NÉVOAS

CAPÍTULO I

- Com licença? Esta poltrona está vaga? - A jovem de cabelos castanhos perguntou educadamente à senhora sentada em uma das poltronas próximas à janela do velho ônibus que partia em direção à Piraievs(1).

- Está sim querida, pode ocupá-la.Só me deixe tirar essas coisas de cima. - Com um sorriso doce, a mulher de meia-idade retirou uma bolsa grande de couro que estava sobre o assento, apontando para o mesmo num convite à moça. - Nós começamos a envelhecer e ficamos com mania de carregar o mundo conosco, não é mesmo?

Um esboço de sorriso veio em resposta, enquanto a moça ajeitava-se no banco de tecido rasgado do antigo ônibus. Tentando manter a conversa com sua nova companheira de viagem, a senhora comentou:

- Já você não sofre com esse problema, pelo visto. Esta é toda a sua bagagem?

A garota ajeitou no colo a mochila velha e desgastada, respondendo meio sem graça:

- É. Costumo carregar só o essencial comigo.

- Eu queria ser assim, mas não consigo. Quando viajo, pareço estar de mudança. - Após esse comentário, ambas ficaram um tempo em silêncio, até a mulher iniciar um novo assunto:

- Que ônibus velho, não? Como eles deixam um veículo desses circular por ai?

Sorrindo, a garota falou ironicamente:

- Bem vinda à Grécia.

Achando graça da brincadeira que a moça fizera, a senhora continuou a conversa:

- Mocinha espirituosa! isso é muito bom. Diga-me, está viajando à passeio?

- É. Pode-se dizer que sim. - A jovem respondeu sem muita vontade de falar sobre o assunto.

- Então é uma turista de fim de semana? - Contudo, a mulher de cabelos levemente grisalhos resolveu insistir.

Respirando fundo e demonstrando um ar cansado demais para se esquivar da velha curiosa, a moça acabou por se render à conversa:

- Na verdade, estou mais para viajante sem rumo. Só estou em busca de um lugar para relaxar.

- Ah! Que tempos maravilhosos estes da juventude, em que só nos preocupamos em aproveitar a vida. - Um certo saudosismo acompanhava o tom de voz da mulher. - Faz bem mocinha, aproveite enquanto está na flor da idade. Aliás, não posso chamá-la de mocinha para o resto da vida. Meu nome é Alice, e o seu?

Olhando discretamente para a outra fileira de poltronas, como se procurasse uma saída para um repentino desconforto, a jovem visualizou um homem concentrado num livro. "O visitante inesperado", de Agatha Christie(2). Sorriu para sua sorte e encarando Alice, estendeu a mão num cumprimento:

- Muito prazer! Eu me chamo Agatha.

- Agatha? Bonito nome. Como a autora? Agatha Christie? - Alice perguntou inocentemente e sua interlocutora continuou com o teatro:

- Isso mesmo. Minha mãe era fã dela. Colocou o nome em mim na esperança de que ele trouxesse um pouco da genialidade da escritora.

Notando uma certa tristeza na garota ao falar isso, Alice tentou oferecer apoio:

- Então sua mãe acertou. Você me parece muito inteligente.

- Obrigada. - "Agatha" respondeu com falsa timidez. Depois tentou trocar o assunto, não queria apertar-se com a farsa. - A senhora também vai a passeio para Piraievs?

- Que isso, não sejamos tão formais assim. Pode me chamar de você, e não, infelizmente, não sou uma turista. Fui convidada para administrar um lugar localizado no vilarejo próximo à cidade de Piraievs. - Alice revelou o motivo de sua viagem.

- Vilarejo? - A jovem achou estranho o que Alice dissera. - Mas não há vilarejo próximo à Piraievs. Tem certeza de que pegou o ônibus certo?

Só então Alice percebera o que fez. Falou mais do que deveria e precisava remediar, antes que "Agatha" pudesse questioná-la mais:

- Ah não querida, eu me confundi, desculpe-me. É que se trata de um...Um...- nada vinha à sua mente e que pudesse ajudá-la, até que de repente... - um resort! Isso! Um resort. É que lá é tão grande e tem tanta gente morando. Sabe como é né, os funcionários todos moram perto, são tantas casinhas que mais parece uma vila.

