Segredos

Parte I

Ainda estava escuro quando acordei, apesar da claridade não ser a melhor indicadora de horário durante o inverno francês. Estava tentando voltar a ter o hábito de dormir antes da meia-noite e acordar depois das quatro, mas parecia que nada além de uma dose de antidepressivos me faria pegar no sono. Naquele dia acabava o prazo que meu médico havia estabelecido para tentar dormir sem remédios, e parecia que eu havia falhado. Detesto depender de uma cartela de comprimidos para fazer algo que deveria fazer normalmente. Chequei o relógio e confirmei o que já sabia: ainda havia uma hora e meia para a hora de me levantar.

Fugir não era uma definição que me agradava para o que eu estava fazendo em Paris, mas a verdade era que não havia nenhuma outra além de desculpas esfarrapadas. Estas incluíam melhorar minhas habilidades no trapézio e fazer terapia (sendo a última mentira contada para Layla). Enfim, estive realmente fazendo ambas, apesar de nunca haver caído de cara na rede tantas vezes ou desejado tanto jogar alguém pela janela do que aquela mocinha de óculos que se diz minha terapeuta. Se a escutasse perguntar como eu me sentia a respeito de mais alguma bobagem... "Você devia se abrir mais", ela repetia. Como se pudesse me abrir com alguém que não dá nem um aperto de mão por achar que vai afetar a saúde mental dela.

Repassei o que teria de fazer naquele dia. Tinha aquela consulta irritante logo cedo, depois passaria no outro médico (esse sim, uma pessoa diplomada, séria e com estetoscópio pendurado no pescoço), almoço e depois hora do treino. Se voltasse para casa cedo talvez começasse alguma pintura, a única idéia que a mocinha me dera que soara quase boa. Havia comprado algumas telas, mas estas permaneciam em branco. Faltava-me um tema para retratar, nada me inspirava a ponto de querer pegar no pincel.

Impaciente, olhei o relógio de novo. Havia se passado só dez minutos. Resolvi levantar-me, nada me faria pegar no sono mesmo. Segui a rotina matinal de sempre que se iniciava em arrumar a cama e lavar o rosto e terminava com tomar um chocolate quente num café na esquina. Não podia dizer que não gostava da França, muito pelo contrário, o lugar me agradava muito. Tratava-se de um bairro longe do centro e de pontos turísticos, muito calmo e povoado por velhinhos em sua maior parte. Havia escolhido o lugar a dedo, já que queria um apartamento o mais retirado possível e ainda assim na cidade, com uma pizzaria que fazia entregas por telefone e um café perto assim como uma loja de conveniência onde comprava apetrechos de higiene pessoal. Era quase como viver numa redoma e ver o mundo exterior através do vidro da televisão.

Nada tenho a declarar sobre aquela manhã, só que ela transcorreu como previsto: tenho que me abrir mais, repensar como me sinto em relação à cor branca e tomar um comprimido tarja preta uma vez a cada dois dias. O diferente do dia veio quando cheguei no restaurante do conservatório de circo.

Ali no canto, numa mesa com uma única cadeira, estava uma menininha cabisbaixa que não devia ter mais de oito anos. Quando entrei, ela foi a primeira pessoa que notei por ter o cabelo loiro da cor mais pura e por estar completamente sozinha. Até onde estava informado, crianças daquela idade estavam em período de aulas escolares, o que fazia aquela pequenina ali? Aproximei-me devagar e dirigi-lhe a palavra com a mesma máscara de príncipe que costumava usar no Kaleido Stage.

– Posso sentar aqui?

Ela levantou o rosto de súbito e me encontrei com os olhos mais gélidos que jamais havia visto, ainda que o tom azul me fosse familiar. Sorri em resposta da expressão de susto.

– Sim – disse com voz fina e doce própria de uma criança pequena – O lugar está vazio...

Puxei uma cadeira e me sentei de frente para ela enquanto mantinha a expressão amigável. Ela comia algum sanduíche vendido no refeitório e o fazia com pouca classe apesar de muita postura.

– Como você se chama? – perguntei. Se havia algo que aprendi no Kaleido Stage era que crianças adoravam quando um adulto simpático as dava atenção.

– Sophie – disse baixinho.

O nome não me atingiu com a intensidade que achei que atingiria, afinal, Sophie era um nome muito comum. Mantive a cara de príncipe e comecei a comer também.

– Que nome bonito – continuei de maneira educada – Sou Yuri.

Ela engoliu uma mordida sem mastigar muito bem e arregalou os olhos. Droga, ela sabia quem eu era.

– Do Kaleido Stage?

Balancei a cabeça afirmativo.

– Que legal! – animou-se – Pode me dar seu autógrafo mais tarde?

– Claro... – tomei um gole de meu suco e esperei um momento – O faz uma menininha aqui sozinha?

– Estou no internato – respondeu tristonha – Meu professor de circo não está mais me dando aula, e eu não queria comer no dormitório.

– Mas você mora nos dormitórios?

Algo soava estranho. Cursos para crianças sim que existiam, mas internato? E a escola normal?

– Moro sim – a voz parecia enfraquecer-se – Não gosto muito, mas mamãe trabalha muito e achou que seria melhor pra mim.

– E você não vai a uma escola normal?

– Tenho uma professora que vem aqui.

Que menina peculiar, pensei, estudando com uma professora particular e morando num internato circense. Devia ser muito solitária.

– E tem alguém para substituir seu professor?

– Não... – terminou o sanduíche – Vou ter que voltar para o quarto e ficar lá...

Nunca gostei de ver crianças tristes, e a cara que ela fez quando terminou a frase era de cortar o coração. Não pensei muito para chegar à próxima sentença.

– Sophie, vou treinar sozinho essa tarde, gostaria de vir comigo?

As feições infantis se iluminaram dando origem a um sorriso meigo.

– Eu posso?

– Se estou convidando é porque pode.

Ela ficou muito mais que alegre com a idéia. Levantou-se num salto e me pegou pela manga do casaco dizendo "Vamos, vamos!".

Fazia muito tempo que não me deparava com aquilo, o sorriso de uma criança. Era algo que Layla e Sora sempre consideraram muito cativante e em que, para falar a verdade, nunca prestei muita atenção. Naquele instante senti algo que havia quase dez anos que não sentia, e devido à falta de familiaridade não pude dar nome ao calor confortável que me aquecia o peito junta à vontade de sorrir que tive.

Prosseguimos juntos para a sala de treino. Ela estava muito animada e me contava sobre sua professora particular e irmã mais velha, e também que suspendera as aulas de trapézio (assustei-me ao ouvir aquilo, afinal, ela era muito jovem para usar o aparelho) por falta de um tutor. Falava devagar e olhando para frente, sempre sorrindo. Tudo naquela menina, inclusive o entusiasmo tímido, me era familiar. Tive muita vontade de perguntar se já nos conhecíamos, mas concluí que não. Se a conhecesse teria me lembrado imediatamente daqueles olhos tão azuis e marcantes.

