CAPÍTULO UM

"O homem que outrora fui, o mesmo ainda serei:
leviano, ardente. Em vão, amigos meus, eu sei,
de mim se espere que eu possa contemplar o belo
sem um tremor secreto, um ansioso anelo.
O amor não me traiu ou torturou bastante?
Nas citereias redes qual falcão aflante
não me debati já, tantas vezes cativo?
Relapso, porém, a tudo eu sobrevivo,
e à nova estátua trago a mesma antiga of'renda…"

[Aleksander Pushkin]

Houve em Imladris a beleza duma senhora, a clássica formosa, colo alabastrino e cabelos d'ébano, como só houve ela naqueles tempos. Era Lady Arwen. Eu vivia por ela, meus suspiros e idealizações eram todos p'ra ela. Soube—O amor é um elixir que dá a um homem frio a temperança, pela ventura o guia á ruína. Tascar no cadáver a urência e depois afundá-lo de novo ao ataúde, por onde as flores mirram como a sua sanidade. Eu era um desses. Por mais que fosse bravo espadachim, tornava-me um tolo quando via Lady Arwen luzindo tal qual sonho purpurino na ponte das cascatas.

O senhor Elrond que me adotara á sua casa, também a tinha como filha e éramos feito irmãos, contudo, eu era atraído por ela como as gaivotas são para o litoral. Ele descobriu, e negou-me a mão da beleza antes mesmo de minha petição. Cortou-me pela raíz a ternura. Disse-m'o que a linhagem dela jamais sequer equipararia-se á minha, elevando-a tão longe para mim como as estrelas. Adoeci, a vontade se esvaia, e logo vi-me empalidecer num espasmo.

Pouco tempo fazia desde que eu abandonara o Vale para vir embeber-me nas tavernas de Bri. Tombei as branduras e enveredei pela lassidão da mocidade, vivia constantemente entre a aguardente e a deriva, o fumo e a espada; Habituando-me á perdição. O Pônei Saltitante era a espécime de casa em que o ébrio louco e o cético partilhavam a mesma távola, sendo eu o entrementes desses dois. Esquecera que a vivência era bela, dos eflúvios que beijam a verdura e inspiram os poetas, tampouco o céu que se aprumava de astros me instigava a olhar pela bucólica luneta.

Na turba, entre a música e a orgia, eu era a sombra dos cantos. Não suspirava, não proferia. Na brigada eu era o mais audaz, arrancava as armas e matava com o coração pétreo, se ainda o tinha. E no fim sorvia a bebida para olvidar os meus espectros. Vivia de andarilho, esquecido e sem nada á me agregar, e foi nestes caminhos que bateu-me a ideia de visitar um velho amigo pintor.

Dirigi-me á antiga morada, mais do que uma casa de veraneio, menos que um palácio, porém tinha suas suntuosidades. Era lar do mestre Falcon, pintor e um erudito, lá vivia á maneira de seus próprios caprichos de artista ousado. Fui aprender com ele as grandes artes, crente de que ele me reconheceria e o faria de bom grado. Pois, bati á porta branca de madeira ― estava fria. Os ventos oeste sussurravam dentre as folhagens da floresta em que a casa do mestre jazia sozinha. Diz-se que ele era um gênio da solidão e seu senso de privacidade beirava a misantropia. E foi justamente ele quem abriu a porta.
Levantava ao rosto um lampião, a luz moribunda acendia-lhe o semblante grave, lhe emprestando uma aura sombria; Os cabelos brancos rodeavam-lhe a cabeça como o diadema da sabedoria, as grossas sobrancelhas uniram-se e ele encarou austero, senti o pesar de toda a sua autoridade magistral, eu que era só um mancebo batendo-lhe a porta na alta noite. Um raio que houvesse caído a sete palmos dali não me teria feito mais atônito ― jurei que ele ia fumegar e rejeitar-me pelo atentado a sua quietude na madrugada muda, em que os gênios como ele alcançam a epítome da lira.

