, um punhado de ilusões que se desfaziam ao nascer do dia. Porque no Leidenschaft jamais entrara a luz do sol. Que paz tranqüila! Dos vai e vens da sorte, só tinha descanso quem ali se escondia!

O Leidenschft...antes um teatro, agora um bordel. Lugar onde belas criaturas do submundo vendiam seu amor. Lugar onde, segundo lendas que naquele tempo faziam o sucesso do local – hoje ermo e abandonado -, habitava um poder sinistro, mais forte que o amor e mais cruel que o ciúme, ameaçando a vida de todos aqueles que ousassem se aproximar dela, La Mademoiselle triste coeur, a mais estonteante mulher que a Alemanha já vira...a mortal a quem ele amava...e ela era a estrela do leidenschaft!

Um murmúrio de vozes atroou, inaudivelmente, pelo recinto entontecedor, com seu cheiro de bebida misturando-se ao odor fétido de imundície e de morte. E tudo isso unindo-se, alucinadamente, ao cheiro de lodo, de perfume barato e de suor. Jovens, cujos anos eram escondidos pela pesada pintura, vestidas com suas cintas-ligas negras, espartilhos exuberantes que lhes modelavam os corpos, entretinham os homens com carícias imorais, derreadas, de joelhos, sobre o piso de tafetá vermelho que recobria, de forma irregular, todo o soalho, que rangia sob as passadas mais suaves, fazendo eco nas paredes altas e enegrecidas pelo tempo.

Ele estava envolto num sobretudo negro e roto, apertado pelos botões cerrados, fechando-o para o mundo, como se estivesse em seu claustro de morte, imerso em sua solidão. As mangas compridas terminavam onde as luvas de couro rústico e negro principiavam, envolvendo suas grandes e largas mãos num frio regelo, quebrado pelo ar abafado do local. A boina negra, à moda italiana, pousava, morbidamente, sobre os cabelos espessos e loiros, impedindo que lhe vissem os olhos onde a tristeza fizera sua morada, escurecidos pelos dissabores que até ali vivera.

A cabeça baixa, o olhar levantado, enxergando por detrás de um muro de desconfiança, procurava um canto para sentar-se. Seu andar era cambaleante, incerto, o álcool começara a fazer efeito. Seu resfolegar descompassado, cansativo, auspicioso, como se não encontrasse oxigênio, dava ao ambiente a melodia perfeita, como num tango onde, no ato seguinte, o roçar sensual das pernas marca a tragédia final. E então, o sangue rouba toda a sinfonia.

- Nö!

Gritou-lhe um dos garçons, vestido em sua roupa escura e ensebada, ao vê-lo aproximar-se da única mesa desocupada do salão. Os olhos pertinazes, enlanguescidos, febris, ergueram-se sem que ele levantasse o rosto, para a figura esquálida a sua frente, com um avental sujo e amarrotado. Levemente trêmulo não por nervosismo, mas pela grande quantidade de bebida que havia ingerido, tateou o casaco atrás dos cigarros. Achando-os, amassou o frágil embrulho de papel entre os dedos, como se despedaçasse uma flor, a fim de sacar um e levando-o aos lábios finos e levemente ressequidos, puxou, com os dentes, um dos fumos de palha, de coloração marrom.

- Por que não?

Sua voz era baixa, como um sussurro, morrendo-lhe no caminho, ao indagar enquanto cumpria a ação, para seu interlocutor que, de cenho franzido, fitando-o com aspereza, respondeu-lhe bruscamente, à maneira dos germânicos:

- Esta mesa é proibida! – olhou o desconhecido dos pés à cabeça – Todos sabem disso!

- Eu não sabia!

Tornou o rapaz, pegando do candelabro de três braços, pousado morbidamente sobre a suposta mesa. Ergueu-o na altura do rosto, para acender seu cigarro. A luz vacilante da vela iluminou, parcialmente, sua face, mas como mantinha a cabeça baixa, a figura fantasmagórica realçada pela palidez da pele, fez o garçom arrepiar-se. Assemelhava-se a um branco espectro, como um moribundo que, à luz do fogo fátuo, dentre os sepulcros a cabeça ergue.