Abri-lhe a porta do galpão que alojava o trapézio e ela entrou comportada. Julgando por sua idade aparente, altura e expressão surpresa, ela não treinava naquela sala. Ouvi um "Nossa!" escapar-lhe, mas ela limitou-se a sorrir. Ensinei algum alongamento que não costumava praticar eu mesmo enquanto tentava parecer o mais profissional o possível.

– Mr. Yuri – ela proferiu – Pode me mostrar algum truque?

Pensei um pouco. O que poderia impressioná-la? Subi pela escada de cordas e, do alto da plataforma, dei o salto inicial. Balançar era um bom começo, ou pelo menos era o mínimo que podia fazer enquanto a inspiração não vinha.

Inclinei o corpo para pegar mais impulso e, com uma pirueta simples, troquei de barra. De dez metros abaixo veio um som do qual eu já havia me esquecido. Sophie estava aplaudindo.

Na hora não percebi, mas o sorriso dela se refletiu em mim. A fim de me exibir um pouco mais, incrementei as acrobacias o máximo que pude, mudando de trapézio e de ritmo constantemente. A verdade era que nem me lembrava da última vez que aproveitei tanto uma apresentação. Voei como não voava em muito tempo, divertindo-me de verdade.

A pequena ria, batia palmas, prendia a respiração quando um salto mais perigoso era dado e, sem sombra de dúvida, era ótima espectadora. Acho que ficamos naquela exibição boba por uma hora ou duas, só posso dizer que depois desse período de tempo, já muito suado e fisicamente esgotado, me deixei cair de costas na rede apreciando a sensação de queda.

– Foi incrível, Mr. Yuri! – ela correu até mim – Muito, muito, muito, muito legal!

Desci da rede e lhe afaguei a cabeça. Que bonitinha, pensei, muito simpática.

– Obrigado – disse um pouco sem ar – Não fiz nada tão...

– Não diga isso! – interrompeu-me – Foi muito divertido assistir!

Sorri contente.

– Obrigado – repeti – Não sabe o quanto isso significa pra mim...

Tomei alguns goles da garrafa de água que estava na mochila. Sophie sentou-se ao meu lado no banco usando uma expressão um tanto séria.

– Mr. Yuri nunca recebeu elogios assim?

– Bem... – ponderei – Não como você acabou de elogiar, é mais...

– Mas no Kaleido Stage todos te adoravam!

– Não é bem assim.

Mordi a língua como reflexo. Não devia dizer coisas assim para uma criança que nada tinha a ver com meus problemas. Isto era um assunto a ser tratado com a mocinha de óculos autodenominada minha terapeuta.

– Como assim?

– Não acho que devíamos conversar sobre...

– Mas eu quero saber! – insistiu de braços cruzados – Não acredito que alguém não gostasse do Mr. Yuri!

– Fiz coisas terríveis enquanto estava no Kaleido Stage – continuei em voz baixa – Coisas pelas quais ninguém vai me perdoar.

Ela pareceu um pouco surpresa com minhas afirmações. Acho que não cabia na cabeça dela que um artista divertido poderia ser uma pessoa tão egoísta quanto eu. Mesmo assim, ela continuou.

– Mas, Mr. Yuri, eu estava vendo TV outro dia – enrolou o cabelo no dedo – e estava passando uma entrevista com o Mr. Kalos. Ele disse que se você tivesse aceitado trabalhar nas... Nas... Bem, em alguma parte do Kaleido Stage as coisas seriam mais fáceis.

Mais uma vez afaguei-lhe a cabeça. Também havia assistido a essa entrevista sobre o último fracasso de bilheteria. Parecia que Leon Oswald, grande acrobata mundialmente conhecido, Sora, e Layla estavam discutindo muito quanto ao roteiro e o resultado foi catastrófico. Kalos não quis interferir e houve um déficit tremendo no último mês. O que ele disse foi que, se eu tivesse aceitado aquele cargo como produtor, as finanças teriam sido mais bem administradas. Como se eu estivesse bem o suficiente para lidar com dinheiro...

– Isso quer dizer que ele não está bravo com você – ela continuou – não é?

A notícia de meu escândalo da compra e venda do antigo circo de meu pai parecia haver chegado à França e, se uma criança sabia, nem quis imaginar o que pensavam acrobatas profissionais de mim.

– Não – confirmei-lhe – Não está.

– Mas se o Mr. Kalos não está bravo com você, então quem está?

Pensei em falar de Sora, mas sabia que de todas as pessoas do mundo ela era a menos rancorosa. Layla não era uma possibilidade, já que, segundo minhas previsões incertas, ela já teria me perdoado por haver convencido o pai dela a vir à apresentação da Técnica Fantástica.

– O elenco do Kaleido Stage – inventei – Eles devem estar.

– "Devem estar" quer dizer que você não sabe se estão.

– Hei, quantos anos você tem para me dar lição de moral?

Ela riu baixinho.

– Tenho sete!

– Pois eu tenho vinte e três – provoquei-a de brincadeira – Não acha que quem devia dar lições aqui devia ser eu?

– Acho... – ela se levantou indo para a escada – Que quem está bravo com você é você mesmo, Mr. Yuri – piscou com um olho só e sorriu marota enquanto subia até a plataforma – Mas você é o professor, certo?

Levei alguns instantes para absorver o que ela havia dito, mas fui forçado a voltar-lhe a atenção assim que, num piscar de olhos, Sophie começou a balançar no trapézio de nível profissional sem equipamento de proteção algum.

– Desça daí! É perigoso!

Ela não me deu ouvidos, continuando uma execução invejável de swing. Riu de minha preocupação.

– Não vou descer!

– Sophie, não me faça subir!

Ela riu mais, trocou de lado e de novo, brincando sem perceber o perigo ao qual se expunha. Subi na plataforma oposta e peguei o outro trapézio. Preparei-me para pegá-la caso caísse, mas, em vez de perder o equilíbrio ou coisa parecida, ela lançou-se em minha direção.

Pude jurar que se não fosse por meu anjo da guarda segurando meus pés na barra jamais poderia tê-la segurado a tempo. Tinha-a segura pelo antebraço como manda a prática e ela, pendurada e olhando para mim com riso nos olhos claros, voltou a mover-se tentando recuperar o balançar de antes.

– Sophie – repreendi – Já chega, não?

– Quero virar – disse tentando soltar uma mão – Por favor, eu consigo, deixa eu tentar...

Ignorei as possíveis quedas fatais que ela poderia sofrer se errasse o tempo e ajudei-a no plano arriscado.

– Pronta? – ela assentiu – Já!

Impulsionei-a como pude, mas não havia sincronismo suficiente para que pegasse a barra. Não tive tempo sequer de pensar no que fazer. Contra todo o esperado, Sophie deu um mortal no ar e agarrou o trapézio oposto no tempo exato.

Ao sentar-me na barra respirei em fim. Ela realmente havia me dado um susto, e agora balançava rindo de novo. Pelos céus, quem era aquela garota? Sete anos e com aquele nível de trapézio? Não era humanamente possível.

