Hinayana1, o Pequeno Caminho
Minha primeira long-fic! emocionada E meu primeiro Universo Alternativo também! Tenham paciência comigo e perdoem meus surtos malucos e sem noção. A história se passa na índia do século XVIII e conta a história de três meninos que se vêm envolvidos em uma espécie de guerra mágica e precisam a aprender a usar os poderes que receberam para enfrentar um demônio indiano que quer dominar o mundo. Contém (muito) yaoi. Os casais principais são Shaka x Lune x Mu, Shion x Donko e Saga x Kanon. Aparecem também Pandora x Radamanthys, Fenrir x Mime, Shura x Shyriu e algumas outras menções.
Quero dedicar essa fic a minha querida amiga e leitora de testes Yumi Sumeragi! Muito obrigada por toda a força que você me deu, pelos palpites, por ter lido a fic pra mim e por me ameaçar caso eu não terminasse. Essa fic não teria saído sem você Bjinhos!
Só pra lembrar: Saint Seiya AINDA não é meu porque o tio Kurumada não quis me dar TT
Prólogo
Era uma vez um país cheio de mistérios, com paisagens que iam desde gélidas montanhas com os picos cobertos de neve até desertos escaldantes com dunas douradas. O cheiro de especiarias enchia o ar. O aroma do cravo, da canela, do curry parecia estar impregnado em tudo. Esse país chamava-se Índia.
As águas do Ganges e do Indo banhavam as terras, preenchendo-as de vida. Próximo à foz de um destes rios, justamente o Ganges, havia dois templos muito antigos. Ninguém lembrava de quando haviam sido construídos. Pareciam estar ali desde sempre. Eram os chamados Templos Gêmeos2.
Localizavam-se um em cada margem do rio. O da margem leste era feito em mármore branco, refletindo os raios dourados do sol durante todo o dia. Na margem oeste havia um templo de mármore negro, que refletia a luz da lua e das estrelas.
Eram tidos como lugares estranhos. Ninguém de fora dos templos sabia exatamente a que religião ou deus eles pertenciam. O mistério aumentava com a proibição da entrada de qualquer pessoa desconhecida sem a devida permissão dos mestres.
Ambos os templos eram belíssimos. De arquitetura imponente, eram cercados de jardins, tamareiras, palmeiras e figueiras milenares. Por detrás dos altos muros que preservavam o interior da curiosidade de estranhos e de animais selvagens, havia pequenos lagos de águas esverdeadas, cheios de flores de lótus e peixes pequeninos.
Pareciam lugares de repouso, de meditação e busca pela iluminação espiritual que poria fim ao ciclo das repetidas existências. Seus habitantes viviam de doações, de uma pequena horta que cultivavam e dos peixes que o Ganges fornecia. Dividiam igualmente entre si as tarefas, para que nenhum ficasse tão sobrecarregado de trabalho que não pudesse meditar ou estudar.
Mulheres também eram admitidas para monjas e recebiam exatamente a mesma educação e tratamento que os homens. Todos usavam túnicas de linho branco com mantos de casimira vermelha por cima. E respeitavam-se como iguais. Não havia abusos, discriminação ou preconceito naqueles lugares sagrados.
Um recém-admitido para compartilhar do Ensinamento ficaria sabendo que eles não serviam a nenhuma religião específica e misturavam os ensinamentos hindus e budistas em uma filosofia que pregava a compaixão ao próximo, a justiça, a verdade, o desapego aos bens materiais e a busca pela iluminação.
No centro de cada templo havia um altar dedicado à Trimurti, a Divida Trindade3. Brahma, o Criador, aquele que criou o universo e tudo o que existe. Vishnu, o Preservador, que preserva e zela pela criação. E Shiva, o Destruidor, aquele que destrói a criação quando esta é tomada pelo mal para que se possa reconstruí-la, de modo que volte a ser boa; também é ele que orienta os homens no caminho de volta ao mundo de onde jamais retornaram, colocando fim ao ciclo das existências.
Segundo a crença, a cada nascer do sol Brahma cria um mundo novo. Durante o dia Vishnu o preserva, zelando pelos homens e por suas ações. Na hora fria que antecede a madrugada Shiva o destrói, eliminando todo o mal, para que Brahma possa novamente fazer seu trabalho. Esse processo de criação, de preservação e de destruição seria constante.
A cada novo dia, um novo mundo nascia, era preservado e depois destruído. Dessa forma a Trimurti zelava para que o Dharma4 – a ordem natural do mundo – fosse mantido. Os Templos Gêmeos tinham o papel de agradar os deuses e os manter despertos para que pudessem fazer seu trabalho.
Uma lei antiga determinava que os mestres dos templos deviam ser gêmeos. O mestre do templo do leste devia pedir à Trimurti pela luz, pela vida e por todas as coisas boas. O do templo do oeste devia pedir para que as sombras não espalhassem, para que as almas encontrassem seu caminho após a morte – fosse esse caminho qual fosse – e para que os sofrimentos fossem atenuados e recebidos pelos deuses como oferendas.
Mas o Dharma em breve seria ameaçado por forças desejosas de alterarem sua ordem natural. Três jovens seriam escolhidos para receberem os espíritos da Trimurti e lutarem pela justiça, pelo amor e pela bondade. Seria dada a eles a missão de destruir o mal, reconstruir o bem e preservar a justiça. Os Templos Gêmeos desempenhariam um papel crucial nos acontecimentos que se seguiriam.
