Disclaimer: "King of Fighters" não me pertence, e essa história não tem fins lucrativos.


Tempestade

- Iori, pare com isso.

- Parar? Parar com o quê?

O homem ruivo andava freneticamente pelo quarto, num trajeto curto mas que parecia infinito, pegando roupas que estavam dentro do armário e jogando-as dentro de uma bolsa de viagem. Sua expressão era de ódio, algo quase maníaco. Uma faceta que Kyo Kusanagi já conhecia, mas que há tempos não via. E agora, mal consegui acreditar.

- De pensar bobagens, de ver coisas que não existem.

- Não existem? Não existem? – repetiu, com incredulidade - Que diabos você é, Kyo? Cego? Vai me dizer que não viu? Só um cego não veria aquilo!

O moreno fechou os olhos e respirou fundo, perguntando para si mesmo o que tinha feito para merecer tamanho castigo. Sim, só podia ser castigo.

- Não aconteceu nada, Iori! Está imaginando coisas!

- Ele estava olhando pra você! O K' estava te comendo com os olhos! Ele sempre te cantou e você nunca fez nada! Você não me respeita mesmo...

- Isso é o que você quer pensar!

A resposta de Iori foi bem simples. Agarrou o braço do mais baixo, prendendo seu corpo contra a parede e machucando-o com as unhas finas. Estavam tão próximos que o moreno podia sentir o hálito de seu companheiro, mas agora ele simplesmente emanava cinismo e rancor. Exatamente do jeito como o conhecera.

- Ao contrário, Kyo. Eu acredito naquilo que meus olhos me mostram, e eu vi. Vi o K' te comendo com os olhos e você aceitando tudo. Você queria é que ele te comesse, miserável. Eu não sou o suficiente pra você.

As palavras raivosas de Iori tiraram Kyo do estado de aparente calma de quem tentava se defender. Sentiu seu sangue quase ferver, de modo que ignorou a dor em seus braços. Por instinto, seu corpo se retesou e seus pulsos se ergueram num gesto de defesa, desfazendo aquele contato forçado, ou ao menos tentando se defender.

- Quer dizer que é isso? Eu sou um puto?

- Deixe de se fazer de inocente, você não me engana...

Os olhos de Kyo marejaram com aquelas palavras, mas Yagami não teve tempo de perceber isso. Afastou-se bruscamente do rapaz menor, fechando a bolsa de viagem que estava sobre a cama e jogou-a contra ele, que agarrou-a por puro reflexo.

- Acabou. Eu não quero mais um Kusanagi na minha casa. Foi um erro.

Novamente agarrou o braço do rapaz e praticamente o arrastou até a porta, dali jogou-o para fora, batendo a porta em seguida. Não reparou que o céu estava cinza, quase negro.

Kyo também não tomou conhecimento do tempo, mesmo que o simples aroma denunciasse a tempestade iminente. Aquilo não importava.

Abaixou-se e pegou a mochila que tinha caído no chão pela força com que Iori o empurrou. Jogou-a no ombro e saiu dali rapidamente. Não se permitiu mais que alguns segundos. Não queria mais ficar ali.

A medida em que ficava mais distante da casa de Yagami, seus passos se tornavam lentos, mas automáticos. Não havia raciocínio naquilo. O caminho que percorria era familiar, mas não houve reconhecimento, apenas deixou-se levar sabendo que ia parar em seu apartamento. Se estivesse de moto, levaria meia hora mas aquele não era o caso. Sua moto estava na oficina, de modo que demoraria muito para chegar. Se chovesse, estaria no meio do caminho... mas nada que lhe fizesse diferença.

Mal sentiu os primeiros pingos em suas costas. Os fios de cabelo, pouco a pouco começaram a ficar úmidos. A roupa começou a colar em seu corpo. Os tênis fazendo um barulho irritante. As poças d'água tomaram conta da calçada.

Frio... sentia o vento gelado quase queimando sua pele. Sabia que não era sensato andar naquela chuva, que deveria procurar uma marquise ou toldo para se proteger... mas sensatez não era o que estava procurando. E de qualquer modo já estava encharcado. Não havia razão para evitar aquela água, então simplesmente continuou andando.

Ainda demorou para que se visse em frente ao prédio, e em vez de alívio ou satisfação, apenas deixou que um som de muxoxo escapasse de seus lábios.

Entrou pela área de serviço, evitando o hall de entrada para não molhar o piso e causar acidentes. Do mesmo modo, usou o elevador dos empregados. O risco de blecaute era muito alto, mas antes ficar preso em um elevador que cair das escadas.