– Te assustei, Mr. Yuri?

– Claro que sim – joguei-me na rede – Podia ter dito que já sabia fazer essas coisas.

– Ah...

Ela também se deixou cair de costas e, devido à seu peso leve, pulou um pouco. Achou graça disso e riu, contagiando-me também.

Havia algo em Sophie que me cativava muito. Talvez fosse o riso livre e despreocupado, talvez a beleza natural ou a simpatia, mas o que percebi mais tarde foi que ela me lembrava muito alguém. Parecia-se demais como uma certa pessoa era há alguns anos, quando nos conhecemos. Que ela havia mudado não era novidade, e que me negava tampouco, mas o que percebi só então foi que eu tinha muita saudade de como ela costumava ser.

Treinamos juntos pelo resto da tarde. Pelas seis horas ela disse precisar ir, então lhe comprei um doce na cantina e desejei-lhe boa noite com uma promessa de repetir a aula no dia seguinte. Fui andando para casa bem devagar. O entardecer parecia ter um brilho diferente, como se tivesse mais vida. À noite esqueci-me completamente da cartela de comprimidos e, por incrível que pareça, peguei no sono antes da meia noite e, no dia seguinte fui acordado pelo despertador.

A semana seguiu divertida. Descobri que gostava daquela menina e que ficar junto dela me fazia rir de verdade, atividade que eu não praticava sempre. Sentia-me mudando rápido e para melhor. De fato, até a mocinha de óculos me estranhou quando a cumprimentei com "bom dia". Disse a ela que achava a cor branca fascinante porque fico bem com ela, e contei-lhe um pouco sobre a menininha da escola. Sob a prancheta escutei algo que soava como "tendências pedófilas" e resolvi não dizer mais nada.

Assim como nos outros dias, Sophie me esperava no galpão dos trapézios. Havia outros alunos presentes e já treinando, então teríamos que revezar a cada duas horas.

– Mas assim não vai dar – ela reclamou – Tenho que voltar antes das seis, e já são duas...

– Então vamos fazer outra coisa – sugeri – Acho que um dos trampolins estava livre quando passei por lá, o que acha?

– Mas Mr. Yuri – hesitou ao deixarmos o galpão – Eu não sou boa no trampolim...

– Então é hora de ficar – ofereci-lhe a mão – Isto é, se você quiser ajuda.

O sorriso alegre voltou enquanto contava-me sobre como era péssima com saltos. Tentei explicar-lhe a mínima teoria que sabia ou que achava que sabia e demonstrei um pouco. Como havia dito antes, as habilidades dela eram absurdas para alguém daquela idade. Podia não ter a facilidade de Marion, mas era perfeccionista quanto à pose e a postura que mantinha a cada instante, algo esperado só de alguém muito mais experiente. Como qualquer criança, ela desanimou-se ao errar um mesmo truque várias vezes.

– Nunca vou conseguir – disse emburrada.

Percebi três bolas no canto do banco, provavelmente esquecidas após o termino de alguma aula. Tentei mantê-las no ar e com ritmo, mas descobri que ainda não havia aprendido malabarismo. Consegui fazê-la rir de meu erro.

– Não acredito que Mr. Yuri não sabe fazer malabaris – riu ao pegar as bolas do chão – É tão fácil...

De fato, ela também sabia fazer aquilo, e não vou dizer melhor que eu por motivo de orgulho.

– Existe algo que você não saiba, Sophie?

– Ler direito – disse concentrada e sem perceber a provocação – Tenho muita dificuldade... Mas Camilie tem muita paciência comigo, então isso não é um probleeeee...

Perdeu o controle sobre as bolinhas e se ajoelhou rápido para pegá-las.

– Camilie? – indaguei – É sua professora?

– Hm-hum – concordou – Vamos tentar aquele salto de novo?

– Claro... Tente pular mais no centro dessa vez, sim?

– Igual a Ms. Layla no início de Cinderela?

– Sim...

Ela errou mais uma vez e, apesar de a queda no colchão haver sido de pouco impacto, fingiu haver se machucado.

– Mr. Yuri... – choramingou – Acho que torci o pé...

– Deixe-me ver...

Girei-lhe o calcanhar no sentido horário e depois no anti-horário.

– Mr. Yuri... – proferiu sem olhar-me nos olhos – Como é a Ms. Layla?

A pergunta me pegou de surpresa. Devia ser natural para ela, uma fã do Kaleido Stage, querer saber sobre Layla. Pensando bem, acabara de mencioná-la como exemplo.

– Ela é uma artista incrível – afirmei – Muito profissional, a melhor com quem trabalhei – não olhei para saber se Sophie ainda me ouvia, mas continuei – É muito talentosa, sem dúvida...

– E ela é legal?

Não queria responder à pergunta, exigiria muito de minha capacidade de medir palavras. Se ela era legal? Dê-me a definição de "legal". Layla era estonteante, não havia outra descrição. Sophie, no entanto, insistiu.

– É sim – limitei-me a dizer – É sim...

– O cabelo dela é natural?

– Até onde sei, sim.

– Ela é muito bonita, Mr. Yuri, não acha?

Pergunta capciosa.

– Por certo, muito bonita.

Um pequeno estalo me disse que o pé da menina já estava bom. Ela, no entanto, permaneceu sentada e cruzou os braços.

– Mr. Yuri, por que você não quer falar sobre a Ms. Layla?

–...Não é que eu não queira, só...

– Ah, me conta! – insistiu em tom de criança mimada – Eu só quero saber mais sobre ela!

Jamais poderei descrever o incrível poder de persuasão que Sophie tinha sobre mim, e naquele instante não pude dizer não. Tomei cuidado ao escolher minhas palavras, mas aparentemente nada que saísse de minha boca referente a Layla seria medido.

– Layla – sentei-me ao lado da pequena e fixei o olhar no nada – é uma ótima pessoa. Ela tem o péssimo hábito de se preocupar mais com o show do que consigo mesma, é irritante às vezes. Nesse ponto ela bem teimosa, quanto mais perigosa a técnica mais ela quer tentar, para não dizer que...

O riso infantil interrompeu-me. Sophie tinha a mão em frente aos lábios para abafar o som, mas pude percebê-lo mesmo assim.

– O que é tão engraçado?

– Nada – sorriu – Mas continue, Mr. Yuri, por favor.

– Minha vez de ser teimoso – imitei-a – Só quero saber o que é engraçado...

– Nada – repetiu – Posso perguntar outra coisa?

– Claro.

– Você beijou mesmo a Ms. Layla em Cinderela?

Nó na garganta. Sim, em Cinderela, em Romeu e Julieta, e em todas as outras peças que me lembrava, e fora das peças também, no meu carro principalmente, quando saíamos para dar uma volta. Sintetizar a complexidade da resposta não me foi possível.

– Não – menti – O truque de luzes que usaram foi muito bom, parecia mesmo que...

Não pude terminar o raciocínio pouco lógico. Sophie estava rindo de novo.

