Capítulo 1
8 de Junho de 793 — Konoha, Nortúmbria
Sakura apertou os lábios, tentando não mover a cabeça enquanto a criada trançava seus cabelos. O que ela esperava, afinal? Que seu tio, o abade do Mosteiro de St. Cuthbert, lhe desse dinheiro para lutar contra seu padrasto? A única alternativa que ele havia sugerido foi a igreja. Ela poderia ter uma boa posição, contanto que levasse seu dote consigo.
— Milady, vai ser mais rápido se inclinar ligeiramente a cabeça para este lado.
Sakura estudou a parede da casa de hóspedes de St. Cuthbert, com um mural de Maria ajoelhada ao pé da cruz, e procurou se concentrar.
Fora um erro ter ido até ali. A conversa da noite anterior ainda ecoava em seus ouvidos. Seu tio se recusara a ouvir seus argumentos. Por que ela imaginara que seria de outro modo, Sakura não sabia.
Ela iria embora do mosteiro e da ilha no dia seguinte, na maré baixa, quando era possível atravessar a ponte, decidiu. Teria de voltar para casa em Birdoswald, às margens do rio Irthing, no oeste de Nortúmbria. E encarar o futuro sozinha.
— Está bom, milady?
Sua nova criada, Anko, terminou de fazer a trança e estendeu-lhe um espelho de mão. Sakura olhou rapidamente para o seu reflexo. Os cabelos rosados que antes lhe caíam ao lado do rosto tinham se transformado em duas graciosas tranças. Seu cabelo era o que ela considerava seu traço mais belo e atraente, embora um pouco rebelde demais para o seu gosto, mas ainda assim único. Anko sabia o que estava fazendo, Sakura reconhecia isso, mas relutava em confiar nela.
Anko era uma marionete de seu padrasto. Só podia ser. Ele havia ordenado que todas as criadas, mesmo as mais antigas, fossem substituídas depois que seu marido morrera, e ela retornara às terras da família. Não havia desculpa para ela continuar morando com a família de Selwyn. Ela não tinha filhos, e sua cunhada nunca gostara dela. Então Sakura voltara, esperando uma recepção mais calorosa, e descobrira que o padrasto havia assumido firmemente o controle das terras da família.
— Em breve começarão os preparativos para seu noivado.
— Se for a vontade de Deus... — Sakura colocou o espelhinho sobre a penteadeira e forçou-se a manter uma expressão suave. Não tinha intenção de se casar com o filho de seu padrasto, o abominável Sasori, com suas mãos sempre úmidas e modos desagradáveis. Tampouco pretendia ir para um convento, como o tio havia sugerido. Tinha de haver algum outro jeito.
— Terá de se casar um dia, milady. Sasori é um rapaz... — Mildreth calou-se e sua expressão ficou consternada. — Senhora, não posso mentir. Gosto da senhora. Sasori é um terror. Todas as criadas morrem de medo dele. Não querem ficar sozinhas com ele nem por um minuto. Por favor, não comente com ninguém.
Sakura segurou a mão de Anko. Um leve rubor coloriu as faces da moça, fazendo-a parecer quase bonita. Sakura sentiu uma alegria como há muito não sentia. Sua viagem até Konoha não tinha sido em vão. Ela havia encontrado uma aliada.
— Temos a mesma opinião sobre Sasori.
— Disseram que a senhora era bondosa, milady, e é mesmo.
— De qualquer forma, é cedo demais para falar de casamento. — Sakura ajeitou a gola do vestido. — Meu marido ainda nem esfriou na sepultura, coitado. Haverá muito tempo para pensar em casamento depois que terminar o período de luto. Vim para cá para pedir conselhos ao meu tio, e agora que já os tenho vou voltar para casa.
— Como achar melhor, milady.
Um súbito e frenético toque de sinos ressoou no aposento, abafando qualquer pensamento ou voz. Cada fibra do corpo de Sakura ficou tensa.
— Vamos ser atacadas! — Anko retorceu as mãos. — Assassinadas, em nossas camas!
Sakura forçou-se a soltar o ar. Apesar da crescente estridência dos sinos, ela precisava manter-se calma. Poderia ser outra coisa. Entrar em pânico não ajudaria em nada.
