Versailles não me pertence. As histórias são apenas divertimento.
A fonte sobre o pretendente de Liselotte é o site Party Like, de Aurora von Goeth. Os fatos foram adaptados livremente.
I.
-Madame, eu tenho que lhe agradecer.
Liselotte não entendeu. Saíam juntos da alcova onde o Chevalier de Lorraine ressonava, exausto. Vomitara até a alma por causa de um vinho de qualidade suspeita que tomara abundantemente na farra da noite anterior. Viera mareado de Paris a Saint-Cloud onde desabara e ganhara o leito, gemendo como que ferido de morte. Fizera grande alarde, proclamando-se envenenado por algum de seus inimigos. O Chevalier de Lorraine, sem ter nenhum inimigo declarado, contava com meia dúzia de desafetos aos quais ele atribuía os mais estranhos defeitos, da inveja à calvície. Sem querer admitir os exageros etílicos, alugara os ouvidos da Duquesa, reclamando inclusive de Philippe, que havia desertado ao vê-lo doente. Pacientemente ela ouvira, deixara-o vomitar e falar até se sentir aliviado. Mandara acordar os criados, e, num instante a roupa de cama do Chevalier havia sido trocada, ele havia tomado um banho morno e ingerido uma infusão de louro e losna. Finalmente ele adormecera e dera paz aos demais. Agora, pela manhã, ele havia tomado um prato do mingau das crianças e voltara a dormir. Por isso, agora Philippe se sentia em dívida com Madame.
-Agradecer o quê?
Philippe estava sensibilizado. Madame era pródiga em fazer o bem sem alarde. Ele tinha pavor de gente passando mal, especialmente vomitando ou vazando de alguma forma. O Chevalier raramente ficava doente, mas quando tal acontecia, dava muito trabalho. Ficava lamuriento, cheio de mazelas secundárias que ele atribuía à mazela principal. Não gostava de remédios amargos, mas achava os doces enjoativos, em resumo, ficava insuportável, manhoso e exigente. Sabendo disso, Philippe estivera prestes a chamar o médico, mas no desespero, recorrera à esposa contando com a sua proverbial generosidade. Era desprendida o suficiente para perder a noite cuidando do amante do marido sem resmungar ou esperar reconhecimento.
-Foi inestimável nos cuidados ao Chevalier. Se não fosse você, minha cara Elisabeth, acho que ele poderia até ter morrido. Ele já não é mais criança, o tempo começa a nos cobrar.
Liselotte sorriu, sempre gentil. Deu-lhe um tapinha amigável no braço, um gesto muito dela que o fez recordar o passado.
-Que exagero. Não foi nada de mais.
Philippe havia se congelado em um sorriso amargo. Naquele momento sentia-se mal. Mas ela sempre conseguia que ele se sentisse melhor. Ela o conhecia bem, percebeu a nuvem que lhe toldava o rosto,
-O que houve?
Ele balançou a cabeça como se tentasse espantar um pensamento desagradável que o importunava como fazem certas moscas inconvenientes.
-Eu preciso lhe contar uma coisa... E me desculpar ...
Ela não estava entendendo do que se tratava, mas se havia um certeza era que Monsieur não era de falar tolices
-Claro. Algum problema?
Ele pegou-a delicadamente pelo cotovelo e conduziu-a a um canapé de veludo azul, perto da janela. Fazia uma linda manhã em Saint-Cloud. Sentaram-se os dois. O aposento era a sala privativa do Chevalier. Ricamente decorado em tons de azul turquesa, móveis dourados, com ricos estofados, vasos e floreiras de porcelana chinesa, e, a um canto, uma grande harpa dourada artisticamente colocada. Philippe respirou fundo e começou.
-Há quanto tempo estamos casados, Elisabeth?
Liselotte respondeu prontamente.
-Em novembro faremos doze anos.
Philippe estava muito sério.
-Lembra-se da primeira vez em que nos vimos?
Ela se lembrava. Ele apeara do cavalo e a surpreendera agachada perto da ponte, urinando na beira da estrada circundada pelas damas do séquito palatino. Sorriu.
-Claro que sim. Você me pegou urinando no mato. Foi muito divertido.
Philippe continuava sério, quase solene.
-Eu tentei ser educado e razoavelmente agradável.
Ela lembrava muito bem da cara esquisita que ele fizera ao encontrá-la. Mas resolveu deixar para lá.
-Foi muito correto. Eu ainda me recordo que você usava um lindo traje cinza.
Philippe suspirou. Ele também lembrava daquela roupa. Cinza com bordados prateados, muito alinhada. Bons tempos. Ele tinha trinta e um anos. Estava no auge de sua boa forma física. Agora, passados doze anos, suas duas filhas do primeiro casamento tinham contraído matrimônios dinásticos. Marie-Louise havia se casado com o rei Carlos II da Espanha e Anne-Marie desposara Victor Amadeu II de Saboia. O casamento de Marie-Louise o deixava preocupado. Ela era rainha da Espanha, mas o marido... Diziam coisas horríveis do estado físico de seu genro. Ultimamente ele andava muito sentimental. Ele tomou coragem e entrou no assunto:
-Preciso reconhecer que não lhe fiz justiça, Elisabeth. Quando eu a conheci eu a julguei desfavoravelmente, preciso confessar.
Ela deu um sorriso melancólico.