Capítulo I - Lune
Muito longe da Índia, onde não se sabia nada sobre Templos Gêmeos e as crenças eram totalmente diferentes, havia um país chamado Inglaterra. Formado em sua maioria por planícies utilizadas no cultivo de cereais ou na criação de animais, há alguns séculos tinham suplantado a importância dessas atividades. A Inglaterra vivia, sobretudo, do comércio e da pirataria.
Londres, sua capital, possuía um enorme porto abarrotado de navios à vela, responsáveis por sua prosperidade e glória. Porém, a cidade era bela apenas em partes. Estava cheia de ruas estreitas e lamacentas que serpenteavam por entre casas apertadas umas nas outras. As pessoas se amontoavam pelas vielas, passando frio no inverno e fome durante o ano todo.
O princípio da chamada Revolução Industrial trazia as fábricas, a fumaça e a fuligem. O trabalho era explorado em favor da nobreza e dos ricos comerciantes. Estes se consideravam fazendo um favor aos pobres, já que o trabalho só poderia enobrecê-los e era o único meio de salvar a alma.
Era um lugar cheio de hipocrisia, onde tudo se baseava nas aparências, mas ninguém era o que aparentava ser. A crueldade era mascarada com sorrisos, a injustiça com o princípio de que era preciso sofrer e trabalhar muito nesta vida para se alcançar a graça depois dela.
Não pela primeira, nem pela última vez, pessoas mal-intencionadas usavam a religião para manipular o povo e obter benefícios próprios. A burguesia vencera a nobreza, os fiéis da Igreja da Inglaterra passaram de perseguidos a perseguidores e na nova ordem não havia lugar para sentimentos puros ou boas intenções.
Naquele ano de 1777 o inverno viera mais rigoroso do que o esperado. Metros de neve impediam que as pessoas saíssem de casa. Todos os dias, dezenas de corpos eram encontrados congelados nas ruas de Londres.
Na madrugada de 24 de dezembro, véspera de Natal, o frio atenuou-se subitamente. A neve parou de cair e as nuvens que deixavam o céu carregado desapareceram, revelando-o como um manto negro coberto de estrelas, onde a lua cheia brilhava etérea.
Em uma majestosa casa de campo nos arredores da capital as luzes estavam acessas apesar da hora adiantada. Saori Heathcliff5 apertava o lençol fazendo força, entre os dentes uma toalha para que não escapassem seus gritos de dor. A dor era necessária, a dor a purificaria de seu pecado. Sentiu-a aumentar e desfaleceu. Do lado de fora do quarto ouviu-se o choro de uma criança.
Era um menino. Um mal a menos. Apesar de ter colocado mais um pecador no mundo, não era uma mulher. As mulheres tinham o mal dentro de si. Eram responsáveis pelo pecado original e pelas desgraças que se abatiam sobre os homens.
Saori não possuía vaidade alguma. Trajava sempre preto e trazia os cabelos arroxeados sempre presos em tranças, de forma discreta. Sua única jóia era a aliança de casamento. Desde pequena ela aprendera a agir desta forma, sendo uma boa mulher e boa cristã.
Sua mãe lhe ensinara que tinha a obrigação de se casar e ser uma boa esposa, submissa ao marido, sempre curvada às vontades deste. Ensinou-a que deveria sofrer quando ele desejasse beijá-la e permanecer quieta e rezando enquanto estivesse unida a ele, para que o pecado não fosse maior.
Ela aprendeu muito bem as lições da mãe. Quando o jovem Shion, um comerciante de boa família e futuro muito promissor, a pediu em casamento seu pai de pronto aceitou e ela não hesitou em honrar o compromisso. Um ano depois, acabara de dar à luz ao primeiro filho.
A governanta da casa, mulher que havia ajudado Saori no parto, abriu a porta da sala com delicadeza. Um homem de longos cabelos louros encaracolados, com uma farta franja caindo sobre os olhos cor de lavanda esperava impaciente, aquecendo-se nas chamas de uma grande lareira de mármore cinzento. Era Shion Heathcliff.
Casara apaixonado por Saori. Era uma verdadeira exceção à regra de convivência de Londres. Não fingia ser o que não era, detestava mentira e ainda tinha esperanças no mundo. Seus sentimentos pela moça foram sinceros. Shion fazia de tudo para agradar. Vivia a questioná-la sobre tudo para não lhe contrariar a vontade, a dar-lhe presentes e dizer-lhe palavras de amor. Não obstante, ela não correspondia.
Vivia a afirmar que o que ele pensava ser amor não passava de um pecado sujo que precisava ser expiado. Passava horas ajoelhada aos pés da cama, com o Livro de Orações nas mãos a rezar para que Deus a perdoasse por despertar sentimentos assim naquele homem. Porque os homens não tinham culpa, seriam santos se não tivessem as mulheres para atentá-los.
--É um menino, meu senhor – disse a mulher, dirigindo-se a ele e interrompendo seus pensamentos. – Um garoto forte e saudável.
--E Saori? – perguntou ele, um pouco aliviado por saber que o filho estava bem.
--Não disse uma palavra desde que o trabalho de parto começou. Está com um pouco de febre, o que é normal. Ela vai ficar bem. O senhor quer ver o menino?
Ele sorriu e a acompanhou até o quarto. Olhou para a cama onde a esposa repousava, devidamente vestida. Sua falta de expressão não o preocupou, havia se acostumado. Apesar da desilusão que lhe causara com seu desprezo, ele ainda a amava.
--Como se sente, querida? – perguntou sentando-se ao lado dela.
--Bem – respondeu ainda indiferente. – Onde está o Livro de Orações?
--Precisa descansar agora.
