Assimilava em sua memória a última vez que saiu de casa a um dia tão moderno quanto ontem, ou anteontem, no máximo, uma vez que seus dias desenrolavam-se como lesmas. 'Tinha sido anteontem, impossível fazer mais tempo do que isso', pensou após ouvir sua amiga lamuriar pelo telefone quantas saudades sentia de si: "não te vejo faz três semanas, nós sentimos sua falta, como você está?". A última vez que saiu de casa fora para encontrar sua amiga; logo fora há três semanas, como sua amiga deplorava. Mas não poderia ser. Seu coração disparou. Sentia-se como se o quarto, abafado, maçante, girasse sem rumo e sem pausa. Sua cabeça doía. Seu corpo soava. Não encontrava ar em um quarto que não tinha nada mais a oferecer do que oxigênio. Oh, o tempo passará tão rápido. Escapara de suas mãos pela milionésima vez. Três semanas inteiras haviam se passado desde que ela saiu da casa e ela não examinara o fato até tal momento.
Sua amiga chamava seu nome, de novo e de novo. "Como você está?". "Você está melhor?". O instinto primário impelia-a a gritar por socorro ou por qualquer coisa, simplesmente gritar, mas sua amiga não merecia a preocupação consequente. Disse que sim. O rosto ruborizou-se e soluçou; uma lágrima rasgou seu rosto, quente, suave, desesperada. Notou seu hálito quando cuspiu a mentira de sua boca. Terrível. Dentre o raio que compreendia seu lar, tudo estava desarrumado seja por fora ou por dentro de seu corpo. O que iria fazer? Pra quê fazer alguma coisa.
"Tenho que ir", disse, desligando sem dar chance a uma resposta. Colocou o telefone ao lado e, segundos depois, por um impulso sobrecarregado de ódio ou desespero, pegou o aparelho a atirou com força para longe. Repetiu o ato com outros poucos objetos ao alcance dos seus dedos e então chorou como uma criança perdida no meio do supermercado. Ela queria tanto sua mãe. Sua pernas foram forçadas a sustentá-la, sentidas fadigadas por tanto tempo de desuso, e já de pé farejou aquele retrato, aquele em que sua mãe sorria, os cabelos longos e pretos presos em um coque desajeitado, as roupas casuais, o cansaço expresso por sua olheiras de dar pena, feliz, satisfeita, viva.
Viviane era o nome dela. Enfermeira. Atendeu comunidades pobres no interior do estado natal e então foi para mais longe, ainda dentro do país, sempre contanto com uma casa e um colo na volta. Mamãe estaria sempre lá. Mamãe ficou muito doente, Viviane ficou muito triste, voltou pra cidade natal, brigou com um alguém que a acusou de abandoná-lo e que agora tentava esquecer, terminou um relacionamento, perdeu-se no caminho de sua própria vida enquanto assistia sua mãe morrer, e quando mamãe morreu, ela também morreu por dentro. Há alguns meses deixou novamente a cidade natal, pois precisava trabalhar. Mas há algumas semanas nem isso fazia, acrescentando culpa a uma gama de sentimentos destrutivos mais que suficiente. Sentia fraqueza, preguiça, melancolia, vergonha, ansiedade, sentia que não podia sentir em frente e sentia que de qualquer jeito, não valia à pena.
Como veio parar aqui? Depois de ser assolada pela depressão durante desde os dez anos, que se lembre, e cansar de ir à terapia, ler livros, encher a boca de pílulas durante anos a fio, onde havia parado aquele crescimento pessoal sagrado que antes tanto tinha e apreciava? Tinha vinte e seis anos agora, e se sentia menor que a menina da quinta séria que chorava toda dia depois da aula. Aparentemente, Viviane era fraca demais e todas aquelas paredes que pareciam de concreto se revelaram de isopor. Sua sensatez era nada mais do que superficial. Um hobby.