- Você, certamente, não é daqui! – completou o alemão – Não se atreveria se aproximar desta área!

O jovem devolveu o candelabro ao seu antigo lugar e retirou da boca o cigarro, soltando uma forte baforada que encobriu sua face numa densa treva.

- Por que não me atreveria?

Tornou a perguntar, no mesmo tom jocoso, vendo o temeroso homem, que o observava surpreendido, entre este mundo e o da insanidade.

- Esta mesa tem dono! Ninguém, exceto ele, pode acomodar-se aqui! – explicou o garçom.

- E onde ele está? – retrucou o rapaz, após dá uma forte tragada calma e demorada, no cigarro.

- Você o verá quando...

- É ela!!!

Uma voz reverberou, chamando a atenção dos dois homens. O garçom, persignando-se, afastou-se da mesa rapidamente, voltando aos seus afazeres. O rapaz o olhou desconfiado, abandonando o cigarro nos lábios. Voltou-se na direção do pequeno palco, redondo, onde, circundando-o, candelabros apagados jaziam, exibindo ceras derretidas, certamente da noite anterior. Mas não foi esta imagem decadente que atraiu sua atenção, assim como a de todos os presentes. Apertou os olhos a fim de enxergar melhor. Ousou, imperceptivelmente, levantar um pouco o rosto e um torpor, sem qualquer aviso prévio, ergueu bem alto o seu espírito.

- É ela...- outra voz exclamou, no auge deletério do transe -..La mademoiselle triste coeur!

Pálida, sob a luz da lâmpada sombria, sobre um leito de flores vermelhas, emurchecidas reclinada como a lua macilenta pela noite embalsamada, entre espirais de vapor espectral ela jazia. Formas nuas, brancas, tenras, impecavelmente perfeitas, resvalando no frio soalho de madeira úmida, pétalas de rosas a lhe servirem de vestimenta.

As pernas, numa divisão enlouquecedora de carnes, assemelhava-se à textura de uma estátua, levemente flexionadas, os pés de todo apoiados no chão, encolhendo os dedos finos e longos como se sentisse dor. Os joelhos, esbatendo-se um contra o outro, desalinhados, de modo que o direito quase sobrepujava o esquerdo, deixava que as coxas, onde uma finíssima penugem reverberava, mantivesse uma distância milimetricamente perigosa, crepuscular, misteriosa, impura, uma da outra, em cuja cavidade serena, radiante, acariciando-o – o que era aquilo que o estava excitando quase até as lágrimas, de forma terna e avassaladora, comportando-se como o mais pérfido dos demônios que assumem uma forma doce para atrair sua presa às profundezas tenebrosas da perdição, estivessem ligeiramente espargidas de rosas mortas...A Morte envolvendo a vida...Que ironia, ele pensou!

As curvas, onde seus olhos agora derreavam, perdiam-se, saiam da estrada, estavam distendidas e todo seu espírito ressoava agora a cada corda tensa que emergia daquela funesta aparição. Os seios, do tamanho exato capaz de iluminar o escuro com a capacidade entontecedora de uma vela no final, bruxuleante, inimaginável, ele os sentiu dentro de suas mãos, onde se perderiam. As pequenas e rosadas auréolas, túrgidas – pelo frio? Pelo êxtase? – alcançariam o céu...o céu de sua boca! As pétalas, enegrecidas, recobriam de assombrada languidez os ressonantes pomos de seu olhar humano. E uma rosa de cor vermelha estava pousada na altura do umbigo, sozinha, abandonada, como se aquela criatura fosse preguiçosa demais para afastá-la.

- La Mademoiselle triste coeur...- seus lábios murmuraram contra sua vontade -...A virgem negra...

Ousou descer o olhar pela concavidade do pescoço, de rotação tão lenta quanto a da terra. Era cálido, pegajoso e a cabeça, de onde um tapete negro espalhava-se pelo palco, pendendo em ondas finas e pesadas – como suas pernas! – assemelhando-se a um mar ondulante onde estava imerso, impotente demais para pensar em livrar-se, estava jogada para trás. Se tivesse conseguido burlar o feitiço, ao qual tão abandonadamente se entregava, teria visto que todos os humanos machos, naquele momento, tiveram suas vidas suprimidas, estavam mortos para o mundo.