--Uma mulher nunca deve estar cansada para rezar e pedir perdão por seus pecados.
Sem discutir, ele mandou que a governanta lhe desse o que ela queria e foi ver o filho, estava cansado de tudo aquilo. O bebê dormia envolto em cobertas de lã, num berço próximo à janela. Pegou seu filho nos braços sendo tomado de ternura e amor por aquele pequeno ser.
Foi até a janela e afastou um dos lados das grossas cortinas de veludo azul-escuro. A lua continuava resplandecente como no início da noite, as estrelas pareciam ter se multiplicado. Shion amava a lua e as estrelas, elas lhe lembravam de algo que não sabia explicar, mas que o fazia feliz.
--Vou lhe dar o nome de Lune, meu filho, pois a noite de seu nascimento foi abençoada com a luz prateada da Lua.
Saori nada disse. Em seu íntimo não estava gostando nada daquilo. Quando era pequena ouvira um padre falar que a lua era criação do demônio e que nas noites de lua cheia seus servos uivavam para ela invocando seu mestre maligno. E depois de dias de nevascas e tempestades a lua aparecia, cheia, justamente na noite do nascimento de seu filho. Por via das dúvidas, recomeçou sua oração.
Muitos anos se passaram e Lune tornou-se um jovem belíssimo de dezesseis anos. Os cabelos cor de lavanda6 caíam-lhe pelas costas, até a cintura. Os olhos eram da mesma cor. Sua pele, levemente pálida, emanava um tom azulado quase imperceptível. Seus gestos eram finos e elegantes, as feições delicadas sem deixarem de serem masculinas.
Era um garoto doce, gentil, romântico e sonhador. Possuía um amor pela vida que nem a amargura de Saori conseguia destruir. E ela se esforçava muito para conseguir. Não suportava que as pessoas fossem felizes. Havia se tornado uma mulher amarga, seca. Seu fanatismo parecia estar maior a cada dia.
Shion deixara de tentar agradar. Não aprovava o comportamento da esposa e arrependia-se imensamente de ter casado com ela. Saori não era a boa mulher que pensava que fosse, era um monstro capaz de fazer qualquer coisa pela fé e pelos bons costumes que tanto prezava.
A amargura da esposa parecia tê-lo atingido também. Não era mais o homem alegre e cheio de sonhos da mocidade. Tornara-se sério, sisudo. Abominava o amor que tanto sofrimento lhe trouxera. Passara a resumir a vida em três palavras: trabalho, disciplina e oração.
O medo de que o filho caísse no mesmo erro que desgraçara sua vida fizera Shion se afastar do menino, tratando-o sempre com indiferença e lhe repreendendo qualquer sentimento que não fosse a vontade de trabalhar e progredir e a temência a Deus.
Seus negócios haviam progredido consideravelmente. Entrara para a Companhia Inglesa das Índias Orientais7 e comerciava tecidos e chá importados por ele de Calcutá. Recentemente adquirira uma frota de navios mercantes de grande porte e esperava naqueles dias por seu regresso com as mercadorias.
O comércio dava lucros exorbitantes, porém era uma atividade arriscada. Era preciso investir muito dinheiro na busca de mercadorias e esperar meses até que os navios retornassem, as mercadorias fossem vendidas e o dinheiro começasse a aparecer. A perda de uma leva na viagem poderia arruinar a qualquer um.
Na escrivaninha de seu escritório, localizado na mesma casa de campo onde Lune nascera e passara toda a sua vida, Shion afundava-se numa pilha de papéis, fazendo contas e anotações. O dinheiro da última leva estava no fim, os empréstimos que fizera para financiar a compra da frota venceriam em breve.
Começava a preocupar-se. O retorno de seus navios estava atrasado em quase uma semana, o que não era normal. Colocou o lápis atrás da orelha e largou os papéis, suspirando. Definitivamente aquela não era a vida com a qual sonhara.
Uma chuva torrencial caía sobre Londres naquela tarde. Da janela de seu quarto Lune podia ver a estrada de terra batida coberta de lama. Seus pensamentos estavam longe dali. Cantarolava uma canção que não lembrava de ter ouvido, com palavras estranhas à sua língua. Via-se em uma planície coberta de grama verde e flores de miosótis, o sol banhava o local de forma encantadora, ao fundo um rio de águas esverdeadas fazia ouvir o barulho de sua correnteza.
O som de uma carruagem vindo pela estrada o acordou de seu devaneio. Assustou-se com aquelas palavras que dizia e perdeu o ritmo da canção. Se Saori ouvisse teria problemas. Por que aquilo acontecia com ele? Por que ficava perdido em sonhos com lugares distantes que nunca vira e falava palavras das quais não entendia o significado?
Levantou-se e pegou um pequeno espelhinho com cabo de prata que mantinha muito bem escondido de Saori. A parte de trás era incrustada com pequenas flores em ágata rosa, flores que ele também nunca tinha visto, mas sabia que cresciam na margem dos rios e chamavam-se lótus.
Conseguira aquele espelho entre os presentes que os capitães dos navios de Shion haviam trazido para ele. Pegara no escritório do pai sem ninguém perceber. Virou o espelho e se viu refletido nele. Sentia-se estranho quando o fazia. Aquela imagem lhe parecia desconhecida, como se não fosse ele. Como se aquele rosto, aquele corpo que se refletiam no espelho não fossem dele e sim de uma outra pessoa.
Assim como aquelas lembranças de lugares que nunca vira e coisas que nunca aprendera não pareciam suas. Sentia-se como se houvessem dois dele. O Lune, filho de Shion e Saori, garoto inglês e respeitador dos costumes. E o Lune que sabia que aquele não era seu lugar, que nascera para algo maior e queria voltar para o lugar ao qual pertencia.