— Atacadas? Anko, não deixe que seus medos tomem conta de você. Quem se atreveria a atacar este lugar? — Sakura forçou-se a falar em um tom de voz normal. Ela não tinha certeza se estava tentando convencer a criada ou a si mesma. — Os sinos podem estar tocando por outro motivo. Algum peregrino pode ter calculado mal a maré e estar preso na ponte.
Anko deu um sorriso trêmulo e encolheu-se quando os sinos repicaram mais alto. Sakura rezou em silêncio para que aquilo não significasse nada grave. Quem se arriscaria à condenação eterna atacando um dos locais mais sagrados e eruditos da Nortúmbria, se não de toda a Europa?
A proteção que aquele lugar oferecia era o motivo pelo qual sua família tinha preferido confiar a maior parte de sua riqueza aos monges em vez de guardá-la em cofres em suas propriedades. A grande maioria dos proprietários de terras na Nortúmbria tinha esse hábito, muito eficaz para garantir a segurança de suas posses.
Então, tão repentinamente quanto haviam começado a tocar, os sinos pararam, dando lugar a um silêncio ensurdecedor.
— Não há de ser nada. — A voz de Sakura soou alta, ecoando nas paredes de madeira. — Pode ser algum navio que encalhou e um dos monges entrou em pânico. Meu tio disse que alguns dos monges noviços se agitam com qualquer coisa. Seja o que for, já deve estar resolvido.
— Deus queira, milady.
Anko assentiu com a cabeça, mas seu semblante estava nitidamente apreensivo. Sakura estendeu a mão e pousou-a sobre a de Anko.
— Vai ficar tudo bem. — Ela tranquilizou a moça. — Estamos em um lugar de Deus. Ele irá nos proteger.
— Tem havido alguns sinais — disse Anko, e em seguida baixou a voz para um sussurro. — Um dos monges disse que viu dragões voando em frente à lua. E fogueiras estranhas à noite. E redemoinhos de vento no céu. Punições para os nossos pecados! Ontem mesmo eles estavam falando disso, no refeitório.
— Eles contam essas histórias para assustar vocês, tenho certeza. — Sakura deu uma risada tensa. — Por São Miguel Arcanjo, depois da colheita ninguém mais vai se lembrar de nada disso. É assim que as coisas são.
Sakura levantou-se e atravessou rapidamente o quarto até a pequena janela que tinha vista para o mar. No dia anterior, ela admirara a visão da areia amarela brilhante e do mar cintilante, pontilhado por apenas algumas esparsas embarcações de pescadores. Agora, o panorama era bem diferente.
— Talvez eu tenha me enganado, Anko. Parece que o mosteiro tem visitas, sim. — Ela se esforçou para afastar o pânico crescente na voz. Não devia tirar conclusões precipitadas. Era muito impaciente, sua imaginação era fértil demais (bem, pelo menos fora o que seu tio dissera várias vezes nos últimos dias).
O sol da manhã lançava raios dourados na água, mas o mar já não estava vazio. Três navios com serpentes esculpidas na proa, escudos redondos nas laterais e velas listradas de vermelho e branco alinhavam-se na baía rasa. Um deles já estava com a proa sobre a faixa de areia, os outros dois vinham logo atrás.
Conforme Sakura observava, um grupo de guerreiros desembarcou do primeiro navio e avançou com certa dificuldade através das ondas em direção à praia. Estavam vestidos com calças e cota de malha, e carregavam seus elmos e escudos redondos. Havia uma aura de selvageria ao redor deles. Eram homens rudes, pagãos, corsários.
Sakura debruçou-se no parapeito para ver melhor. O líder tinha cabelos escuros que chegavam à altura dos ombros e barba crescida de vários dias. Um desenho intrincado de uma serpente lutando com uma fera cobria seu escudo. Os homens que o seguiam eram variações entre um homem com aspecto de brutamontes de cabelo esvoaçante e barba, que vinha logo atrás dele, até uma versão mais esguia e loira do líder.