...v...

De um lugar sombrio, um homem alto envolvido num casaco preto que lhe descia até os joelhos, relanceou uma curta vista d'olhos à temida mesa. Em seu rosto pálido, onde olhos de um ouro âmbar se desenhavam, um sorriso de satisfação aflorou aos lábios contraídos. Os cabelos dourados, fulvos, pareciam negros à luz do candelabro atrás de si.

- Está atrasado, meu irmão!

Comentou consigo mesmo, voltando seu olhar para a direção oposta.

...v...

Ela deixou a cabeça pender, entontecida, os olhos se apagando num enlevo ardente, as pálpebras tremeluzindo, os lábios finos - onde gotículas de suor se agrupavam deixando-os úmidos, avermelhados, carnudos – entreabriam-se no revoar de um sorriso que não chegou a se completar. Podia-se ver o suspiro quente roçando entre eles, desfazendo-se na escuridão. O jovem perturbou-se...havia algo estranho!

A mulher, cujos braços abertos volteavam lúgubres, pareciam inquietos. Em suas extremidades, as mãos abriam-se e fechavam-se rígidas, no calor da excitação. O rapaz sentia a própria cabeça dar voltas, acompanhando a dela, louca, insana, jogando-a para trás, cravando os dentes nos lábios, afrouxando-os...Olhos, flores, seios e coxas distanciando-se...morte, êxtase - um cálice de vinho encontrou o chão, molhando-o com o resto de seu conteúdo – as mãos contraiam-se, o busto arfava, ele ofegava no auge do desespero que precede as portas do paraíso – a pequena morte – os pés delicados engendrando-se, vinho, sangue, insensatez, sombras, velas, flores, alívio...

Ela arqueou o corpo, afastando as costas do chão, formando uma curvatura perfeita. Os braços enfraquecidos, cansados do esforço, as pernas trêmulas, o peito voltando ao estado normal, os dedos apertando-se – pareciam apertá-lo sem dó nem piedade naquele estranho ninho de gozo – deslizando pelo soalho. A cabeça, cujo topo equilibrava-a no chão, estava vacilante, os orbes semi abertos, translúcidos, morrendo...os lábios solfejaram um rouco gemido, tudo havia entrado num silêncio circunspeto, como aquele que precede a um assassinato.

- Ela não está sozinha! – sussurrou alguém perdido na escuridão.

E de repente tudo se apagou. Algumas cortesãs deixaram escapar um grito de susto logo aliviado e como num ato aterrorizante, os acordes chorosos de um violino soaram em todo salão. Era como se aquele velho prostíbulo houvesse adquirido voz própria, mas uma voz lancinante, devastadora e amargurada.

Os candelabros que circundavam o palco principiaram a acender, sozinhos, um após o outro, misteriosamente. Não havia velas. E a fraca iluminação oferecida desenhava, a meia luz, o espectro de uma mulher no centro do cenário. Era a mesma mulher, ele bem reconhecera, que estivera a espargir-se em gozos segundos antes. Estava de pé, a cabeça virada para o lado, rente com o ombro esquerdo.

A mão direita pousada na cintura, agora coberta por um vestido vermelho que a ele assemelhou-se a uma larga mancha de sangue, envolvendo-a por inteiro. O braço esquerdo, cuja perna estava flexionada, fazendo com que a abertura do vestido, que ia até a virilha, deixasse-a desnuda exibindo a meia rendada de negro que lhe subia como teias de pesar. A perna direita, esticada, dava a entender que ela principiaria a correr a qualquer momento.

- Vou lhes contar uma história...

Uma voz grave e grossa, como uma loucura sonâmbula, preencheu o salão. O violino distendeu uma nota aguda, tremente, fugaz, parecia chorar. Na penumbra que envolvia o palco podia-se ver que alguém movia-se sôfrego, arrastado, marcando com as passadas fortes o repique retumbante e trágico das notas arbitrárias.

- ...Passada nos bordéis de Turingia...