Batidas se fizeram ouvir na porta. Colocou rapidamente o espelho embaixo do travesseiro e foi abrir. Saori o encarou com uma expressão furiosa por a porta estar trancada. Olhou-a nos olhos. Não tinha medo dela. Podia torturá-lo o quanto quisesse, queimá-lo na fogueira como a Igreja da Inglaterra fazia com os católicos, ela jamais conseguiria o que queria. Jamais o faria achar que o amor era pecado, que ele era um pecador e que devia pagar por isso.
--Pode me dizer por que a porta estava trancada? – perguntou ela exasperada.
--Porque eu queria ficar só com meus pensamentos – respondeu calmamente. Na verdade tudo o que queria era um pouco de paz.
--Sabe muito bem que não quero que pense, o pensamento conduz ao questionamento e o questionamento ao pecado. Não pense, reze. Vamos, ajoelhe-se, pegue o Livro de Orações8 e peça perdão a Deus.
--Agora?
--É claro. Sempre é hora de rezar. Ajoelhe-se. E não discuta.
Depois de dezesseis anos convivendo com aquela mulher, ele sabia que não adiantava discutir. Se discutisse ao invés de ajoelhar no chão teria de ajoelhar no milho, em pedras pontudas ou em algo pior. Pensava pelo que devia pedir perdão. As crenças de Saori não eram as suas, aquelas orações lhe soavam vazias e sem valor algum.
Seu Deus não era aquele que condenava os homens por buscarem conhecimento, que era cruel e impiedoso e gostava de ver as pessoas sofrendo para pagarem seus "pecados". Seu Deus era amoroso, misericordioso e sábio e queria que todos fossem sábios como ele, para que pudessem se libertar da ignorância e finalmente voltar à matéria invisível da qual foram criados.
Pensou em dizer isso a ela. Péssima idéia. Da última vez tivera a pele das costas queimada com cera quente e ficara duas semanas fazendo jejum para aprender a não blasfemar contra Deus. Ajoelhou-se ao lado de Saori, ela começou as preces de costume e ele acompanhou. Em breve estaria com sono, com os joelhos doendo e mortalmente entediado.
Ele tinha uma forte arma contra o tédio e a dor. Em voz alta murmurava as orações que Saori lhe ensinara. Em sua mente repetia sua própria oração. Uma oração que nunca lhe fora ensinada, mas que ele sabia desde pequeno. As palavras eram OM MANI PADME HUM. Seu significado lhe era desconhecido. Sabia somente que lhe traziam paz e tranqüilidade e ajudavam a esquecer a dor de passar horas ajoelhado.
A carruagem que Lune ouvira chegando parou à porta da casa. Um homem alto, louro, de cabelos curtos e desalinhados, olhos dourados, sobrancelhas unidas e ar arrogante saiu pela portinhola que o cocheiro segurava e entrou apressado no edifício.
Chamava-se Radamanthys de Wyvern. Era um sobrinho de Saori que ficara órfão de pai e mãe e fora acolhido pela família após perder toda a herança que recebera na mesa de jogo. Trabalhava no posto comercial que Shion mantinha em Londres.
Contava dezoito anos, sendo um rapaz difícil de se lidar. Arrogante, prepotente e orgulhoso, parecia achar-se superior a todos os demais e fazia questão de demonstrar. Implicava com Lune o tempo todo e parecia detestar o primo pelo simples fato dele estar vivo. Sempre ficava ao lado da tia quando se tratava de castigá-lo.
Abriu a porta do escritório de forma abrupta, assustando Shion que se voltou para ele imediatamente. Seus olhos expressavam um desespero angustiante. A expressão, no entanto, parecia impassível, como se nada pudesse afetá-lo.
--Estamos arruinados, meu tio.
As palavras foram cortantes como a lâmina de uma faca bem afiada. Shion empalideceu.
--O que... o que você disse? – Shion levantou-se, encarando Radamanthys incrédulo.
--Os navios foram atacados perto de Dover. Roubaram tudo o que traziam. Dinheiro, mercadorias, não sobrou nada. Somente o Star Hill não foi afundado..
Ao que parecia Ikki, outro comerciante de tecidos e chá que vivia a competir com Shion pelos mercados de Londres, havia atacado sua frota perto das Falésias Brancas de Dover. Mandara atear fogo e afundar os navios e levara as mercadorias. O único que sobrara fora o Star Hill, uma pequena embarcação já bastante envelhecida que pertencera ao pai de Shion.
Além de ter perdido tudo, Shion tinha os empréstimos para pagar. Sem quitá-los não conseguiria dinheiro para financiar outra viagem. O pouco que lhe restava mal daria para as despesas menores. Em menos de dois minutos, todo o mundo que havia criado com anos de trabalho duro e dedicação havia desabado. E os escombros insistiam em ficar sobre ele, sufocando-o.
--Maldito! O que eu vou fazer agora? Minha família vai ser jogada na rua... meu nome arrastado na lama...
--Há um jeito, meu tio.
Radamanthys podia ser um completo irresponsável, mas não era um completo inútil. Ao perceber a situação em que a família que o sustentava encontrava-se, fora procurar uma solução. Era orgulhoso demais para cair na miséria.
--Jeito? Que jeito? Em duas semanas vencem os empréstimos e os Rothschild estarão batendo na minha porta. Minha casa mal dará para pagar a eles!