-Eu sei, você fez questão deixar isso bem claro. Lembro-me das coisas terríveis que me disse na cerimônia do leito nupcial. Nunca vi tanta sinceridade despejada de uma só vez...
Philippe parecia mortificado.
-Fui muito grosseiro, foi imperdoável. E fiz algo ainda pior...
Liselotte ficou surpresa. O que seria pior do que aquilo?
-Na estrada, depois que eu a conduzi à carruagem, eu fiz um comentário horrível perto da minha escolta...
Ela ergueu as sobrancelhas.
-Compreenda, eu estava revoltado com Louis. Ele a escolheu sem ao menos me consultar. Eu a julguei pelas aparências e o que vi foi uma moça baixinha, loura, faladeira e muito mal vestida. Então, eu fiz uma tolice... Eu me perguntei em voz alta que como eu poderia ... bem, sabe a que me refiro...
-Ah, isso... Na verdade já haviam me contado que você tinha dito que não sabia como poderia cumprir seus deveres de marido comigo.
Philippe franziu o cenho, não esperava que ela já soubesse daquela indelicadeza.
-Como soube disso?
-Bem, na verdade várias pessoas, em diferentes ocasiões fizeram a fineza de me contar essa história, com pequenas variações. Então, já a assimilei devidamente, não havendo, portanto, necessidade de que você se culpe, Philippe.
Ele estava chocado. Odiava fofoqueiros, especialmente quando era ele o alvo da maledicência.
-Quem lhe contou essa infelicidade?
Liselotte deu de ombros.
-Um monte de gente, já perdi as contas. Vamos deixar isso para lá.
Mas ele estava irritado. Achava a propagação daquele comentário um desrespeito a ele e à esposa.
-Exijo saber.-disse em tom categórico.
Ela olhou-o bem nos olhos, sem demonstrar nenhum pesar ou comoção.
-Bom, já que insiste, vejamos de quem me lembro. Bem, temos a Duquesa de Cassel, minha aia Maria von Schoenburg, a Condessa de Vaubyssart, a Grande Mademoiselle, o Chevalier, a rainha Marie-Thérèse, o velho Conde de Chaunay, minha costureira Adèle...
Monsieur foi ficando pálido. Estava indignado ao ver as proporções que aquele comentário infeliz tomara. Interrompeu-a, temendo que ela citasse mais uma dúzia de pessoas.
-O quê? Como pode a sua costureira saber disso? É um despropósito. Que gente abusada...
Madame parecia bastante serena.
-Por que se irrita? Não quis saber?
Ele perdeu a cerimônia e foi direto ao que interessava.
-Você não se incomoda?
Ela até então não pensara muito no assunto. A corte do cunhado era um mar de maledicência e enredos.
-Agora, não. O que foi dito está dito. Olho sempre para frente. Deveria fazer o mesmo. Não guardo rancor. Sei que nunca fui uma beldade como a sua primeira esposa ou como a Marquesa de Montespan. Mas eu me considero inteligente e capaz. Não dá para ter tudo na vida.
Ele percebeu que ela não o censurava. Talvez porque tivesse se acostumado a esperar pouco ou nada dele. Novamente sentiu vergonha. Pegou novamente a mão dela.
-Preciso que me perdoe, Elisabeth.
-Eu já perdoei. Da primeira vez eu ouvi fiquei um pouco triste, mas depois, parei de me incomodar. Não era minha culpa afinal, e nem tampouco sua. Se o mundo fosse perfeito você envelheceria tranquilo ao lado do Chevalier. Não teria mais duas crianças para lhe trazerem agitação e cuidados.
-Eu amo meus filhos. Todos eles.
-Eu sei.
Ele deu um sorrisinho contrafeito. Resolveu quebrar o clima com uma pergunta inocente.
-E você, Elisabeth? O que achou de mim quando me conheceu.
Ela teve uma expressão estranha. Como se prendesse a respiração. Parecia que ia dizer algo mas que no meio do caminho se arrependera. Ficou calada. Philippe ficou decepcionado. Não viu aquela centelha de entusiasmo que se poderia esperar. Então, em doze anos de casamento, um pensamento pouco lisonjeiro lhe ocorreu. Talvez a Duquesa também não tivesse tido uma boa impressão dele, assim como ele não tivera dela. Em seu íntimo, sentiu que não queria saber. Arrependeu-se de ter feito a pergunta. Ela continuava sem dizer nada. Então ele tomou coragem.
-Pelo seu silêncio eloquente, deduzo que também não ficou favoravelmente impressionada comigo...
Ela deu um sorriso suave.
-Você não sabe de nada.
Diante da resposta audaciosa ele sentiu a curiosidade aumentar. Sempre achara a vida da esposa plana e simples. Agora passara a ter suas dúvidas.
-Como assim?
-Posso ser sincera?
Philippe ficou meio tenso, mas sustentou.
-Por favor...
-Achei você mais enfeitado que uma sala de banquete.
Ele não se zangou. A mulher era bastante espartana no quesito moda e elegância.
-Só isso?
Ela ficou séria, repentinamente.
-Não. Eu pensei comigo mesma: esse príncipe é um grande peralvilho, mas com a graça de Deus, pelo menos não vou me casar com Friedrich Magnus...
Philippe nunca ouvira aquele nome antes.
-Quem é Friedrich Magnus?
Ela ia responder, mas o Chevalier começou a resmungar, no quarto contíguo. Ela se levantou e foi acudi-lo. Philippe ficou ali, sentado sem saber o que pensar.