– Poderia me fazer o imenso favor de dizer o que é tão engraçado?

– Mr. Yuri, você mente muito mal...

Minha vez de rir sem-graça. Eu devia ser um sonso mesmo, sonso o suficiente para que uma criança percebesse minhas farsas.

– Tudo bem – admiti – Sim, beijei, e daí?

– Você gosta da Ms. Layla, não gosta?

Segundo nó na garganta. Mentir não adiantava, e falar uma verdade que nem eu sabia, ou não queria reconhecer, era complicado. Decidi-me por um caminho alternativo e, em segunda hipótese, ela tinha só sete anos, não entenderia metade de meu problema nem se eu soubesse explicá-lo.

– Já houve um tempo que sim – respondi vago – Mas aconteceram muitas coisas...

– Que coisas?

Ela tem só sete anos, não faz mal contar...

– Ficamos um tempo sem se ver, e quando nos reencontramos ela estava diferente – resumi mil sentimentos em um amontoado pouco coeso de sílabas – Acho que não deu mais certo a partir daí, todas as vezes que tentávamos ficar juntos algo dava errado. E deu errado tantas vezes que acho que paramos de tentar – sorri triste – Talvez não fosse para dar certo.

A garotinha pareceu surpresa com o que ouviu, talvez não estivesse esperando. Ainda com os braços cruzados, enfezou-se comigo.

– Mas você gosta dela – afirmou – e ela gosta de você, por que não daria certo?

– Lembra quando eu disse que tem gente brava comigo no Kaleido Stage?

– Mas... – estava inconformada – Mr. Yuri, duvido que Ms. Layla esteja brava com você, afinal não foi culpa sua!

– Foi sim, Sophie.

– Não foi!

Levantou-se. Pude ver determinação brilhando nas piscinas claras.

– Mr. Yuri – começou – Você errou como qualquer outra pessoa poderia ter errado, é humano! Já te disse antes que quem tem que te perdoar é você mesmo... E tenho certeza de que Ms. Layla, de todas as pessoas, já te perdoou. Acho que ela sente muito a sua falta... – aproximou-se e pousou uma mão sobre meu joelho dobrado – Porque você também sente falta dela, não é?

Estremeci por dentro com as palavras dela e, antes mesmo que percebesse o que estava fazendo, a abracei com carinho. Ela retribuiu o gesto. Eu estava, de fato, me sentindo culpado, só, e sim, com muita saudade de Layla. Como ela podia entender tudo e me dar aquela sensação de conforto só com aqueles bracinhos curtos ao meu redor? Dei-lhe um beijo na testa como agradecimento.

– Obrigado, Sophie – disse passando a mão nos olhos – Obrigado de verdade.

Ela sorriu doce como sempre, o mesmo sorriso que me dava vontade de imitá-la. Levantei-me do colchão e mirei o relógio. Infelizmente, já era tarde.

– Que tal se eu te levar até o dormitório?

– Tá bom.

Ela me deu a mão enquanto andávamos pelos corredores quase desertos. Na entrada do pequeno quarto, entretanto, havia alguém. Na hora, não me coube encará-la muito, já que quem era encarado era eu, porém mais tarde observei a aparência da jovem.

Devia ter quinze anos no máximo, dada sua estatura e roupas um pouco infantis. O cabelo preto escorrido e o rosto fino contrastavam muito com o corpo esbelto e curvilíneo, mais ainda com os olhos castanhos quase pretos. Nada na jovem parecia ser de um mesmo conjunto, como se ela fosse uma montagem do tipo "recorte e cole". Supus que fosse alguma inspetora para menores, tipos estranhos costumavam ter essa função.

– Sophie – disse com voz fina e soando irritada – Onde esteve? Estava preocupada com você.

– Sinto muito – a pequenina murmurou mirando o assoalho e apertando minha mão.

– Ela estava comigo – interferi – Desculpe, não era minha intenção que ela se atrasasse.

– E o senhor seria...?

– Yuri – estendi a mão – Muito prazer.

– Igualmente, Camilie – apresentou-se – Vejo que ficou amigo de minha irmãzinha.

Um passo atrás de mim, a menina abaixou mais a cabeça. Como era? Irmãs? Não, não podia ser. Ninguém poderia ser mais diferente da aparência angelical de Sophie do que essa Camilie. Em todo caso, sorri de volta.

– Sou tutora dela – continuou – E minha mãe pediu que viesse vê-la antes que fosse para cama... Aliás – voltou-se para a menor – mamãe está querendo que você volte para casa no fim de semana.

– Não quero – choramingou – Quero ficar na escola.

– Que gracinha – sorriu para a irmã – Mamãe vai jantar em casa e quer que nós duas estejamos lá, Sophie. É importante, entende?

– Mas...

Ela pendurou-se na manga de meu casaco e senti pena. Pela amabilidade com que era tratada pela irmã mais velha imaginei como seria um jantar em família.

– Camilie – chamou com voz de choro forçado – Mr. Yuri pode vir também?

Senti um arrepio cruel enquanto a irmã de Sophie me examinava dos pés ao último fio de cabelo com aqueles olhos duros.

– Pode sim – declarou com um sorriso malicioso – Isso pode ser arranjado, se o senhor estiver interessado.

– Ah, sim – emendei – Adoraria conhecer a família de Sophie.

– Pois bem – ela sorriu da mesma maneira assustadora de segundos antes – Esteja pronto sábado. Você pode vir comigo quando eu vier pegar minha irmãzinha. Agora... – agarrou a mão da menor e abriu a porta do quarto – Se nos der licença, vou dar banho nela. Diga boa noite, querida.

A garotinha mirou-me como quem diz "Não deixe que ela me leve" e obedeceu sem muita emoção. Logo ouvi uma chave girando atrás da porta fechada, e nada me restou além de ir embora. A tentação de escutar o que se passaria por detrás daquela parede era grande, mas havia outros internos no corredor que certamente achariam aquilo estranho.

Fiz meu caminho solitário de volta a meu apartamento a pé. Aquela Camilie não devia ser irmã de sangue de Sophie, não com aparências e personalidades tão discrepantes. A pequena parecia até assustada de sua própria irmã, e quando um interno recusa um jantar em família por certo há algo errado.

Cheguei no apartamento alugado e joguei o casaco num canto. Tudo que precisava depois de um dia de treino e sustos com minha mais nova amiguinha era um banho quente acompanhado de alguma comida de microondas para o jantar. Não cessei de pensar se Sophie não estaria sendo maltratada enquanto eu tinha todo o conforto que a solidão de morar sozinho proporcionava. Que tipo de família teria ela para preferir ficar sozinha a com eles? Pelos céus, ela era uma criança e deveria querer ficar com os pais e irmãos, não trancafiada numa escola desprovida de outras crianças para brincar.

Anos mais tarde identificaria que estávamos na mesma situação, Sophie e eu, mas na hora só me preocupei com ela. Ao fim de minha saudável refeição constituída por sopa de saquinho, senti vontade de fazer algo que nem me ocorreria uma semana antes: ligar para Layla.

