HISTÓRIA NÃO ALHEIA

PRÉFACIO

Sábado, abril, interior do Mundo.

Pela janela, mesmo a luz que é um sinônimo de beleza e claridade era estranha, sombria. A temperatura do cômodo era boa, mas o clima do ambiente era deprimente.

Pode-se dizer que estava acampada dentro de sua própria casa. A mudança era recente, suas coisas ainda não estavam nem perto de estar no lugar, e se sentia hóspede em um lar em que não morava mais ninguém.

Se estes fossem seus únicos motivos para tristeza, ela seria capaz de manter sua mente positiva, afinal, acabara de ser promovida. Com menos de 30 anos assumira a responsabilidade por uma filial da empresa com uma abrangência de 10 cidades. No interior, mas um bom passo para alguém bastante novo.

Tinha um filho, fruto de um relacionamento muito curto com alguém com quem nem tentava manter conversas longas. Não foi uma surpresa prá ninguém que ela não fizesse nenhum esforço para que o namoro fosse além da notícia da gravidez.

A sua gravidez, aliás, foi um divisor de águas. Fez com que o trabalho que tinha um papel secundário na sua vida ganhasse um novo sentido e preenchia o vazio dos seus dias e muitas vezes também, noites.

Quatro anos após oferecer todo o seu empenho para a empresa, ganhou esta oportunidade que a levou a uma cidade distante, longe da família e dos escassos amigos. E também a este fim de semana, primeiro em que passou sozinha, arrumando a mobília, preparando a casa para a chegada do filho que estava com os avós.

À noite, a solidão era maior. Havia adquirido o hábito de rezar e pedir a Deus que lhe permitisse sonhar com um sono acompanhado de sussurros de bom dia, boa noite e palavras de carinho em seu ouvido. Mas de dia, quando questionada sobre seu estado civil, já era bastante crível quando se dizia uma mãe solteira convicta, sorrindo e afastando qualquer especulação sobre uma possível mudança de situação.

Não tinha nem idéia do que os outros pensavam da sua condição. Com certeza não era uma pessoa clichê, longe disso. Tampouco era alguém feliz, mas era muito boa em esconder isso.

Era muito boa em esconder várias coisas, sua tristeza, condição financeira e um quadro grave de depressão não diagnosticado. Já uma grande tendência a exagerar não passava despercebida pelos mais próximos.

Mas o que a impedia de ser feliz?

Ela tentou culpar sua criação, azar, todo e qualquer um que tenha cruzado seu caminho pela suas noites mal dormidas e dias insossos, mas a verdade apesar de doída não era outra: não existe fórmula para ser feliz, e com as frustrações desistiu de tentar.

Certa vez, racionalizou o problema e decidiu que estava condicionando sua alegria a condições que não poderia controlar e que deveria convencer seu cérebro a aceitar a vida como lhe foi dada, que a solidão que sentia, na verdade era plenamente aceitável.

Mas só de pensar nisso seu corpo reclamava. Sentia uma dor lancinante no peito e caía em depressão novamente.

Um amigo próximo lhe sugeriu voltar a ter uma vida social, "entrar no mercado" de novo, ele brincou, mas ela não tinha auto-estima suficiente para concorrer com as "perfeitas" da noite ou fé suficiente para crer que alguém se interessaria por mais que sua aparência, um reflexo de sua própria superficialidade.

Ela sabia que não se encaixava no perfil de mocinha que será salva pelo cavaleiro em seu corcel branco, nunca se encaixou. Na verdade estava mais para alguém que fez suas escolhas e não soube lidar com elas.

E quem escolhe viver assim? Quando foi que tinha se decidido a ser tão independente ao ponto de ser solitária? Tão dissimulada que acabaria acreditando em suas próprias mentiras? Tão iludida que se viu tentando fazer o seu cérebro e coração acreditar que a solidão era uma opção viável?

Mas a esperança era uma opção muito mais dolorosa. Já tinha se deixado levar pelo otimismo mais de uma vez e quebrado a cara, coloquialmente falando.

Sentia aquele mal estar ao pensar em nunca desfrutar das alegrias de um amor correspondido, se é que isso existia, na mesma medida que pré-sofria da possibilidade de não ser correspondida se viesse a amar, se é que pré-sofrimento existia.

Então chegou um momento em que o ato de fantasiar começou a atrapalhar as últimas atividades que preenchiam sua vida.

Não é de se admirar que uma mãe solteira que vive para seu filho e para trabalhar tenha uma válvula de escape. Por sorte não se tratava de nenhum psicotrópico, mas era capaz de passar até doze horas na frente de um livro ou computador lendo qualquer tipo de romance que encontrasse.

Sua atenção ao filho era reduzida e o trabalho também era prejudicado. Como estava carente de histórias próprias se satisfazia das histórias alheias que encontrava. Era mesmo um vício e já durava mais de um ano.

Ela gostava porque assim, tinha pelo que suspirar e desejar, apesar de saber quão distante aquilo era da sua realidade. Gostava de colecionar passagens, frases e interações para dar um cenário às suas fantasias. E depois de quatro anos sem compartilhar momentos de intimidade com praticamente ninguém, ela tinha muitas.

Não se recordava mais de nenhum momento bom que tivesse tido no passado. Suas memórias foram apagadas juntamente com qualquer vontade de reviver um relacionamento antigo.

Sonhava com inícios de namoro, desencontros e reencontros, pedidos de casamento e noites de amor da ficção. Refazia as cenas em sua cabeça imaginando ser a mocinha das histórias, que recebia beijos doces e quentes, toques ousados, que ouvia as frases que nunca escutou, e que era parte de momentos que nunca compartilhou.

Deu-se conta que nunca ouviu um "eu te amo" que contasse, nunca foi pedida em casamento, que nunca sentiu aquele "uau" depois do sexo.

A constatação disso era ainda mais avassaladora que a manutenção da solidão. Era perceber que também não existia um passado que pudesse revisitar e sentir-se amada.

Se antes, mais nova e com certeza bastante mais desejável não encontrara sua cara metade, agora já mais madura e marcada pela gravidez, era um feito bastante difícil. E não estava disposta a abrir mão de certas condições, afinal tinha um filho e carreira a zelar, não poderia se envolver sem conseqüências.

Neste sábado então, cansada de ler as memórias ou fantasias de outrem, resolveu colocar sua própria imaginação para funcionar afinal, se fora ela quem criou, lhe pertencia, certo?