Continuou a voz e seu passo, cada vez mais forte, cada vez mais próximo, acompanhava, ritmicamente, o fragor rangente do bandoneon que arrebatara o triste réquiem.

- ...A história de uma prostituta...

A essas palavras do desconhecido, o último candelabro, posicionado no meio, à frente do palco, acendeu-se de súbito, iluminando as reentrâncias que haviam permanecido nas sombras. A estranha mulher permanecia na mesma posição, as feições impassíveis:

- ...E de um Deus...- a figura vestida de negro veio à luz, mas seu rosto era obscurecido pelo chapéu -...Que se apaixonou por ela!

Ele tomou a posição, afastando as pernas, as mãos decaídas, enquanto ela, vagarosamente, erguia o rosto na direção dele, flexionando mais a perna esquerda à medida que ia abaixando-se, com a direita sempre esticada, como se roçasse, com seus pés apertados em botinas de salto alto, as pernas masculinas. Sua cabeça derreou-se na ação quando ela, insinuante, fez o caminho de volta, subindo até quedar-se ereta, no momento exato que um acorde violento arrebatou a cena e eles deram início ao ato.

- Primeiro, há o desejo...

FLOR DE NOCHE

FLOR DA NOITE

QUE AL SORDO FRAGOR DEL CHAMPÁN DESCORCHADO TRIUNFÁS

QUE AO SURDO FRAGOR DO CHAMPAGNE DESARROLAHDO TRIUNFAS

REINA LOCA

REINA LOUCA

QUE UN JUEGO DE AMOR LENTAMENTE

QUE UM JOGO DE AMOR LENTAMENTE

BAILANDO TRENZÁS

DANÇANDO TRANÇAS

Tango, violino, um bandoneon que geme, no ritmo de um amor desesperado. Suas mãos estreitaram-se com ferocidade, as palmas produzindo um surdo estampido ao se encontrarem e ela, revirando-se para fora da linha do corpo de seu parceiro, fez sua perna enlaçar a dele, por dentro, languidamente, num gesto rápido conquanto eterno, enquanto a mão que estava livre subia pela nuca masculina de maneira convidativa.

- Depois vem a paixão...- ele narrava, em um tom que fomentava o desenlace que estava por vir.

Um bordel que fecha suas portas, aqueles quartos cheios de segredos e pecados. Ela ergueu a perna sensualmente pousando-a na coxa dele, de modo que não o enlaçava pela cintura, uma vez que seu corpo mantinha-se na frente, quase de costas para o desconhecido. E ao som do acorde funesto, e à luz da vela de sinistro alvor, no palco um sepulcral mistério era realizado de infeliz paixão.

- O amor...- continuava ele - ...O prazer...

E flexionando a perna em cuja coxa a dela estava pousada, como um gancho, ele esticou a outra de modo que ela, fazendo o mesmo à perna cujo pé a equilibrava, deixando-a incontestavelmente perpendicular à dele, abrisse-se numa perfeita simetria retilínea, jogando a cabeça para trás. E todo salão pranteou, vibrou, o som oco dos passos unindo-se ao repique misterioso do bandoneon e o clamor sensual do violino. Ela envolveu o parceiro num olhar de langor.

- Estão encenando...- sussurrou o jovem, preso daquela magia como em seu próprio destino.

A moça, roçando o pé pelo chão, preguiçosamente, trouxe a perna, que permanecera como uma corda tensa, para junto de si, transformando a linha numa parábola, tendo como único apoio a coxa flexionada do estranho em cuja superfície sua outra perna estava pousada. E Erguendo-a alto, deixando a panturrilha envolvida pela fina meia roçar no ombro masculino, baixou-a sobre a outra, sobrepujando-a, numa cruzada de coxas irresistível, sentando-se completamente sobre a perna firme que lhe servia de assento, cujo dono escondia o rosto. Mas dessa vez, seus olhos voaram para longe.

- Então chega a desconfiança...