Sem pensar muito ou calcular o fuso-horário, disquei os números do celular dela. Entre um toque e outro estimei que ela estaria em hora do almoço e pouco disposta a conversar, como sempre, mas não desliguei mesmo assim. Ao fim do terceiro sinal de linha ela atendeu.

– Alô?

– Oi Layla.

Ouvi talheres sendo baixados e um murmúrio de passos. Ela provavelmente estava pedindo licença para sair da mesa.

– Yuri? – a voz parecia mais animada do que eu esperava – É você?

– Sim – respondi – Tudo bem?

– Tudo como sempre – disse tão perdida quanto eu – E você?

– Também.

Houve uma pausa na qual nenhum de nós soube o que dizer. Escutei mais barulhos estranhos do outro lado da linha e tentei continuar.

– Está almoçando?

– Sim. Sora e eu estávamos discutindo a peça nova.

– E como esta indo?

– Bem até agora – mais barulhos – Sora está gostando de trabalhar com Leon agora que estão saindo...

– Sério? – comentei surpreendido – O Leon que conhecemos, frio, calado e egoísta, está saindo com a Sora?

– Pois é – pareceu desanimar – Estão se entendendo muito bem depois da última temporada. Às vezes dá até...

A voz sumiu antes de completar a frase. Senti algo na base do estômago. Será que ela...?

– Dá até o quê?

– Você sabe – disse com frieza – Sabe do que estou falando.

– Sei, e é por isso que resolvi ligar.

– Como?

– Sabe, conheci uma menina semana passada.

– Uma menina?

– Não use esse tom comigo, não é o que você está pensando.

– Certo – duvidou.

– Estou falando sério – continuei – Ela é pequena, uns sete anos.

– Sabia que pedofilia é crime?

– Posso terminar de contar ou não? – não houve resposta e prossegui – Tenho conversado muito com ela, e praticado trapézio também. Ela é muito boa.

– Andou treinando com uma menina de sete anos?

– Se me permitir o comentário, ela é bem mais leve que você.

– Muito engraçado – irritou-se – Diga logo o que quer, Yuri, tenho que voltar logo.

– Na verdade, não quero nada – disse sem lábia – É que essa menina me lembra muito você quando nos conhecemos. Acho que fiquei com saudades.

Fez-se silêncio. Nem eu esperava dizer aquelas verdades tão livremente e sem pudor. Desejei muito poder ver a expressão de Layla.

– Tenho que ir agora – ela disse com a voz fraca.

– Hm... Até mais.

Sem se despedir, desligou. Mirei o receptor um pouco desanimado. Se estivéssemos frente a frente a teria impedido de terminar a conversa ali. Pensei em ligar de novo, mas achei melhor esperar um pouco, afinal, sei como discussões sobre peças circenses são complicadas e extensas. Calculei sem muita precisão quando poderia fazer outra chamada e ajustei meu despertador para o meio da madrugada. Estivera dormindo bem aquela semana, um dia só sem sono não ia me matar.

Preparava-me para dormir quando o telefone tocou. Pelo horário, deveria ser a dona do apartamento perguntando porque não havia depositado o dinheiro do aluguel no dia anterior.

– Por favor, o senhor Yuri Killian está?

A voz era de uma senhora de idade, ou soava ser.

– Sou eu – respondi sem reconhecer minha interlocutora – Quem é?

– Meu nome é Antoniete Baudelaire, M. Yuri – disse num sotaque francês característico – Minha pequena Sophie e o senhor freqüentam a mesma escola.

– Ah, sim. A senhora é mãe dela?

–... Sim – hesitou em continuar – Minha filha Camilie me disse que Sophie gostaria de tê-lo conosco pelo fim de semana.

– Bem, esse foi o pedido dela – tentei não parecer oferecido – Se não houver incômodo por parte da senhora ou...

– Não, não é esse o problema – cortou-me soando ansiosa – Há muito tempo espero para conhecê-lo, M. Yuri. Ficarei feliz em tê-lo em minha casa, mas gostaria que o senhor entendesse minhas preocupações...

– Preocupações?

– Sim... – parecia mais nervosa a cada palavra – Gostaria que o senhor mantivesse seu relacionamento com Sophie em segredo, se possível.

Engoli ar ao escutar aquilo. Devo ter a palavra "pedófilo" escrita em minha testa e não saber.

– Mm. Baudelaire, sinto muito se Camilie lhe deu alguma impressão errônea, mas Sophie e eu somos bons amigos.

– Acredito nisso, M. Yuri. Mas entenda que esse é o problema...

Franzi o cenho. Essa conversa ficava mais estranha a cada instante

– Não compreendo.

– M. Yuri – disse baixo – Sophie é uma criança muito especial. Preocupa-me que ela se exponha a certos riscos, e sinto que ficar perto do senhor é um risco potencial.

Achei haver perdido o fio da meada. O que ela queria dizer com aquilo?

– Continuo sem compreender, quero dizer, não vejo como...

– M. Yuri – interrompeu em tom preocupado – Por favor, não diga nada a Sophie ou a qualquer outra pessoa sobre esta ligação. Conversaremos mais no sábado.

–... Está bem.

Descansei o receptor no gancho. Precisaria daquele remédio tarja preta se quisesse dormir depois daquela. Desajustei o despertador, pois, dada meu estado de confusão, não formaria frases coerentes ao falar com Layla. Engoli o comprimido que se encontrava sobre a mesinha de cabeceira e me cobri até a cabeça.

Será que Sophie está bem?

Este pensamento me atormentou pelo resto da noite, de modo a não me deixar descansar até vê-la na tarde do dia seguinte.

– Boa tarde, Mr. Yuri – sorriu como de costume.

– Boa tarde, Sophie – ajoelhei-me em frente a ela para verificar que não estava escondendo escoriações – Como foi ontem com a sua irmã?

Ela pareceu não saber de quem eu falava por instante.

– Com a Camilie? – viu-me concordar com a cabeça – Ah, como sempre.

Aquela mania de generalizar um assunto para fugir dele lembrou-me de Layla de novo. Insisti.

– E como é sempre?

– Ela me deu banho, ficou me olhando comer, me mandou escovar os dentes e me pôs na cama.

– Vocês não conversaram?

– Ela ficou perguntando de você – disse mirando o chão enquanto passávamos pelos corredores – E quando saiu disse que ia ligar para casa, só isso.

Apesar de isso não explicar metade da ligação estranha da noite anterior, já dizia algo. Na inocência de ser verdadeira Sophie deveria haver dito algo que alarmou a irmã, ou quis acreditar que havia sido assim.

Não toquei no assunto e ela tampouco. Foram-se mais dois dias até que conseguisse ligar para Layla e o resultado não foi dos mais agradáveis. Ela se convencia cada vez mais que Sophie na verdade tinha dezessete anos e era algum flerte usado para fazer-lhe ciúmes.

Sexta-feira à noite me encontrei com Camilie na porta do dormitório de novo. Parecia tão estranha quanto da outra vez, porém foi muito mais simpática a princípio.