Tentei reproduzir um espelho de sua impassibilidade, arranjando a feição mais cabal ao meu alcance. Ele sorriu-me por fim, abaixou a tênue luz amarelada e cortou o silêncio do som das cigarras ao longe. —Conheço teu rosto. Ora se não, tu és Passolargo. Soube que virias, mas não em tal hora.

—Escusa-me, senhor. Sou um vagante.

—Pois entre. Terias de chegar nalgum outro momento, de qualquer modo. Sou um operante da noite, eis a vossa sorte.

Entrei, — a casa era um genuíno santuário de conhecimento. Estátuas erguiam seus corpos nus a sustentar a abóbada e o lustre; O aroma era de incensos do folde oriental, juntamente com ares do tabaco, da madeira e dos livros antigos. Havia escrituras por todos os lados, o pintor era cerceado pelas vozes de vários pensadores. Recolheu da mesa de mogno seus próprios livros e tentâmens, estendeu sobre ela um pano: Para nós pôs duas taças, sentei-me, e da cadeira ele chamou: —Legolas!

Assomou na sala uma figura puríssima, em alvas vestes de sono mimoso, como o véu níveo da virgem. O tecido translúcido lhe ia até os tímidos pés descalços, as melenas d'ouro pálido brilhavam ao que sempre estivessem sob a luz do Sol, no entanto era penumbra, e a criatura levava consigo uma vela por entre os dedos finos, cujo fogo brincava na tez de mármore — Falcon guardava um serafim.

— Vede criança. Temos visita.

Rápido o elfo, como pude averiguar, colocou pratos sobre a mesa e serviu-nos as taças de vinho, á mim deu somente uma mirada, uma faísca pululara das orbes de anil em milhares de átomos. Voltou aos corredores segurando o pires e a velinha, antes pois, o velho beijou-lhe as costas da mão.

—Quem é este? — perguntei.

—É Legolas. — Falcon respondeu, levou a bebida ao queixo. — Vive comigo, o zéfiro que inspira um'alma velha e desgastada.

—D'onde veio?

— É uma história curiosa, eu diria. Nem ao certo sei como e por quê ele veio á mim, mas encontrei-o pelas bordas de Erin Lasgalen. Uma perna quebrada, suspiros de socorro e morte. Primeiro não cri, pois o via como o fauno pungente espreita a ninfa. —tragou, o olhar divagava longe, por um momento as rugas desapareceram e ele parecia somente um sonhador. —Depois, pensei que a estrela mais bela tivesse se perdido ou as asas de anjo celeste tivessem despedaçado: Levei-o comigo, dei-lhe reduto e vinha. E por gratidão ele concordou em servir-me de modelo para as minhas criações.

No mais, continuamos a trocar dizeres. Ele era dono duma augusta maestria, dedicara todos os seus sessenta anos ao lapidar da sapiência, estava ficando velho, porém refinado como um vinho que os anos acrescentam melhor saibo: O tempo só conviera-lhe para apurar as habilidades. Ele era um homem sóbrio, de profunda cultura e propriedade no falar, e nesta instância, lembrava-me muito o velho Gandalf que conheci outrora —Ambos discursavam por enigmas, nunca uma tolice lhe nasceu dos lábios.

Ele foi recolher, ofereceu-me um leito e foi pelos corredores. Segui-o, ele não notara. Observei-o abrir a porta dum quarto, lá havia a visão de luz que ele mantinha. Dormia na cama levantada por um altar, lá Falcon não ousou juntar-se. Ele só assistia á Legolas repousando, o ar da noite inspirava no pálido seio, ás vezes as coxas sonolentas amontoavam-se uma sobre a outra, era algo de muito cândido e voluptuoso —Não o soube. Depois, o homem estendeu o leito sobre a pequena escadaria, aí então dormiu, abaixo da criatura. O pintor a amava como á um anjo bento.