Ele olhou para a janela, e seu olhar surpreendentemente negro fixou-se no de Sakura por um segundo. Um ligeiro sorriso curvou-lhe os lábios conforme ele se virava para cumprimentar o grupo que saía do mosteiro ao encontro deles. Sakura levou uma mão ao pescoço.
Será que ele a tinha visto?
Seu tio estava à frente do grupo, com sua batina branca, mais alto que os outros, porém não tão alto quanto o líder viking, com um ar de autoconfiança e comando. Sakura deu um meio-sorriso. Preocupara-se sem motivo. As habilidades diplomáticas de seu tio eram conhecidas por toda a Nortúmbria e Mércia. Ela tinha certeza de que ele lidaria bem com aqueles guerreiros.
Seu tio estendeu a mão para ser beijada, conforme a tradição. O viking ignorou o gesto e inclinou a cabeça antes de entregar uma pequena tábua a ele.
Sakura viu o tio empalidecer de repente e percebeu que a mão dele tremia.
O que aqueles bárbaros queriam?
Sasuke Uchiha olhou com expressão de incredulidade para o rosto de traços finos e bonitos do abade. Ele havia mostrado a tábua ao homem mais velho, e ela era bastante específica. Ele deixara isso claro, fazendo questão de lê-la depois que o escriba de Orochimaru, o Escocês, escrevera a solicitação. E ele mesmo havia colocado o selo de Orochimaru na tábua.
O acordo dizia respeito ao recolhimento de moedas de ouro que, legalmente, pertenciam aos vikings. Se eles pudessem negociar ou providenciar alguma medida de proteção enquanto estivessem ali, tanto melhor. Mas ninguém os enganaria.
Aquela viagem marítima de verão estava se mostrando consideravelmente lucrativa. O novo projeto arquitetônico dos navios era eficaz, as embarcações deslizavam melhor na superfície do oceano, aumentando a velocidade. Os escoceses almejavam os casacos de pele grossa e as contas de âmbar dos vikings.
Só faltava aquela transação para concluir. Depois eles navegariam de volta para casa, com toda a dignidade.
— Viemos buscar o dinheiro que Orochimaru, o Escocês, nos deve.
O abade ergueu uma sobrancelha.
— Estou surpreso de ver um nórdico falando latim.
— Somos mercadores. Aprendemos os idiomas conforme é necessário. — O olhar de Sasuke estava fixo em algum ponto acima do ombro do abade. Não havia necessidade de contar a história de sua vida, não ainda. Talvez o fizesse mais tarde, quando as negociações estivessem completas e eles estivessem desfrutando uma caneca de hidromel.
Ele ergueu as mãos, com as palmas viradas para cima. — Viemos em paz. Só queremos o que nos foi prometido.
— Como posso saber se esta tábua é genuína?
— Não teríamos nos deslocado até aqui se não fosse.
— Ouvi falar de ataques de gente como vocês a fazendas indefesas.
— Trata-se de outros mercadores. Não nós. Viemos negociar, não guerrear.
Sasuke estava feliz por seu meio-irmão, Gaara, e principalmente o chefe de seus remadores, Kisame, não entenderem latim. Já fora bastante difícil convencer Kisame de que eles deveriam tentar uma negociação pacífica. Havia grande potencial de boas tratativas com a Nortúmbria, mas havia perigos também. O povo da Nortúmbria era conhecido por suas habilidades de luta.
Sasuke olhou para o guerreiro corpulento de pé ao seu lado. Muitos julgavam que o lugar ideal para Kisame era dentro do navio, mas ele o queria ali, para o caso de haver algum problema.
Kisame enrijeceu e suas narinas dilataram. O que seu velho amigo estaria pressentindo? Haveria valquírias na brisa amena que soprava? Sasuke descartou o pensamento fantasioso.
— Viemos em paz — repetiu, mantendo o tom de voz firme.
Os monges podiam parecer frágeis, mas ele tinha certeza de que o mosteiro estava bem guardado. Não poderia ser de outra maneira. Ele ouvira as histórias sobre as fabulosas riquezas e ensinamentos que havia ali. Certamente, ele e seus homens não eram os primeiros a se sentir tentados, mas a província de Viken não contava com um número de homens suficiente para um ataque sólido. Eles haviam perdido vários para as tempestades e outros tinham adoecido no início da viagem. Precisariam de cada um dos que ali estavam para levar os navios de volta em segurança. Seria arriscado demais. Aquela questão teria de ser resolvida com diplomacia.