– Boa noite, Yuri – sorriu marota – Como tem passado?

– Muito bem, obrigado – menti. Se essa menina soubesse que fora o estopim de minhas noites mal dormidas daquela semana...

– Bem, sobre amanhã... – disse melosa – Vou pegar você e Sophie às cinco. Voltamos domingo à noite para Paris.

– A viagem é muito longa?

– Vamos para perto de Versalhes – respondeu contente – Chegamos para o jantar e domingo estava planejando ir para os Jardins, que tal?

– Parece bom – comentei ao ver Sophie dar o primeiro sinal positivo em relação ao fim de semana – Há outros convidados?

Numa manobra rápida e imprevista, a jovem pendurou-se em meu braço e sussurrou no meu ouvido:

– Não, querido, só você.

Tão rápido quanto havia vindo, ela voltou a estar a três passos de distancia. A menina menor ao meu lado cruzou os braços e olhou o piso desanimada. Imagino que minha expressão fosse de espanto, talvez um pouco de vergonha, mas Camilie sorria triunfante.

– Até amanhã, Yu – despediu-se ao agarrar a mão da irmã e abrir a porta – Não esqueça de levar uma blusa, vai estar bem frio.

Começava a entender porque Sophie não gostava de sua família. Eu acabara de ser cantado por uma adolescente? E a mãe dessa mesma adolescente me considerava um risco em potencial. O mais preocupante da história era que eu, alvo afetivo e problema para crianças, passaria dois dias com aquelas pessoas.

Dormir não era uma opção do que fazer naquela noite, então me ocupei tirando todas as minhas roupas do armário para escolher as que devia levar, depois tive o trabalho de dobrar todas as não selecionadas e as guardar de novo. Tentei deitar-me, mas quando fechava os olhos via Sophie transformando-se em Layla e dizendo que queria distancia de mim.

Sentia-me apreensivo com aquele jantar, e pude ver que a menina também estava quando nos encontramos no dia seguinte. Mal conversamos e, chegando o horário marcado, dirigimo-nos para a entrada. A pequena levava uma mochila pequena e, considerando que estava indo para a própria casa, estranhei que precisasse de algo.

– O que está levando?

– Meu cachorrinho de pelúcia – respondeu baixo – Ele me disse que não queria ficar sozinho, mas não conta para a Camilie, ela vai implicar comigo...

Sorri da doçura dela e assegurei que nada seria dito a respeito. Logo chegou um táxi que nos levaria até a estação de trem. Tive sorte na longa viagem: Camilie lia uma revista feminina com muita atenção (pressionando-se contra mim, mas tentei ignorar o fato), Sophie terminava algum dever de casa e eu, seguindo recomendações de uma certa mocinha de óculos, fazia palavras cruzadas.

Versalhes estava bem frio, era verdade, e ao chegarmos a mais velha nos indicou um carro preto que faria o meu parecer uma carroça.

– Entrem – comandou enquanto sentava-se ao assento do motorista.

– Você tem carteira? – indaguei.

– Tirei esse ano. Olha só.

Mostrou-me orgulhosa o documento e descobri que, por incrível que pareça, que ela era maior de idade.

– Mamãe preparou seu prato favorito, Sophie – comentou – E teremos crepe doce para sobremesa... É do seu gosto, Yu?

– Sim, mas poderia parar de me chamar de Yu?

– Ah, desculpe – disse chorosa – Só queria ser agradável, Yu...

– Ele já disse que não gosta – veio a voz da menina no banco traseiro – Por que não pára de chamá-lo disso?

– Não se meta, irmãzinha.

Começava a considerar minha vinda um erro. O silêncio prevaleceu pelo resto do curto trajeto. Estava esperando alguma casa monumental, mas estacionamos a frente de um edifício bem alto. Ao transpassar as portas automáticas, percebi que o rei da França deveria morar ali tal era o luxo do hall de entrada. O elevador levou-nos até um dos últimos andares e logo descobri que cada andar representava um único apartamento.

A porta da frente foi aberta para revelar uma sala bem decorada para o Natal e um cheiro delicioso de comida recém-preparada. Para nos recepcionar estava uma mulher de certa idade e bem vestida, magra e com cabelo escuro firmemente preso num coque. Ela sorria de maneira tímida e saudou as meninas com carinho.

– M. Yuri – disse simpática – Muito prazer.

Reconheci a voz rouca que escutara pelo telefone. Cumprimentei a mãe de Sophie com cuidado para deixar uma boa impressão.

– Espero que a viagem não o tenha cansado muito – sorriu ela – Camilie, poderia mostrar ao nosso convidado o quarto de hóspedes?

– Sim, mamãe.

Lembrei-me que a frieza era um traço das famílias européias quando comparadas às americanas, mas mesmo assim estranhei a relação de mãe e filha que elas tinham. Sophie passou por mim no corredor e entrou no primeiro quarto fechando a porta.

– Esse é o quarto da pequena – minha guia indicou – O da frente é da minha mãe, o seu é o seguinte e... – jogou-me um olhar sugestivo – O meu é logo ao lado, se precisar de qualquer coisa.

– Obrigado – formulei tentando livrar-me dela – Se não se importa, vou arrumar minhas coisas.

– Está bem... Eu chamo quando o jantar estiver para ser servido.

E deixou-me no aposento. Não era grande: uma cama, uma cômoda adornada com um vaso de flores, carpete no chão e uma escrivaninha sem cadeira. Deixei minhas coisas sobre a cama e considerei trocar-me, mas decidi que, levando em conta o comportamento de Camilie, seria melhor ficar o menos possível sem roupas enquanto estivesse ali. Por uma questão de etiqueta tratei de voltar logo para a sala de visitas.

Mm. Baudelaire servia xícaras de chá quando cheguei. Sorriu ao ver-me e gesticulou para que me sentasse.

– O quarto é do seu agrado, M. Yuri?

– Sim, é muito confortável – comentei – A senhora está sendo muito boa comigo.

– Ah, por favor, é o mínimo que posso fazer... Esperei por muito tempo pela oportunidade de conhecê-lo.

Ela descansou o líquido quente sobre a mesinha de centro. Pude perceber sua postura tensa e que olhava o corredor apreensiva, como se esperasse que uma de suas filhas aparecesse de repente e escutasse algo indevido.

– Sophie tem estado muito feliz desde que conheceu o senhor – disse – Mesmo pelo telefone pude sentir que ela estava muito alegre.

– Acho que é mútuo – completei, mas a mulher mirou-me estranha – Mm. Baudelaire, sinto se estou me intrometendo, mas o que significa dizer que Sophie é muito especial?

– Ah, bem – gaguejou – A segurança dela é muito visada. Já me preocupa muito que ela freqüente o Instituto...

– Então por que ela o faz? Quero dizer, não seria mais saudável para uma criança dessa idade um curso regular de circo?

– Sem dúvida, mas... – hesitou e somente após olhar em volta prosseguiu – É da vontade da... Mãe dela que ela freqüente classes especiais.