TU COMPÁS ES EL RITMO SENSUAL

TEU COMPASSO É O RITMO SENSUAL

QUE EN LA ALFROMBRA RETUERCE EL GOTÁN

QUE NO TAPETE RETORCE O PRAZER

Y TU PINTA ELEGANTE Y TEATRAL

E TUA PRESENÇA ELEGANTE E TEATRAL

SE MUESTRA ORGULLOSA JUNTO A TU BACÁN

SE MOSTRA ORGULHOSA JUNTO AO TEU AMANTE

E num gesto brusco, inesperado, um segundo homem, alto e de cabeça descoberta, exibindo sua cabeleira dourada, puxou-a para si, fazendo-a rodopiar e decair, uma perna flexionada, a outra esticada, as mãos apertando a cintura do homem a quem escolhera. O outro, injuriado, encolheu-se, imiscuindo-se numa vaporosa onda de rancor, caminhando pelo palco, o violino soando, dramaticamente, exibindo à platéia, petrificada, o torpor final.

- A traição...- continuou o estranho do rosto coberto. – A ingratidão...

O homem de cabelos dourados conduzia a jovem pelo palco, preenchendo-o com o amor que brotava entre eles. Ela o abraçara pela cintura, com a perna a envolver-lhe sexualmente, sendo arrastada até o fundo o tablado onde, num movimento rápido, ele a fez virar-se de costas para seu corpo, tendo sua perna enlaçada pela dela, num gancho convidativo. A tensão tornava-se palpável.

- No amor pela melhor oferta na há confiança...- narrava o outro homem, solitário em sua dor -...Onde não há confiança não há amor!

O jovem sentiu a garganta apertar, num nó que parecia sufocá-lo. Quando olhou para aquela revoada de passos, que repicavam com as batidas de seu coração, unindo-se àquela estranha sinfonia, sentiu medo e uma sensação exorbitante de sadismo.

- O desespero...- continuava o estranho homem (estaria olhando para ele ou era apenas impressão?) – ...Sim, o desespero...

"Ele está olhando para mim!" – pensou o rapaz.

SOS REINA DEL TANGO PAPUSA RUFLERA

ÉS RAINHA DO TANGO BONECA VADIA

LA CIENCIA CANERA DE SABER BAILAR

A CIÊNCIA NATA DE SABER DANÇAR

PRENDIÓ UN DIADEMA DE RANTE NOBLEZA

PRENDEU UM DIADEMA DE RARA NOBREZA

SOBRE TU CABEZA REINA DEL GONTÁN

SOBRE TUA CABEZA RAINHA DO PRAZER

Ela envolvera o parceiro atual com a aura sinistra envolta dela (ou teria sido a ele?), enquanto o homem de cabelos de ouro, girando-a, trazendo-a para si encostando na dela sua testa, dois corpos unidos num só, um corpo com quatro pernas que se movimentavam rápidas, lânguidas, trançando um jogo destrutivo, envolvendo a todos no desespero daquela paixão malfadada, apoiou-a pelas costas, fazendo-a derrear-se para trás, enquanto a mão masculina ( qual delas? ) percorria seu torso à nota mais dilacerante expelida pelo bandoneon, no langor frenético do tango.

- Cuidado com o ciúme...- continuou o homem imerso em sombras, aproximando-se do casal.

O rapaz, instintivamente, relanceou os olhos ao seu redor, sentindo alguém lhe espaldar pelas costas. Em sua face, gotículas de transpiração eram visíveis.

- É um monstro de olhos verdes que desdenha da carne que devora! O ciúme...

"Por que olha para mim?"

- O ciúme o levará à loucura!

O jovem, petrificado no meio do salão, o viu puxando a funesta mulher para si, afastando-a de seu rival. Com um movimento rápido, erguendo-a no ar para deixá-la cair, uma perna flexionada, a outra esticada (como estava cada fibra de seu ser) até o chão, a mão pousada no quadril, a cabeça virando-se na direção contrária do corpo a sua frente que a matinha presa fitando o vazio. Voltou a subir languidamente até encontrá-lo no torpor frenético das batidas fatídicas do bandoneon. Naquele compasso alucinado, o rapaz sentiu um horror, como um capricho do destino, tomando conta de seu ser. Seria presságio?

- O ciúme...