— Se vocês vieram em paz, então vamos conversar a respeito. — O abade inclinou a cabeça de cabelos grisalhos. — Sem dúvida, após pesar os méritos do caso, poderei avaliar melhor, não é verdade?
— Há poucos méritos a pesar.
— Mas receio que tenham sido enviados para cá em uma missão inútil. Em princípio, não tenho conhecimento da existência de qualquer dinheiro de Orochimaru, o Escocês, aqui na abadia.
— Isso não é problema meu. O escocês me mostrou a tábua com a sua caligrafia, com o seu selo, afirmando que sim.
Um monge com a pele do rosto esburacada, que estava ao lado do abade, puxou-o pela batina e sussurrou algo em seu ouvido. Sasuke viu uma ruga aparecer na testa do abade.
— E você tem essa tábua? — O abade estendeu a mão e em seguida deixou-a pender ao lado do corpo. — Imaginei que não. Mesmo assim, vou averiguar. Vai levar algum tempo. Você e seus homens são bem-vindos para entrar e descansar. E para abastecer seus navios com água e mantimentos.
— Eu tenho o brasão dele. — Sasuke comprimiu os lábios e cruzou os braços.— Orochimaru me garantiu que seria suficiente. Não seremos ludibriados e privados do ouro que é nosso por direito.
— Seu infame, invasor! — gritou o monge de rosto marcado. — Meu tio Orochimaru nunca ludibriou ninguém! Você não pode profanar este lugar sagrado com suas mentiras estúpidas!
— Isso mesmo, primo! — gritou um outro. — Esses são os invasores que destruíram a fazenda de meu pai no ano passado.
— Nós nunca... — começou Sasuke.
Mas, antes que ele pudesse terminar a frase, o segundo monge avançou na direção dele empunhando uma adaga, alcançando Neji e atingindo-o no estômago antes que ele pudesse reagir. Uma mancha vermelha alastrou-se por seu gibão de couro.
— Venham! Venham! — gritou Sasuke. — Fomos atacados!
Sakura debruçou-se o máximo que pôde na janela e tentou escutar a conversa entre seu tio e o recém-chegado, um homem bonito e interessante.
Seu tio, com o queixo erguido, virou-se e começou a se afastar. Alguém gritou algo bruscamente, em uma língua estrangeira. Seu tio parou. Um dos monges deu um passo à frente e golpeou um dos vikings no estômago.
Como seu tio iria punir aquela insubordinação? Os guardas de seu tio rodearam o monge para protegê-lo quando os vikings desembainharam as espadas.
Sakura sentiu como se estivesse olhando através de uma parede de água. O tempo começou a passar devagar, e cada movimento parecia durar uma eternidade. Os guardas entraram em ação, mas foram imediatamente dominados.
O viking de aparência selvagem ergueu um machado, gritando em uma língua primitiva. O homem de cabelos escuros estendeu os braços para detê-lo, mas o outro deu de ombros e avançou na direção de seu tio, a lâmina do machado reluzindo ao sol da manhã.
Seu tio não se moveu. Havia um ar de indagação em seu rosto. Ele ergueu as mãos, em um gesto que Sakura não sabia se era de prece ou de súplica.
O brutamonte não deu atenção. Com um golpe único e brutal, desceu o machado sobre o abade.
Sakura sufocou um grito e virou o rosto para não ver a cena, mas a imagem do machado cortando o ar e do sangue jorrando, manchando de vermelho a areia dourada conforme a cabeça de seu tio rolava, estava cunhada em seu cérebro. Ela não se atreveu a olhar para fora enquanto o alarido na praia crescia, em um misto de gritos e súplicas por clemência e um cântico primitivo ritmado e tenebroso.
Os sinos recomeçaram a tocar estridentemente.
Sakura sentiu o corpo entorpecido. Ela cobriu a boca com a mão, e seu estômago se contraiu dolorosamente. Sua mente recusava-se a aceitar que aquilo estivesse acontecendo. Aquele tipo de coisa não acontecia ali, no mosteiro.