--Aqueles banqueiros miseráveis não vão perdoar, é verdade. Mas o senhor ainda tem algum guardado. Pode usar esse dinheiro para recuperar o que perdeu.
--Está falando de jogo? Se for isso desista, este pecado não vou levar em minha consciência.
--Que jogo, que nada tio! O Star Hill ainda está flutuando. Venda a casa, o escritório em Londres, use o dinheiro para restaurar o barco e vamos para a Índia. Homens pobres estão voltando mais ricos que nós. Dizem que é muito fácil fazer fortuna por lá.
--De fato, ouvi os comentários. Os sócios da Companhia costumam dizer que trabalhar por lá, comprando as mercadorias dos nativos e vendendo aos importadores é mais lucrativo do que vender diretamente aqui.
--É claro! Sem custos de viagem, sem risco de roubos. E com a vantagem de que deve ser muito fácil negociar com selvagens. Eles não sabem o verdadeiro valor de suas mercadorias. Vamos ficar ricos!
--Calma lá, Radamanthys. Essa é uma situação muito delicada. Lembre-se de que não posso deixar Saori e meu filho passando necessidade aqui. Se formos, vamos todos. Será uma mudança muito grande para nós. Outra terra, outros costumes. E ainda há a possibilidade de não conseguirmos nada. Preciso pensar...
--Não vá pensar demais. Quem pensa demais faz de menos, e morre de fome. Lembre-se de que o nome Heathcliff tem muito prestígio. Se vender tudo e quitar as dívidas antes de sua falência virar escândalo, ninguém vai questioná-lo por partir. Vai poder voltar algum dia e continuar a viver aqui como se nada tivesse acontecido. Agora, espere por um escândalo e veja como as pessoas o tratarão. Boas tardes, tio. Vou deixá-lo só para que tome a decisão certa.
Há muito tempo Radamanthys estava com a idéia de partir para a Índia. Todos os dias navios chegavam trazendo novos ricos de lá. Pessoas que haviam ganhado em poucos anos muito mais dinheiro do que Shion tivera em toda a vida. Se Ikki havia roubado seu tio e o deixado na miséria, forçando-o a tomar a decisão, tanto melhor para ele que veria seu intento realizado.
Saiu da sala deixando um Shion completamente desnorteado. O discurso recente do sobrinho reverberando em sua cabeça. Seria essa a única saída? Abandonar a terra que conhecia, seu lar, para correr atrás de uma aventura em um país distante que poderia acabar em tragédia? Shion ainda não sabia a resposta.
No final da semana a notícia do roubo dos navios de Shion havia se espalhado por boa parte de Londres, chegando a Casa Rothschild9. Os irmãos Bado e Shido Rothschild conseguiram ganhar em pouco tempo a fama de desalmados e interesseiros. Seriam capazes de negar um prato de comida ao próprio pai se lhes fosse conveniente.
Por isso, assim que souberam da triste e complicada situação em que Shion se encontrava, fizeram a gentileza de ir visitá-lo. Colocaram Shion contra a parede, lembrando-lhe do que aconteceria caso ele não honrasse a dívida que tinha com eles.
Ao final da visita, Shido planejava o leilão da casa e dos bens do comerciante e Bado estava convencido de que teria um novo escritório em Londres para dispor como bem quisesse. O dono da casa e do escritório, por sua vez, tinha a certeza de que o que mais desejava era um buraco bem fundo para se enterrar e fugir dos problemas.
Pensara seriamente na sugestão de Radamanthys, de partir para a Índia, tentar fortuna. Para sua surpresa, percebera que não havia nenhum motivo realmente forte que o fizesse permanecer na Inglaterra. Há muito trabalhava mais por obrigação que por gosto. Estava insatisfeito com sua vida.
Talvez esse problema acabasse por ser uma solução. Tinha a chance de ir embora e começar uma nova vida. A única desvantagem era ter que levar Saori consigo. Havia dias em que tinha muita vontade de esganá-la, de afogá-la no porto ou coisa parecida. Então se lembrava de que matar o próximo era um pecado grave e rezava pedindo perdão. De seu amor de juventude, a esposa passara a seu pior pesadelo.
--Com licença, senhor meu pai...
Lune sentara-se ao lado dele no sofá. Olhava-o com uma expressão preocupada. Sabia que havia algo errado. Outra das coisas estranhas que aconteciam com ele, podia saber exatamente o que as pessoas sentiam ao olhar nos olhos delas.
--O que faz aqui? – perguntou indiferente. – Não deveria estar rezando, com sua mãe?
--Ela foi dar as ordens para o jantar. O que acontece nesta casa, meu pai? Todos parecem preocupados, aflitos.
--Nada que possa ser de seu interesse. São problemas de adultos.
--Não sou mais uma criança. Posso ajudar, se for preciso.
--Também não é adulto. Vá achar alguma coisa útil para fazer, meu filho. O ócio só pode trazer o mal.
Shion passou as mãos pelo rosto. Como poderia deixar que seu filho fosse jogado na rua? Saori bem que merecia, mas o menino não tinha culpa de ter nascido em uma família como aquela. Lune era a única pessoa que lhe inspirava algum carinho.
Surpreendendo o pai, o garoto o abraçou. Um abraço terno e reconfortante. Shion não entendia como a mulher podia achar que um garoto tão carinhoso e doce poderia pertencer ao demônio.
--Eu lhe tenho muito amor, meu pai. Vou estar ao seu lado, sempre.