Fez uma pausa desconfortável. Eu já havia presumido que Sophie era adotada, mas que a relação entre ela e a mãe adotiva fosse tão complicada não me havia ocorrido.

– A mãe de Sophie tinha alguma conexão com o circo?

– Ela tem, de fato, mas há bastante tempo não nos falamos...

Pelo visto era melhor mudar de assunto antes que a senhora começasse a chorar.

– Mas Sophie parece gostar muito das artes circenses, e é muito talentosa.

– Oh, sim, ela é ótima, muito esforçada e inteligente. Deixaria qualquer mãe orgulhosa...

– Mm. Baudelaire, desculpe se estou sendo inconveniente, mas sobre Sophie...

– M. Yuri – interrompeu-me um pouco nervosa – Gostaria muito de poder contar-lhe a história inteira, mas sinto que não teremos tempo.

Levantou-se e encostou-se na parede ao lado de uma foto emoldurada.

– Meu marido morreu quando Camilie tinha dez anos, e no mesmo ano fui promovida à presidenta dos Hotéis Hamilton na França.

Tentei esconder a surpresa pela menção da empresa de Layla, mas mesmo visível esta seguiu ignorada.

– Um... amigo da família me pediu que ficasse com a filha dele por um tempo e...

– Acabou adotando uma criança desse jeito?

Ela sorriu como que aliviada.

– Sim, pode-se dizer que sim. Sabe, M. Yuri, gostaria de fazer-lhe um pedido muito difícil...

Os olhos escuros pareciam suplicantes. Nada pude dizer para impedi-la.

– Gostaria que o senhor levasse Sophie para o Kaleido Stage – disse simples – para que ela assistisse a uma apresentação de verdade. Sei que não há nada em cartaz no momento, mas não há pressa, o importante é que ela vá.

Não entendi como toda aquela conversa sobre a adoção da menina havia chegado à levá-la para Cape Mary e oito horas de fuso-horário longe de sua casa.

– Não seria mais apropriado se a senhora fosse com ela?

– Infelizmente, o trabalho não me permite. – disse triste – Ela me pede essa viagem todos os Natais desde que me lembro, e tenho certeza que pedirá novamente este ano. Seria muito importante para ela.

Hesitei. Dizer sim era aceitar voltar para o Kaleido Stage e passar por situações para as quais não tinha certeza de estar preparado. Falar com Kalos, encarar Leon e rever Layla entre elas. Por outro lado, fugir não era uma estratégia boa em longo prazo.

– Posso ligar para o Kaleido Stage e descobrir quando será a próxima peça. Se o itinerário permitir, acredito que poderei levá-la.

Vi lágrimas formando-se nos olhos dela.

– Muito obrigada, M. Yuri – sorriu abertamente e virou-se em direção aos quartos – Camilie, Sophie! Vamos jantar!

Sorri também. Voltar era uma idéia atraente agora que a repensava um pouco. Estaria livre da mocinha de óculos, de remédios possivelmente assassinos, poderia finalmente falar com Layla do jeito que queria, e algo que me revigorava ainda mais: Sophie estaria comigo.

Falando na pequena, ela veio até mim e me pegou pela mão.

– Vamos, Mr. Yuri...

A comida estava deliciosa, de fato. Já no fim do jantar Mm. Baudelaire sugeriu que eu levaria Sophie para Cape Mary por uma semana, quando quer que fosse o dia de abertura da próxima peça. A criança ficou estática enquanto Camilie cruzou os braços e acusou a mãe de mimar a menor.

– Não diga um absurdo desses – a mulher mais velha repreendeu.

– Quero ir para os Estados Unidos com o Yu também.

Engasguei com a lagosta. Sophie eu levaria no colo se fosse o caso, mas Camilie seria deixada no bagageiro do avião errado com muito prazer. A mãe mirou-me.

– Já pensou em perguntar ao M. Yuri se há como alojá-la?

– Se esse é o problema posso dormir com ele, não é Yu?

– Na verdade – tomei um gole de água – Há um quarto extra, mas...

– Então está decidido – interrompeu-me sorrindo.

– Não quero que Camilie vá com a gente – resmungou Sophie – Ela só vai-

– Ah, irmãzinha... – atuou a mais velha – Vai ser tão divertido!

– Acho que vou pegar a sobremesa – murmurou Mm. Baudelaire ao se levantar – Isso deve apaziguá-las...

Permaneci calado enquanto as irmãs brigavam. Achei que, independente de minha opinião ou vontade, teria de hospedar aquela criatura estranha em minha casa.

Crepe de chocolate com creme de avelãs era ainda melhor do que o nome sugeria, e como havia sido dito, acalmou as duas à minha frente. Ajudei a tirar a mesa e pedi licença para fazer uma ligação ao celular. A dona da casa insistiu que eu usasse o telefone fixo mesmo que fosse uma ligação internacional. Agradeci a gentileza e disquei o número extenso. Como de costume, três toques e veio a voz dela.

– Alô?

Estranhei o tom apreensivo, mas continuei como se não o houvesse notado.

– Sou eu, Layla.

– Ah, Yuri – suspirou – Achei que fosse outra pessoa.

– Algum namorado novo?

– Como se – disse sarcástica – Quem está de namorada nova é você, se bem me lembro.

– Saiba que você e minha "namorada" vão se ver logo.

– Logo?

– Bem, eu explico mais tarde – sorri – Só liguei para saber como vai a peça.

– Está com sorte. Acabei de assinar os contratos para o dia de abertura.

– E quando vai ser?

– Na semana do Natal, pela tarde. Acho que você vai gostar, Sora se superou quanto a idéias malucas, caras e engraçadas.

– Leon está bem com isso?

– Está melhor do que eu esperava... Mal posso esperar para vê-lo com a fantasia.

– Por acaso ele não seria o Grinch, seria?

– Não, bem longe disso. Você não reconheceria mais o Leon se o visse na rua.

– Por que não?

– Ele está usando roupas de outra cor que não preto.

– Certo, agora estou surpreso.

– Não há como não ficar – ouvi-a rir um pouco nervosa – Você vem para a estréia?

– Venho...

Camilie passou por mim e jogou um beijo.

–... E sinto dizer que acompanhado.

– Sua namorada nova?

– Já te disse que a menina tem sete anos.

– E eu já te disse que pedofilia é crime.

– Sophie não é minha namorada.

Não houve resposta do outro lado da linha e prossegui sem pensar no possível motivo.

– Mas vou levar a irmã dela, que é meio...

– Como você disse que a menina se chama?

Pela segunda vez na noite ela usava aquele tom assustado.

– Sophie, por quê?

–... Por nada – titubeou – Não é nada.

– Layla, você está meio estranha, aconteceu alguma coisa?

– Não é nada – repetiu – Bem, então vou reservar três lugares para vocês. Quer o setor VIP ou prefere o central mais atrás?

– Tanto faz, Layla por-

– Do VIP a vista é melhor. Então até mais tarde.