Seu impulso era cair de joelhos no chão e chorar, mas, acima de tudo, ela queria acordar. Ela mordeu o lábio com força, sentiu o gosto de sangue e então soube que tudo aquilo era real, horrível, terrivelmente real. Mas seus pés continuavam dormentes. Sakura sabia que, se olhasse para trás, veria a areia tingida de vermelho.
— O que foi, milady? O que aconteceu? A senhora está pálida. Diga-me, o que foi que a senhora viu? — A voz de Anko interrompeu a paralisia de Sakura.
— Precisamos nos esconder. Depressa.— Sakura retorceu as mãos. — Aconteceu uma coisa horrível na praia. Estamos correndo perigo.
Ela recolheu tudo o que estava sobre a penteadeira e guardou em um saco de pano, enquanto se esforçava para pensar com clareza. Ao longo de anos, houvera rumores sobre aquele tipo de gente, que atacava fazendas e exigia contribuições das cidades próximas à costa, mas ela nunca imaginara que pudessem atacar o mosteiro. As histórias que seu tio lhe contara eram sobre roubo, estupro e daí para pior. Ele próprio achava que eram exageradas, mas agora Sakura via que, ao contrário, eram até amenas. Aquela horda de selvagens era capaz de qualquer coisa. Elas precisavam sair dali, e rápido, antes que fossem descobertas.
— Esconder? — disse Anko com voz estridente, os olhos se arregalando no rosto fino. — Mas onde vamos nos esconder? Na capela, talvez.? São Cuteberto poderá nos proteger, de sua tumba.
— Não. — A imagem do machado descendo sobre a cabeça do tio passou rapidamente pela mente de Sakura. — Eles não respeitaram um representante de Deus, por que respeitariam este lugar sagrado?
Anko fez o sinal da cruz e ajoelhou-se.
— Estamos perdidas!
— Não repita isso, nunca mais!
Sakura segurou o braço de Anko e tentou fazê-la se levantar, mas a moça estava irredutível. Permaneceu ajoelhada no chão e começou a rezar o terço. Sakura passou a mão pelos olhos.
Não pretendia acovardar-se. Pretendia viver. Tinha de haver um meio de escapar.
— Precisamos dar um jeito de chegar ao continente. Dê o alarme.
As preces de Anko aumentaram de velocidade.
Sakura arriscou um olhar para a janela. A praia agora estava infestada de guerreiros, empunhando espadas e machados, avançando cada vez mais, como se se multiplicassem. Um ruído horrendo encheu o ar conforme os selvagens começavam a bater suas armas contra os escudos.
Um estrondo alto soou quando o portão do pátio foi arrombado. Era só uma questão de tempo.
Sakura pressionou as têmporas com a ponta dos dedos. Não podia deixar Anko para trás. Tinham de sair dali, logo. Não estava disposta a ficar parada esperando que alguém aparecesse para ajudá-las. Àquela altura muitos já deviam ter fugido, ou estavam ocupados demais enfrentando os vikings para se lembrar dela.
Não podiam mais ficar ali, na casa de hóspedes. Era uma questão de minutos até os bárbaros invadirem o mosteiro, à procura de ouro e prata. Eles não hesitariam em capturar prisioneiros. Sakura sentiu o estômago se contrair ao lembrar-se das histórias que seu tio contara à mesa do jantar, dois dias antes. Na ocasião, pareceram-lhe histórias para assustar criancinhas. Agora ela via que não chegavam nem perto a descrever o verdadeiro terror que era a realidade.
Anko terminou de rezar o terço e fixou o olhar à frente, pálida e com os olhos vazios. Sakura agachou-se e segurou as mãos frias da moça nas suas.
— Vamos para o chiqueiro. Não há nada lá que interesse a esses homens. Eles não irão lá. Eles querem dinheiro e ouro. Assim que conseguirem, sairemos de lá sãs e salvas. Incólumes. Está me ouvindo, Anko?
A criada fez um gesto quase imperceptível com a cabeça, assentindo. Sakura enrolou os itens restantes em uma colcha: o espelho que pertencera à sua avó, o broche de sua tia, seu crucifixo de prata.