Mesmo recebendo somente disciplina e indiferença da parte de Shion, Lune o amava muito. Queria a todo custo que o pai fosse feliz. Sentiu que ele estava prestes a tomar uma decisão importante. Esperava que essa decisão lhe desse um pouco de alegria. Beijou-lhe a testa e deixou a sala, sorrindo.
Foi trancar-se no quarto e tentar ler alguma coisa antes da mãe terminar as ordens para o jantar e ir infernizá-lo antes da refeição. Adorava ler. Conseguira muitos livros com a ajuda de uma governanta que fazia as compras na cidade. Seu autor preferido era Shakespeare, adorava o modo como ele falava do amor.
--Amor... um dia ainda hei de conhecer o verdadeiro amor – murmurou para si mesmo. Uma frase lhe veio à mente: Eu sou o amor puro dos amantes, aquele que lei nenhuma pode separar. Parecia-lhe tão familiar como se ele próprio fosse o autor.
O jantar transcorria normalmente. A oração de graças pelo alimento fora feita, as empregadas serviam como sempre. O silêncio é que parecia mais pesado. A luz das velas que tremulavam sobre a mesa em nada contribuía para diminuir a tensão do ambiente. Foi Shion quem primeiro se manifestou.
--Tenho um assunto que preciso tratar com todos. Radamanthys já sabe e creio que todos devem saber.
--Prossiga, senhor meu marido – disse Saori, achando que não podia ser coisa boa pela expressão carregada do marido e do sobrinho.
--Estamos com sérios problemas financeiros. Os Rothschild vieram nos cobrar hoje pela manhã e não temos com que lhes pagar. Como também não temos para pagar conta nenhuma. Estamos falidos.
Os olhos de Saori se encheram de lágrimas. Não podia acreditar. Havia de ser castigo da Divina Providência pelos pecados daquela casa. Ela devia estar sendo castigada por manter sob seu teto um filho do demônio e não conseguir livrá-lo deste mal.
--Sendo assim – continuou Shion com seriedade – gostaria de comunicar a todos que estarei vendendo os poucos bens que ainda possuímos. E que partiremos para as Índias assim que nossa situação financeira estiver resolvida.
--Índias? O senhor pode me dizer o que vamos fazer naquele lugar abandonado por Deus?
Saori ficou possessa. Ouvira suas amigas contando horrores daquele lar de selvagens que não temiam a Deus e tinham costumes estranhos e maléficos.
--Vamos começar de novo. Muitos homens pobres já fizeram fortuna naquele lugar.
--E por que não o Novo Mundo?
--Oras, tia! Que futuro teríamos no Novo Mundo? Trabalhar feito condenados para não ganhar nada mais que um pedaço de terra. Na Índia é muito mais fácil. Para meu tio, que entende de comércio, é um lugar de futuro abençoado.
--Vamos para a Índia e está decidido. Se bem me lembro, uma boa esposa não questiona as decisões de seu marido, não é minha cara?
Sua expressão carregada de sarcasmo fez Saori encolher-se na cadeira e continuar o jantar, engolindo sua raiva junto com a sopa. Em certas ocasiões arrependia-se de ter sido tão fria com o marido. Sentia falta dos mimos, das palavras de amor, dos cuidados que ele tinha com ela no início do casamento. Uma boa mulher não deve pensar assim, lembrava-se, deve rezar. Reze Saori. Reze e Deus irá perdoar seus pecados.
Lune sorria sozinho, arrumando as malas. Sentia uma alegria fora do comum desde que soubera que partiriam para a Índia. Aquele nome lhe trazia lembranças agradáveis. Era como se estivesse indo para casa. Juntou seus tesouros com cuidado. O pequeno que espelho que viera da Índia, os livros de Shakespeare, tudo muito bem escondido entre as roupas para que a mãe não encontrasse.
Saori estava muito mais insuportável que de costume. Ir viver em um país de selvagens pecadores que, para ela, eram todos servos do demônio não era nem de longe algo que ela desejava. Para não perder o hábito, descontou a raiva em Lune. Fazia-o rezar ajoelhado em grãos de milho quase o dia todo.
Ele não reclamava. Estava radiante por dentro. Não que a idéia de ficar trancado em um pequeno barco à vela com Saori e Radamanthys lhe agradasse muito. A mãe teria as vinte e quatro horas do dia para colocá-lo para rezar sem ter de cuidar dos afazeres da casa, sem poder ir aos cultos na congregação, sem ter empregamos para mandar e pecadores para converter. E a simples presença do primo lhe dava engulhos. Sentia-se mal na presença de Radamanthys, como se ele desejasse matá-lo só por sentir que ele estava vivo.
Esse também estava difícil de agüentar. Só depois que soubera que teria de passar cinco meses trancado em um barco sem mulher nenhuma é que se deu conta da besteira que tinha feito ao convencer o tio a ir para a Índia. Como renomado cafajeste, não conseguia viver sem mulher, apesar da religião que "seguia" condenar esse tipo de prática fora do casamento.
Shion conseguiu resolver tudo com uma rapidez impressionante. Vendera a casa, o escritório que tinha em Londres, pagara as contas e ainda lhe sobrara uma boa soma para reformar o barco e começar uma vida nova na Índia. O Star Hill ficara magnífico. Uma pequena e confortável casa flutuante, seria perfeita se não fosse a necessidade de ter cuidado com a água para que ela não faltasse.
Levaria consigo uma carta do presidente da Companhia Inglesa das Índias Orientais que o recomendava ao seu representante em Calcutá, pedindo que o ajudasse a se instalar e iniciar suas atividades comerciais como membro da Companhia que era.