Sem demora já estava em seu apartamento. E bastou ver-se protegido pelas paredes para sentir todo o cansaço daquele trajeto. Subitamente, seu corpo parecia pesar uma tonelada... mas não se importou. Julgava ser devido ao longo tempo que andou para chegar até ali.

Sua vontade era cair no lugar mais próximo e ali ficar, exatamente do jeito que estava. Quase fez isso, mas os ímpetos de ex-atleta falaram mais alto. Precisava secar-se logo ou poderia esperar no mínimo um belo resfriado, afinal estivera na chuva pouco mais de uma hora seguida... mas por que andar estava sendo tão difícil?

Decidido a reagir, tirou o celular e o que mais poderia haver dentro do bolso de sua calça, colocando os objetos sobre a mesinha de centro. Objetos encharcados pela chuva que tomou, que talvez não servissem mais pra nada, pelo menos no caso do telefone. Quanto a mala, simplesmente soltou-a, deixando-a cair no chão. Pouco importava se ali teria uma poça d'água mais tarde.

Quase arrastando-se, decidiu ir para o quarto, pegar uma toalha. Pelo que se lembrava, ainda havia uma coisa ou outra no apartamento: uma toalha, um lençol, muda de roupa seca... talvez um pacote de macarrão instantâneo esquecido pelo tempo. O suficiente para passar a primeira noite. E além disso não teria a preocupação de fazer limpeza ou algo assim. O lugar não estava sujo, o que seria uma preocupação a menos.

Estava quase chegando ao quarto quando ouviu o toque de seu celular. Foi um susto, afinal chegara a pensar que ele havia estragado por causa da água. Passado seu instante de surpresa, o que veio a sua mente foi o desejo de ignorar aquele som irritante. Até poderia, mas imaginava que, fosse quem fosse, não desistiria tão facilmente. Apenas uma premonição de quem parecia acostumado à Lei de Murphy.

Deu meia volta e voltou para a sala. A medida em que ficava mais perto do cômodo, o toque parecia mais alto, fazendo com que o moreno se amaldiçoasse a cada segundo.

Abaixou-se e pegou o aparelho. No visor, conferiu o nome de quem tinha resolvido tirar uma hora para inferniza-lo.

"Beni..." era seu amigo escandaloso quem havia resolvido dar o ar da graça. Estava decidido a não atender, então com apenas dois toques o som cessou. E quando estava prestes a deixar aquilo de lado, o aparelho voltou a tocar.

"Droga!" resmungou. Respirou fundo, como numa preparação psicológica. Não era irreal, afinal Benimaru não era a pessoa mais fácil do mundo de se lidar, não que tivesse um gênio difícil, mas porque era excêntrico demais, quase histérico. Um bom amigo, mas que sabia ser muito inconveniente.

Apertou o botão e colocou o aparelho no ouvido.

- O que foi, Beni?

- Nossa! Mas que mal humor, hein? O que foi? O teu ruivo dormiu de calça jeans?

- Será que dá pra dizer logo o que quer?

- Credo, eu só queria saber se você pode me emprestar aquele...

Kyo não entendeu, era como se seu raciocínio estivesse em outro lugar. Ouvia a voz de seu amigo, mas não compreendia aquelas palavras.

- Ei, Kyo? Está me ouvindo?

- Hã? Sim, sim, estou ouvindo.

- Está? Então o que foi que eu te pedi?

- O que? – perguntou, indignado – Por que essa pergunta idiota?

- Porque tenho a certeza de que não está me ouvindo. E então? O que foi que eu te pedi?

Silêncio.

- Kyo! Kyo! – a voz alta do outro lado acabou despertando o moreno, que parecia confuso demais – Está me ouvindo?

- Estou ouvindo sim, Beni. Desculpe... o que estava falando mesmo?

- Você está bem? Aconteceu alguma coisa?

- Está tudo bem. Só estou cansado.

- Não parece. Não está ouvindo nada o que eu digo. Está sozinho? Tem aí com você?

- Não tem ninguém aqui.

- Nem a sua fera? Quer dizer que ele te soltou...?

- Mais ou menos isso. – respondeu, com a voz fraca.

- Onde você está?

Silêncio. Em seguida um barulho estranho, semelhante a um baque surdo, algo pesado caindo. Kyo não sentiu o impacto de seu corpo no chão. Apenas havia se sentido tonto e fechou os olhos, numa tentativa vã de fazer sua visão voltar ao foco. Sequer ouviu que seu amigo agora gritava no telefone, chamando-o.

Tudo parecia longe demais. Apenas deixou-se levar.