Abismo
Ele morreria por ela, ela morreria por ele. E, naquele instante, era exatamente aquilo que os dois estavam fazendo.
Eles tinham falado sobre aquilo, dezenas, centenas, milhares de vezes. Era inevitável, considerando que os últimos cem anos tinham sido exclusivamente dedicados à expectativa – mas não planejamento, pois como poderiam eles prever qualquer um dos movimentos dele? – da vingança. Era inevitável, considerando que segredos e privacidade eram as coisas que eles menos tinham, dentro de uma lista interminável de coisas perdidas e abandonadas no longo curso de suas vidas amaldiçoadas. Era inevitável, considerando que ele era ele, ela era ela, e nenhum dos dois era exatamente conhecido por sua prudência e senso de preservação.
"Não lute contra quem você não pode derrotar", ele dissera, e "Nem pense em tentar me ajudar", fora a sua resposta. "Você não pode deixar ele fazer você perder o pouco bom senso que tem", ele dissera, e "Preocupe-se com você, idiota", fora a sua resposta. "Se você, morrer, eu...", o sussurro se perdera no ar denso de mil verões, e ela respondera com a careta cruel de uma confiança vingativa que não sentia.
Ele amava ela, ela amava ele. Aquilo nenhum dos dois precisava dizer.
O amor dela por ele era uma ternura selvagem e infantil que se confundia com ódio, medo e ressentimento. Ela não amava o poder que ele tinha sobre ela, não amava precisar dele, não amava o modo como seu corpo e seu espírito estavam sempre tão instintivamente conscientes dos dele, moldando-se aos seus movimentos, reagindo às suas atenções, despedaçando-se sob as pequenas e inevitáveis decepções de todos os dias. Mas ela o amava, cada pedaço, cada ínfimo átomo dele, e não dava para negar que era ao redor dele que sua vida girava, por mais que aquilo a consternasse e enfurecesse. Ela não era aquele tipo de garota, ela não esperava por ninguém, não confiava em ninguém e definitivamente não dependia de ninguém, e a idéia de matá-lo era mais atraente que a idéia de beijos e abraços, declarações e um vestido branco, segredos partilhados sob lençóis e uma corrente de ouro prendendo-a pelo anular esquerdo. E, no entanto, não havia nada no mundo que ela quisesse mais que ele em seus braços, entre seus lençóis, e pedaços de vestido brancos estraçalhados no chão por um amor tão impaciente quanto furioso. Eles eram mais que almas gêmeas, mais que amantes e companheiros. Ele era o seu mundo, ela era a sua noiva virgem.
E era aquilo que ela era para ele, desejos reprimidos e medo à solta como um bando de lobos selvagens, territorialismo violento e um último raio de inocência e pureza num mundo corrompido até o âmago. Ele era um homem vaidoso, sofisticado e experiente, definido por uma visão cínica e desencantada do mundo e um ceticismo de sabedoria e solidão que acabaria por matá-lo, se ela não tivesse aparecido. Mas ela estava lá, e sempre estaria, a chama furiosa e delicada que punha em ignição todos os seus instintos mais puros e primitivos, a importância de sobreviver para proteger, a necessidade de lutar para manter, o desejo de explorar, e consumir, e possuir, e fazer-se imenso como o mundo e inescapável como o destino. Ela era o que dava cor à sua vida e sentido à sua existência, e amá-la era a única coisa que lhe permitia amar a si mesmo, e era aquela a razão pela qual ele morreria por ela mil vezes sem hesitar.
Agora, não havia mais nada.
Ela estava em seus braços, sem protestos e sem reservas, como ele sempre sonhara, olhos de cobre cheios de devoção e rosto desenhado em entrega absoluta, e ele nunca se sentira tão desesperadamente destroçado. Ela não tinha conseguido reunir paciência suficiente para agüentar, ela dissera, e ele sabia, e sentia que a sua, também, tinha sido esticada demais e finalmente quebrada ao meio. Cada músculo em seu corpo tremia com fúria e antecipação, e os gritos do demônio em seu peito eram tão altos que quase abafavam os débeis sussurros dela. Mas ela ainda estava viva, o peito magro subindo e descendo pesadamente com o esforço monumental de respirar, lábios trêmulos e pulsos cerrados em dor incontrolável, sangue e vísceras e ele não queria nem pensar em mais o quê se espalhando lentamente pelo chão ao seu redor. Cabelo platinado, puro e claro como seus sonhos nupciais, estava manchado pelo mesmo sangue rubro e viscoso que pontilhava as sardas de seu rosto e que banhava as mãos dele, e o mundo inteiro parecia ter pausado enquanto ela se desvanecia inevitavelmente e ele buscava, frenético e desesperado, por qualquer possibilidade de ajuda, solução, salvação.
As mãos dele apertavam os restos delicados e quebradiços de seu corpo com uma força possessiva e inconsciente que não devia estar fazendo nada para ajudá-la em sua dor, mas ele precisava daquilo, precisava segurá-la com todos os dedos e todo o poder que tinha, porque se não fizesse aquilo ela simplesmente se desfaria em um milhão de pedaços invisíveis e se espalharia pelo ar como cinzas do fim do mundo, e então ele estaria sozinho e derrotado, e ele teria finalmente vencido.
Não. Aquilo nunca.
O demônio se agitou em seu peito, subiu pela garganta e pausou diante de seus dentes cerrados, esperando permissão para passar. O corpo dela ficou uma fração mais quente, seu rosto um tom mais vermelho apesar de todo o sangue perdido, e ele sabia que era o demônio dela, também, despertando e respondendo, correndo solto por suas veias abertas e reunindo e procurando pela energia necessária à explosão que lhe permitiria escapar, porque naquele sentido eles eram iguais. Ele seria capaz de obliterar qualquer traço de sua vaidade e orgulho e se dobrar a qualquer força no mundo para mantê-la viva, mesmo que aquilo significasse pedir a ajuda de seu próprio demônio, e ela, ela faria o mesmo para impedi-lo de se destruir para salvá-la.
Ele morreria por ela, ela morreria por ele. E, naquele instante, era exatamente aquilo que os dois estavam fazendo.
N.A:
PQP. Sem palavras para capítulo 377 do mangá, eu não sei se o Kubo merece um troféu ou uma bomba nuclear naquela cabeça idiota dele. Nunca imaginei que uma porcaria de um mangá pudesse me deixar tão perturbada e ansiosa, e só espero que tudo acabe bem. O pior é que, mesmo que não acabe bem, tenho certeza de que vai ser magistral.
Mas espero que acabe bem.
Quanto à fic, eu simplesmente precisava escrever alguma coisa sobre o que aconteceu. Ficou absurdamente pequeno, e eu tenho muito mais a dizer, mas isso foi tudo o que consegui encaixar sem que parecesse melodramático ou confuso demais. Concisão, nesse tipo de situação, é a palavra chave, eu acho. De qualquer forma, leiam com cuidado e devagar, porque há muito mais escrito aqui do que as palavras parecem dizer.
Saudações,
Lady Macbeth