Não queria se encher de esperança. Esperança era coisa de sua juventude, que queria esquecer. Contudo, não conseguia evitar. Assim como Lune, sentia que estava indo cumprir seu destino. Começava a acreditar, sem ter essa intenção, que talvez ainda houvesse felicidade para ele.
"Faminto por vitória, faminto por amor
Amor pela terra que me fez seu filho
Forte e invencível servindo a minha vontade
Vá agora e cavalgue lá onde os dragões voam."10
O garoto de cabelos cor de lavanda ouvia a canção dos marinheiros, fascinado. Uma pequena melodia que o capitão havia aprendido com um monge tibetano e ensinado a seus homens. Era parte de uma profecia que dizia que no lugar onde os dragões voam nasceria a esperança dos homens, então a vitória e o amor seriam dados a todos aqueles a quem a terra fizera seus filhos.
O garoto havia feito amizade com o velho capitão. Chamava-se Julian Solo e passara toda a sua vida no mar, viajando das Índias para a Inglaterra e vice-e-versa. Conhecia o oceano como se fosse a palma de sua mão. Também conhecia as estrelas e ensinara a Lune a navegar seguindo as constelações.
A brisa levemente salgada do mar lhe trazia o gosto da liberdade. Saori passava o dia trancada, tinha pavor ao sol, aos homens espalhados no convés e tinha enjôos terríveis que não lhe deixavam forças para atormentar o filho.
Shion e Radamanthys faziam planos para quando chegassem. Na última hora antes da viagem, Nachi, um importante parlamentar da Câmara dos Comuns11, aparecera no porto com um presente para seu velho amigo. Dera a Shion o título de uma propriedade pertencente à coroa. Estava abandonada há muitos anos e seria útil a Shion.
Segundo Nachi, era composta de uma bela casa com jardins e uma grande área de cultivo de chá. Ficava a poucas horas de Calcutá, o que facilitaria inclusive seu trabalho na cidade. Ele ficou muito agradecido. Iria, sim reformar a casa, e com o dinheiro que sobrasse começaria a comprar e revender mercadorias.
No convés, Lune conversava animado com Julian, que segurava o leme com firmeza. O céu estava claro, fazia um dia muito bonito. Os cabelos cor de lavanda de Lune esvoaçavam com o vento que soprava movendo as velas. O sol batia-lhe no rosto, ressaltando o tom azulado de sua pele, deixando-o ainda mais bonito.
--Vai gostar da Índia, garoto. É um belo lugar apesar da pobreza da maioria das pessoas. Se você souber respeitar a cultura deles não vai demorar a se habituar.
--Sim. Acho que vou gostar muito de lá. O que é isso? – perguntou vendo o que parecia ser um colar de contas castanhas envolto no pulso direito de Julian.
--Um mala12. Uma rosário de contas usado em muitas religiões indianas. Esse é um rosário de Vishnu, possui 108 contas. Servem para marcar o número de repetições dos mantras. Mantra é uma espécie de oração para eles.
--É muito bonito. Parece-me familiar.
--Os católicos usam algo parecido, que chamam de terço.
--Não... não é dos católicos. É de outro lugar. E esse nome... Vishnu. É ele que preserva a criação, para que nenhum mal aconteça a ela. Mas às vezes Vishnu não consegue vigiar a tudo e o mal surge. Então Shiva aparece e destrói tudo com as chamas, para que Brahma possa reconstruir o mundo sem o mal. As chamas do nascer do sol são as chamas de Shiva destruindo o mundo. E a claridade que vem logo depois é o sinal de Brahma de que está tudo bem e Vishnu pode começar o seu trabalho.
Fitava o horizonte como se lembrasse de coisas que não deveria ter esquecido. Julian olhou para ele espantado. O capitão era budista há mais de vinte anos. Certa vez um monge viajara com ele, lhe explicara sua filosofia e lhe dera o rosário. Dissera que deveria entregá-lo a seu dono, que conheceria na hora certa. Tirou o rosário do braço e estendeu a Lune, sorrindo. Sua intuição dizia que era ele o dono do objeto.
--Pode ficar com ele. Sua mãe vai ficar furiosa comigo, ela parece ser muito religiosa e vai pensar que é coisa do demônio, mas...
--Para ela tudo é coisa do demônio – disse voltando a si.
--Bem, ofereço o presente se você quiser aceitar.
--Obrigado. Fico muito grato – pegou o rosário e escondeu no bolso do colete. – Posso fazer uma pergunta?
--À vontade.
--O que significa "OM MANI PADME HUM"?
--Onde ouviu essas palavras?
--Nos meus sonhos. Conheço elas desde pequeno.
--É sânscrito; uma língua sagrada. Quer dizer "Da Lama Nasce a Flor do Lótus". Apesar de termos um corpo físico que limita nossos poderes, nós trazemos uma essência divina no coração. Assim, como a flor do lótus que nasce no lodo e desabrocha branca e resplandecente, também nós podemos nos tornar puros de alma e coração. É um mantra de paz e conforto, que ajuda a alcançar a iluminação13.
--Lótus é aquela flor que nasce nas margens dos rios na Índia, não é?
--Como você sabe de tudo isso?
-- Não sei. São como lembranças de... de outra vida. Sei que parece coisa de quem não está em seu juízo perfeito.
-- Talvez sejam. O povo indiano acredita que as pessoas voltam para terra por diversas vidas, até conseguirem se libertar. É o que chamam de Ciclo das Existências14.
Retirou o rosário do bolso e pôs-se a olhar para ele. Conhecia aqueles símbolos. Seu olhar voltou a perder-se no horizonte.