TIEMBLA EM TUS CADERAS LA MUSICA REA

QUEBRA EM TUAS CADEIRAS A MÚSICA TRÁGICA

EN LA MELOPEA QUE A TUA CORAZÓN

NA MELODIA QUE AO TEU CORAÇÃO

MUY A LA SORDINA LE HACE UN CONTRACANTO

MUITO VAGAROSAMENTE LHE FAZ UM CONTRA CANTO

QUE AUMENTA EL QUEBRANTO DE TU PERDICIÓN

QUE AUMENTA O QUEBRANTO DE TUA PERDIÇÃO

No palco, o homem de cabeça descoberta fisicamente idêntico ao que se mantinha nas sombras das próprias vestes, acompanhava o duelo desesperado, o arranque brutal do marido traído, que fustigava a amada, rodopiando-a, esbatendo-se, preenchendo todo palco. O violino aumentou sua lamúria, o bandoneon tornou-se grave, retumbante...

E eram pernas, flores, ciúme, braços, olhos e boca...morte, desespero, vermelho, vinho e pedaços de vidro...negro, torpor – seu pobre coração sendo repisado por aqueles passos fugazes. E ela girava, o homem sombrio a guiava, o terceiro desesperava-se (ou seria ele próprio?), impotente...rosas, vermelhas...vinho, vermelho...paixão, traição, ciúme...vermelho...a faca, o sangue...vermelho...o corpo tombara ao chão num golpe certeiro, pálido, manchado de sangue...vermelho...seria uma ilusão?

Ali, diante de seus olhos, ele vira um crime passional. O punhal na mão do injuriado homem reverberava de líquido viscoso e o rapaz – lágrimas a escorrerem-lhe pela face pálida – olhou para as próprias mãos enluvadas, sentindo como se houvesse sido ele a empunhar a adaga, pôde sentir o sangue grudar-lhe entre os dedos. Apertou os olhos, voltando a abri-los alucinadamente...Era só uma ilusão...era...

EL GOTÁN SE TE FUE AL CORAZÓN

O PRAZER TE FOI AO CORAÇÃO

COMO UN DULCE CHAMUYO DE AMOR

COMO UMA DOCE ILUSÃO DE AMOR

Y ES POR ESO QUE EN ESTA CANCIÓN

E É POR ISSO QUE NESTA CANÇÃO

ENCONTRARÁS ALEGRIA Y DOLOR

ENCONTRARÁS ALEGRIA E DOR

No palco, o homem de cabelos dourados afastara-se, pesaroso, e todo o recinto encheu-se de langor. A jovem recém-assassinada ergueu-se vacilante, mas todos entenderam que se tratava de seu espírito. Tocava-se a fim de reconhecer-se. Levantou-se, mirando tudo a sua volta, como se tivesse dificuldade em enxergar. E aquela mesma figura sombria postou-se às suas costas, suas feições cobertas de trevas.

E então ela o sentiu, arfante, aproximar-se, envolvendo-lhe o corpo pelas costas, arrancar-lhe as vestes com violência, freneticamente, uma por uma e depois, impedindo-lhe a visão com a palma de sua mão, fê-la desmaiar, como hipnotizada, erguendo em seus braços ao alto um corpo pálido e desnudo cheirando a vinho e a rosas mortas. E os olhos do desconhecido (seriam humanos?) fitaram ao jovem (ou seria sua consciência a percorrer-lhe o pensamento?) e sua voz sombria, aterrorizante, revolveu-se em seu espírito.

- Ela é minha!

Por um momento não soube dizer se havia sido aquela sombra ou ele próprio quem pronunciara a sentença. E tudo foi tomado pela mais completa escuridão.

CHE, MILONGA, SEGUÍ EL JARADÓN

SIM, VADIA, SIGA A FESTA

META BAILE CON CORTE Y CHAMPÁN

BAILES COM CHARME E CHAMPAGNE

QUE UNA NOCHE TENDRÁS QUE BAILAR

QUE UMA NOITE TERÁS QUE DANÇAR

EL TANGO GROTESCO DEL JUICIO FINAL

O TANGO GROTESCO DO JUIZO FINAL

o.O.o Continuus o.O.o