Ela se movia com rapidez e agilidade, tentando manter a calma e pensar com clareza. Elas desceriam a escada, sairiam pela porta dos fundos e correriam para o chiqueiro. De lá havia uma vista privilegiada da ponte; quando a maré baixasse, elas atravessariam.
— Vamos! Agora!
Anko levantou-se, deu um passo trêmulo à frente e em seguida desabou no chão, sem forças.
— Deixe-me, senhora. — As lágrimas corriam pelo rosto da moça.
— Nem pensar. Vamos sair daqui juntas, você e eu.
— Que Deus, Nossa Senhora e todos os santos a abençoem! — Anko agarrou a mão de Sakura.
Outro estrondo reverberou no ar: o ruído de um machado atingindo a porta. Em seguida, o som de gritos e de passos correndo, enquanto alguém tentava impedir a invasão. Anko choramingou, e Sakura rezou em silêncio. Gotas de suor começaram a escorrer por seu rosto e pescoço.
— Bloqueie a porta! — Sakura começou a empurrar a cama, enquanto Anko não se movia do lugar, encolhida. — Ajude-me, Anko, se tem amor à sua vida!
Em algum lugar dentro do mosteiro, uma escada rangeu.
Ele não havia planejado nada daquilo. Tinham ido em paz, com o intuito de negociar, não de guerrear.
Sasuke observou a batalha, ou melhor, o tumulto à sua volta. As chamas já devoravam várias das construções do mosteiro. Ele conhecia a reputação de Konoha como centro de aprendizado, mas não tinha como evitar aquela destruição. Imaginara que o abade tivesse mais controle sobre os monges. Ele perdera um guerreiro valente e um bom amigo, sem motivo algum, quando aquele monge enlouquecido atacara. Será que o abade esperava que ele não reagisse, diante de uma agressão tão despropositada?
— Kisame estava certo, Sasuke — avisou Naruto da soleira de uma porta. Ele estava desgrenhado, mas não estava ferido, e arrastava um baú transbordando de cálices de ouro e crucifixos cravejados de pedras preciosas. — A igreja geme sob o peso de tanto ouro e joias. Nunca vi coisa igual. Foi muito sensato da sua parte decidir que viéssemos aqui para resgatar o dinheiro que o Escocês nos devia.
— Queime as instalações. Este vai ser um ataque igual a qualquer outro, Naruto — retrucou Sasuke. — Pegue tudo o que puder. Vamos comemorar quando voltarmos para casa.
Ele se recusava a sentir pena e simpatia por aqueles homens. Não haveria lugar para eles em Valhalla, ou para onde quer que Deus enviasse os guerreiros. Aqueles não eram guerreiros. Ele conhecia meninos que manejavam uma espada com mais habilidade. Aquele mosteiro era surpreendentemente desprotegido.
— Cuidado, atrás de você!
Vários guardas corpulentos avançavam na direção dele, mas Naruto os alcançou primeiro, e as espadas tilintaram. Sasuke derrubou um dos homens, e Naruto cuidou dos demais.
— Sua ferocidade é digna de um berserk, Naruto, de um legítimo guerreiro nórdico.
O rapaz ergueu a espada.
— Matar não me dá prazer algum, Sasuke. Você sabe disso. Nesse aspecto, sou diferente de Kisame.
— Você viu Kisame?
— Não o vejo desde que a confusão começou. Que idiotice daqueles homens terem nos atacado esperando que não fôssemos nos defender.
— Eu teria preferido que Kisame esperasse minhas ordens.
— Ele é um homem perigoso — disse Naruto, dando de ombros. — Tanto para o inimigo quanto para o amigo, quando o sangue ferve.
— Ele jamais atacaria um de nós. Ele jurou que não.
— Você diz isso, mas houve rumores dois anos atrás de que Kisame quebrou o juramento. Não estou afirmando que é verdade, mas que houve rumores, houve. — Naruto empurrou o baú com o pé. — Você é o encarregado desta expedição, e não pretendo desafiar sua autoridade. Kisame é sua responsabilidade.