--Essa concha. É um dos símbolos de Vishnu, significa a remoção da ignorância e a música do Cosmos. As pedras devem ser granadas, alguns templos acreditam ser esta a pedra de Vishnu, pois simboliza o amor e a constância. Os lótus em baixo relevo em cada uma das 108 contas representam a pureza, a beleza do Universo e a transformação15.
Passava as contas pelos dedos reconhecendo que eram feitas de Granada. Todas incrivelmente redondas e uniformes. Sorria, aquele objeto parecia sempre ter sido seu.
--Obrigado, Julian. Foi um dos melhores presentes que já ganhei. Pode ter certeza que vou cuidar bem deste rosário.
O sol ia se pôr em breve. O garoto voltou para o quarto, decidido a fazer algo corretamente pela primeira vez. Trancou a porta para que Saori não o interrompesse, sentou no chão em posição de lótus, como sempre aparecia em suas lembranças, tomou o rosário entre as mãos e começou a recitar o mantra, usando as contas para marcar as repetições. Aquelas eram suas orações, suas crenças, sua religião.
O garoto inglês que sabia não pertencer à Inglaterra descobriria ainda muitas coisas em durante a longa viagem. Quanto mais Star Hill se aproximava da Índia, mais claras ficavam suas lembranças. Tinha a certeza de que seu destino estava começando a se cumprir.
Notas:
1- Hinayana é uma palavra em sânscrito, a língua sagrada do Budismo e do Hinduísmo, que significa literalmente "pequeno veículo" ou "pequeno caminho". É o nome da mais antiga escola do Budismo, também chamada Budismo Theravāda. Na fic Hinayana vai ter outro significado, que vai ser explicado mais pra frente, mas não tem nada a ver com essa escola Budista de onde derivou o nome.
2- Os Templos Gêmeos são invenções minhas. A religião que eles seguem também foi criada por mim, baseada em várias outras religiões, principalmente o Budismo e o Hinduísmo.
3- A Trimurte, Divina Trindade, constituída por Brahma, Vishnu e Shiva, pertence ao Hinduísmo. Por ser uma religião muito complicada, da qual se conseguem poucas informações em português, o Hinduísmo vai ser tratado apenas superficialmente. Se alguém quiser mais informações pode pedir que eu mando por e-mail.
4- Dharma é um termo budista que se refere ao conjunto dos ensinamentos de Buddha. Também pode ser entendido como a natureza divina e pode ser adquirido através do seguimento da filosofia budista. Aqui decidi adotar o termo como sinônimo de equilíbrio, a ordem natural do mundo.
5- O nome Heathcliff pertence a um personagem do livro "O morro dos ventos uivantes", de Emily Brontë, que eu adoro de paixão.
6- Como o Lune ainda não apareceu no anime e eu não conheço muito sobre ele, decidi adotar o cabelo dele dessa cor, lavanda, por causa de uma imagem que achei assim.
7- A Companhia Inglesa das Índias Orientais foi criada em 1600 e manteve-se como uma espécie de governo na Índia até 1858. Em 1690 fundou a cidade de Calcutá.
8- A principal religião da Inglaterra é o Anglicanismo, ou Igreja da Inglaterra, fundada pelo rei Henrique VIII, em 1534. Além da Bíblia, essa religião possui o chamado Livro de Orações Comum, que tem todas as preces que eles fazem. Saori e toda a família seguem essa religião, e é desse livrinho que ela tá falando.
9- A Casa Rothschild é um banco inglês que realmente existiu e já no século XIX era o maior estabelecimento bancário da Europa. Não encontrei quase nada em português, então peço desculpas caso esse banco tenha sido fundado depois da época a que a fic se refere.
10- Tradução de uma estrofe da música Where Dragons Fly, do Rhapsody. O original em inglês é: Hungry for victory, hungry for love / Love for the earth that made me her son / Strong and invincible serving my cry / Go now and ride there where dragons fly.
11- Uma das duas câmaras em que se divide o Parlamento do Reino Unido. A outra é a Câmara dos Lordes.
12- Mala é o típico rosário de contas usado pelos indianos e por outras religiões orientais, pode ter 108, 54 ou 27 contas. O hindu é geralmente feito de Tulassi, uma madeira considerada sagrada (a mesma dos pauzinhos dos incensos), mas pode variar de acordo com a região e as crenças pessoais.
13- OM MANI PADME HUM é um mantra tanto budista, como hindu e também usado pelos praticantes de Yoga, na meditação. Quer dizer exatamente "Da lama nasce a flor de lótus" e a explicação que o Julian deu foi a que eu achei na maioria das fontes onde pesquisei.
14- Ciclo das Existências ou Sansara é uma crença budista, na qual todas as almas retornam a terra até se purificarem e alcançarem a Iluminação, quando elas se dissolvem no Nirvana, o Nada Inicial.
15- A concha realmente é um símbolo de Vishnu e significa a remoção da ignorância e a música do Cosmos. A historinha das granadas fui eu que inventei, com base no significado que essas pedras tem, mas elas não tem relação com Vishnu. A lótus representa a pureza, a beleza e a transformação, mas não costuma ser gravadas nas contas dos malas.
Desculpem se eu esqueci de alguma coisa. A título de aviso pra quem não gosta de começar a ler uma fic e depois ver ela abandonada pela autora, essa fic já tá concluída e vai ser atualizada todo o sábado, a menos que Milo (meu pc) tenha um ataque e pare de funcionar. Espero que gostem do meu bebê! Reviews são sempre bem vindas! Façam uma escritora feliz e comentem
Bjinhos da tia Bella!