– Layla, espere...

Mas ela já havia desligado. Não querendo estourar a conta telefônica de minha anfitriã, resolvi não ligar de novo.

Por uma hora mais ou menos fiquei com Sophie na sala de estar lendo um livro de contos. A mãe valorizava muito a literatura e insistia que a pequena continuasse a leitura pouco fluente. Quando os bocejos se tornaram freqüentes fomos todos para cama. Eu, quando ia fechar a porta de meu quarto, fui surpreendido por uma menininha de pijamas e abraçando um bichinho de pelúcia.

– Vim desejar boa noite – Sophie disse baixinho.

Ajoelhei-me para ficar frente a frente com ela.

– Você já me deu boa noite – sorri – Há algo mais?

– Bem... – apertou o cachorrinho – É que a Camilie disse que tinha um rato no meu quarto enquanto eu estava fora e...

Fiz-lhe carinho nos cabelos dourados. Pobrezinha, detestava estar em casa e ainda era aterrorizada pela irmã maior. Peguei-a no colo e a levei até seu quarto.

– Não há nada aqui que possa te machucar – garanti – Agora trate de dormir, está bem?

– Mas...

Ela se recusava a soltar minha mão. Coloquei-a na cama e puxei os cobertores fofos sobre a forma pequenina. Fiz que ia sair, mas ela ainda segurava a manga de meu casaco com força.

– Já é tarde, Sophie – disse sentando-me na borda do colchão – Não está com sono?

– Sim, mas é que...

A voz chorosa me fez não querer deixá-la só. Corri os dedos pelo cabelo dela e conversamos baixinho por um tempo. Camilie era um carrasco, não uma pessoa; como podia contar tantas histórias horríveis para alguém tão delicada quando aquela criança?

– Não há porque ter medo – disse a ela – Monstros não existem, e mesmo se existissem, estou no quarto ao lado, qualquer coisa grite.

– Obrigada, Mr. Yuri...

– Hei, não precisa me chamar desse jeito.

– Será que eu posso...

– O quê?

Ela remexeu-se sob a roupa de cama. Mesmo no escuro pude ver o sorriso infantil formando-se.

– Sabe – começou tímida – Camilie me disse que quando ela não conseguia dormir a noite, o papai dela deitava com ela até que ela dormisse.

Senti o coração apertar. Aquela criatura que Sophie era obrigada a chamar de irmã deveria ser muito possessiva quanto à memória do pai já falecido, tanto a ponto de não permitir que a pequena também o chamasse de pai. E morando sozinha naquele dormitório, sem os pais ou qualquer outra companhia, Sophie devia sentir-se extremamente sozinha e abandonada.

– Eu sempre quis saber... – continuou enquanto passava a mão sobre a minha – Como é ter um papai... Então, quando estivermos no Kaleido Stage... Será que eu posso te chamar de papai?

Meus olhos umedeceram. Abracei-a com carinho e sussurrei minha resposta. Fiquei com ela até que se encontrasse na terra dos sonhos, e logo me retirei para meu quarto. Do lado de fora, infelizmente, estava a última pessoa com quem queria encontrar.

– Olha, eu sei que ela é mais bonita que eu – Camilie disse em tom meloso – Mas veja por outro lado, eu e você podemos ficar juntos que ninguém vai te chamar de pedófilo.

– Desculpe, mas não é nada disso – repeti pela enésima vez e tentei ser educado: – E não tenho intenções de me envolver em compromisso algum...

– Ai, Yu, como você é chato... Por acaso não está apaixonado, está?

–... Não – menti. Dizer sim talvez fosse verdade, mas tinha muito medo do que ela diria se essa fosse a resposta.

– É mesmo...? – provocou-me – Venha comigo.

Diferente do toque suave de Sophie, Camilie me agarrou pelo pulso, me puxou para dentro do quarto dela e bateu a porta. Tão logo estávamos dentro ela largou-me e girou a chave da fechadura.

– Posso saber – irritei-me – que diabos está fazendo?

– Te ajudando – disse procurando algo no fundo do guarda-roupas bagunçado – Cale a boca, quer acordar minha mãe? Ela me mata se descobre que estou fazendo isso...

O carpete claro do chão estava forrado de revistas velhas e roupas sujas, a parede cheia de pôsteres de bandas góticas e o estado deplorável de bagunça sobre a mesa de estudos juntamente com a cama desfeita assustaram-me. Cada segundo passado com aquela criatura me deixava mais preocupado de tê-la sob o mesmo teto que eu.

– Senta, acho que não vou achar tão cedo...

– Achar o quê?

– Uma foto minha que eu queria te mostrar.

– E no que uma foto sua vai me ajudar?

– Detesto quando os convidados usam um período tão útil quanto o noturno para dormir – jogou mais roupas amassadas no chão – Queria te dar algo para pensar...

Esperava fervorosamente que ela estivesse vestida na foto que ia me mostrar, ou não dormiria mesmo, consumindo minhas preciosas horas de sono para descobrir um jeito de me livrar da criatura caso ela ficasse no meu apartamento.

– Achei! – anunciou baixo ao abrir um caderno velho – Mas antes quero que me prometa uma coisa.

Roguei aos céus que minha hipótese de qual seria a promessa estivesse errada.

– O quê?

– Que não vai me pedir explicações muito complicadas.

– O que seria uma explicação complicada?

– Ah, esquece – estendeu a foto para mim – Só olhe.

Peguei a figura e a mirei na luz tênue do quarto. Nela estava uma Camilie mais ou menos com dez anos e muito mal-humorada, vestindo um conjunto digno de um bebê e sentada ao lado de uma segunda jovem bem mais velha, as duas sob o Sol forte dos Jardins de Versalhes.

Essa segunda jovem aparentava pelo menos cinco anos mais velha que a outra, e usava roupas largas que com certeza não eram dela. Tinha o cabelo loiro muito mal preso e as linhas delicadas do rosto forçavam um sorriso triste. Não a associei com ninguém conhecida, mas prestando muita atenção no rosto pálido vi olhos azuis sombreados pela franja despenteada. Lembrava vagamente Layla, mas concluí que não podia ser. Eu mesmo a havia conhecido quando tinha essa idade e aquela pessoa deprimida não lembrava nem um pouco o esplendor que minha parceira demonstrava.

– Bela foto – referi-me ao cenário florido – Quem está ao seu lado?

Camilie riu desacreditada e jogou outro de seus olhares maliciosos.

– Quem se importa? – arrancou a figura e a atirou num canto – Eu já era sexy desde aquele tempo, não acha?

Revirei os olhos. Aquilo não estava acontecendo...

– Não – disse sincero – Posso ir agora?

– Ah, Yu... – choramingou – Tudo bem, vou esperar até a gente estar na sua casa – riu ao ver o olhar mortal que eu a dava – Me aguarde...

Deitei na cama naquela noite psicologicamente esgotado. Pior do que um vôo de mais de oito horas ao lado daquela coisa era que ainda teria de encontrar uma maneira de me livrar dela em terra.