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Você pode mudar de casa, de preferência política, de rosto, de nome. Algumas coisas, no entanto, estão tão arraigadas que é difícil evitá-las.

Você saia pouco de casa, e as outras crianças não gostavam de você. O esquisito, o estranho, o magrelo Harry Potter. Naquela época, você era nada, ninguém de especial. Um pária, e por isso mesmo é tão difícil para mim entender porque você se incomoda tanto.

Mamãe não gostava que você saísse muito, mas o serviço dominical era uma obrigação, então você ia junto. Eu lembro daquele domingo, daquela homilia, pois o escândalo continuou repercutindo em Little Whitening muito depois de você ter ido embora. O rapaz da Magnolia Crescent, que morreu de AIDS, pouco antes do casar com uma moça "de família". Ninguém tinha jamais desconfiado que ele gostasse de rapazes, dizem até hoje. O estigma, eu lembro dele, e do discurso feroz do padre condenando aquele pecado.

Isso te afetou profundamente, não foi? Gravou em seu coração, a ferro e fogo, as palavras do antigo testamento, "não vos deitarás com homem como se mulher fosse, pois isto é a abominação", ou coisa parecida.

Nunca foi um problema para mim, Harry. Mas meu filho nasceu como vocês, e nos reaproximamos (melhor seria dizer, aproximamos). Eu notei, aquela vez que encontramos com Malfoy, o segredo e a vergonha em seus olhos. A culpa, ao rever sua futura esposa, e a dificuldade que era trocar aqueles cumprimentos formais enquanto outras coisas passavam em sua mente.

Não sei de verdade como as coisas são entre vocês, bruxos, mas não me parecem se importar com essas questões. Não entendo toda essa culpa, toda a mentira. São só aquelas palavras, repercutindo no fundo de sua mente? Levíticus, de novo e de novo, como um disco arranhado?

São apenas palavras, Harry, escritas por homens. Parte de uma religião ao qual você não pertence, que você não segue. Parte de uma história que nunca poderia te aprovar, pois não deixarás viver a feiticeira. Então, o quanto importa se eles recriminariam seu amor? Melhor viver infeliz e iludindo os outros, do que desafiar? Você sempre foi um pária entre nós, e sempre será o herói deles, ame quem amar.

Estou dizendo tudo isso porque recebi o convite, e não poderia mais ignorar. Eu sei que você vai dizer que ama a garota, e eu sei que a ama, mas não desta forma, e isso é bastante óbvio para qualquer um que não esteja tão apaixonado por ti que mal consiga notar na existência do resto do mundo, como ela. Se você a ama, Harry, não deve magoá-la desta forma.

Claro que nem desconfio de qual seria a reação do tal Malfoy, mas é melhor ter tentado do que se perguntar eternamente. Não faça isso com você mesmo. Não faça isso com ela, ou com ele.

Não deixe frases milenares impedirem sua felicidade, pois você a merece, depois de tudo que passou.

Diga a verdade a eles, Harry.

Ao menos uma vez.

N/A: Para Jã e Sarah, com amor, S2.