Sasuke esfregou a parte de trás do pescoço, reconhecendo em silêncio a veracidade das palavras de Naruto. Kisame era um homem desequilibrado, um perigo para todos, inclusive para ele. Ele precisava encontrar Kisame e tentar acalmá-lo do surto de fúria que o acometera. Eles haviam jurado lealdade um ao outro, mas Sasuke sabia do que Kisame era capaz quando perdia a cabeça e a insanidade tomava conta dele, como se uma besta tomasse conta de seu corpo.
— Kisame — chamou ele. — Kisame, ganhamos o dia! É hora de dividirmos os lucros.
Sakura encolheu-se atrás da pilha formada pela cama, o colchão, dois baús e uma mesa. Suas tranças tinham se soltado enquanto ela empurrava a mobília para bloquear a porta, e seus cabelos agora caíam soltos pelas costas. Ela mal ousava respirar, enquanto esperava, apavorada.
Até então o único ruído que ela ouvira dentro da casa fora o ranger das escadas. Seria um alarme falso, ou algo mais sinistro?
Será que o invasor tinha ido embora?
Rolos de fumaça rodopiavam no ar, dificultando a respiração e fazendo arder os olhos de Sakura. Seus músculos estavam doloridos pelo esforço de empurrar os móveis pesados. Anko não a ajudara, apenas ficara ali parada, imóvel, com o olhar perdido.
Sakura rezou novamente, mas receava que Deus não a estivesse escutando. Deus havia lhes virado as costas, deixando-os à própria sorte, como em uma espécie de aviso aos demais. Pelo menos seria isso que seu tio diria, se tivesse sobrevivido.
Mas como a morte de seu tio e dos outros monges poderia agradar a Deus? Seu tio era um homem reverenciado por todos, sua devoção era bem conhecida, e sua sabedoria era respeitada. Agora ele estava morto, e seu sangue escorria na areia dourada.
Sakura olhou para a faca em suas mãos.
— Eu vou proteger você — falou baixinho para Anko, que não deu sinal de tê-la escutado. — Eu prometo.
A porta do quarto balançou e chocalhou. Sakura ficou paralisada, a respiração presa na garganta. Ela imaginou se o invasor desistiria e procuraria um alvo mais fácil.
Mas então a porta se espatifou com um estrondo nauseante, como se a cama e os outros objetos fossem um monte de gravetos secos.
Um homem enorme, corpulento, com aparência animalesca no pior sentido da palavra, entrou no quarto. O machado nas mãos dele pingava sangue. Suas vestes estavam todas sujas de sangue. Era uma verdadeira fera com forma humana. Sakura enregelou.
Aquele era o homem que havia matado seu tio.
Por trás do elmo, os olhos azuis dele tinham um brilho amarelado. Como uma fera selvagem, ele exibiu os dentes e rosnou.
Socorro... Sakura encolheu-se ainda mais nas sombras, para se esconder.
O selvagem vasculhou o quarto com os olhos. A folha da janela bateu, abrindo e fechando. Os olhos dele se estreitaram, atentos.
Senhor Deus, fazei com que ele pense que fugimos pela janela...
O monstro soltou um grunhido e virou-se para sair. O coração de Sakura deu um pulo. Contra todas as probabilidades, elas se salvariam!
Vá, vá embora! Suma daqui, ela pediu em pensamento.
Então, um soluço abafado escapou dos lábios de Anko. A fera parou e virou-se novamente, devagar, a respiração ruidosa. Dessa vez, ele viu onde Anko estava agachada.
Um sorriso maligno deformou a boca do monstro conforme ele erguia o machado.
— Kisame, finalmente o encontrei. — Sasuke entrou no cômodo estreito do andar de cima. Devia ter acontecido uma luta e tanto ali, a julgar pela mobília espalhada. — Não há nada aqui. Quem quer que estivesse neste quarto já não está mais. faz tempo.
Ele ficou paralisado. O guerreiro avançava lentamente na direção de uma mulher acuada. No outro canto do quarto, outra mulher, com os olhos brilhantes, estava encolhida nas sombras. Ela cobriu a boca com a mão, os olhos suplicantes. O maxilar de Sasuke enrijeceu. Não havia honra alguma — nem fazia sentido — em matar mulheres indefesas.
— Já temos tudo o que viemos buscar e um pouco mais. É hora de partir, Kisame, antes que a maré mude. — Sasuke manteve o tom de voz firme. Precisava fazer com que Kisame saísse daquele transe de loucura que o havia dominado.
Não houve nenhuma reação por parte de Kisame. Ele continuou avançando, devagar, determinado. Sasuke queria que a mulher se afastasse enquanto ele tentava atrair a atenção de Kisame. Mas ela estava tão aterrorizada que não conseguia se mover, encolhida no chão como um coelhinho assustado.
— Já temos o ouro, Kisame Hoshigaki. Vamos embora.
Kisame virou a cabeça enorme para trás e fitou Sasuke como se nunca o tivesse visto antes. O olhar dele fixou-se na espada de Sasuke. Um brilho selvagem surgiu nos olhos de Kisame.
Sangue e saliva escorriam da boca do viking conforme ele começava a avançar na direção de Sasuke, sacudindo o machado.
Sasuke ficou imóvel. Kisame tinha de recuperar a sanidade. Não era possível que estivesse tão alucinado a ponto de não reconhecer o amigo. Eles haviam vivido muitas aventuras juntos. Sasuke nunca o tinha visto tão fora de si.
— Kisame, sou eu, Sasuke, seu jarl. Seja fiel à sua palavra. Venha, vamos embora.
Uma expressão estranha apareceu nos olhos de Kisame. Ele examinou o machado por um momento, como se estivesse atordoado. Sasuke acenou com a cabeça e com a mão, encorajando-o a sair do quarto. Aparentemente ele conseguira.
Os olhos de Kisame então se fixaram na espada de Sasuke e cintilaram com um brilho primitivo. Ficou evidente que a loucura voltara a dominá-lo quando ele lambeu os beiços.
Kisame ergueu o machado. Sasuke desviou-se para a direita e levantou o escudo. Ele sentiu o golpe do machado reverberar ao longo de seu braço. Kisame ergueu novamente o machado.
— Eu sou seu companheiro, Kisame! — Sasuke estendeu as mãos e falou com voz suave, como se falasse com uma criancinha. — Fizemos um juramento a Thor e Odin. Somos irmãos de sangue, membros do felag.
Mas o selvagem não deu nenhum sinal de compreender as palavras de Sasuke. Parecia um predador enlouquecido pelo cheiro de sangue. Tudo o que predominava ali era seu instinto matador. Um urro pavoroso emanou das profundezas de seu ser.
Sasuke tornou a erguer o escudo e ouviu-o rachar sob a força do machado de Kisame. Sakura olhava, estupefata, enquanto os dois guerreiros vikings se enfrentavam, a espada de um se chocando com o machado do outro. Aquilo não fazia sentido, mas pelo menos estava servindo para desviar a atenção do brutamonte para outro foco que não Anko e ela própria.
— Corra, Anko, corra, vá! — sussurrou ela para a criada. — Para o chiqueiro! Encontro você lá.
Dessa vez, Anko não precisou que a ordem fosse repetida. Ela praticamente voou para fora do quarto, passando por trás do outro guerreiro, involuntariamente passando-lhe uma rasteira quando os pés de ambos quase se engancharam. O viking se desequilibrou e caiu, e o escudo e a espada lhe escaparam das mãos, voando para longe. Ele estava indefeso, agora.
Sakura sabia que deveria correr também, mas suas pernas recusavam-se a se mover. Era sua única chance de escapar, mas o homem que salvara a vida de Anko, e provavelmente a sua também, estava ali, encurralado, correndo um perigo mortal. Aquele ser bestial daria cabo dele em poucos segundos, e em seguida seria a vez dela.
O troglodita avançou na direção de onde o outro guerreiro estava caído no chão, respirando pesadamente. Então ele parou e o fitou.
Um sorriso espalhou-se lentamente por sua cara animalesca e ele passou a língua pelos lábios.
Sakura esqueceu-se de respirar.
A pele que cobria o peito do selvagem se abriu na base de seu pescoço quando ele ergueu o machado para aplicar o golpe final.