O sorriso amarelo disfarçava o alívio de Alice, sua idéia fora perfeita! Mesmo assim, "Agatha" voltou a indagar:

- Engraçado. Conheço bem a região, nunca tinha ouvido falar de um Resort lá. É novo?

Mais uma vez o embaraço tomara conta de Alice, mas agora estava mais preparada:

- Pois é, é algo bem recente, e exclusivo também. Talvez seja por isso que você nunca ouviu falar. O Santuário é um "resort" extremamente restrito, poucos podem freqüentá-lo!

- Santuário? Nome estranho para um resort. É algum tipo de retiro, ou coisa parecida? - A pergunta da moça fez Alice cair na realidade novamente. Sua boca grande falara demais pela segunda vez, mas não conseguia evitar. Estava tão feliz desde que recebera o convite quase desesperado da Senhorita Kido. A presidente da Fundação Kido lhe comunicara da necessidade urgente de alguém com conhecimento e larga experiência em administrar grandes residências, ou seja, procuravam por uma governanta. O salário oferecido era quase o triplo do que Alice ganhava na mansão para a qual trabalhara a vida toda, em Londres. Aceitara na hora e estava pronta para espalhar aos quatro ventos sobre o novo emprego, quando Saori lhe proibiu de comentar qualquer coisa a respeito do assunto, alegando que se tratava de algo extremamente sigiloso.

Em princípio, a governanta não conseguira entender o porquê de tanto sigilo, mas quando recebera as informações sobre o que era o Santuário e qual era a finalidade de sua existência, teve um choque. Tudo aquilo parecia surreal. Levou um tempo até que Alice assimilasse do que se tratava o convite, mas por fim, compreendeu a enorme responsabilidade que Atena lhe entregava: Zelar pelo funcionamento e bem estar do Santuário, a fim de que os cavaleiros fossem livres para manter a paz no mundo!

- Alice? - A voz da companheira de viagem despertou sua mente.

- Ah! Desculpe-me Agatha. Sempre que toco nesse assunto, penso no trabalho que terei para cumprir minha função. Não é fácil ser "gerente"! - Alice acabou permitindo-se um pouco de glória na sua pequena mentirinha, afinal, nunca mais veria a moça e duvidava muito que ela fosse uma inimiga mortal que pudesse vir a destruir o Santuário apenas com o que acabara de ouvir.

O ônibus abria caminho na estrada barrenta e repleta de curvas, sob uma chuva que se intensificava à cada minuto. Dentro dele, cada passageiro dedicava-se à uma atividade, uns liam, outros dormiam, Alice e a moça de cabelos castanhos conversavam animadamente. A senhora já havia se soltado mais, aproveitando para incrementar mais a mentira sobre o "emprego de gerente no resort". Confidenciara à "Agatha" sobre o conteúdo da bolsa grande de couro que lhe acompanhava. Ali estavam pastas e apostilas que tratavam do treinamento dos "empregados" do "Resort", a divisão das tarefas que deveriam exercer, enfim, toda a organização do lugar. Explicava que, por se tratar de um "retiro", havia um critério de seleção severo para quem fosse trabalhar, pois os "hóspedes" não poderiam ser incomodados por ninguém, enquanto praticavam suas seções de "meditação e relaxamento". O material era o orgulho de Alice! Quando a "dona do Resort" lhe falou sobre as necessidades urgentes do lugar, a governanta trancafiou-se em seu quarto e de lá, só saiu três meses depois, com tudo pronto para ser colocado em prática.

Subitamente, o velho ônibus parou num trecho em que a estrada tornava-se estreita. A apreensão tomou conta dos ocupantes, de um lado podiam ver a encosta por onde corria um rio de lama, no outro, mal conseguiam enxergar o fim do barranco que descia para a escuridão noturna. Era possível ouvir o barulho do motor, sendo forçado ao máximo pelo motorista que tentava inutilmente fazer o veículo andar. Quando o mesmo ameaçava sair do local, derrapava um pouco para perto do barranco, assustando ainda mais os passageiros. Crianças começaram a chorar, idosos e algumas mulheres rezavam. Observando a lama que acumulava-se sobre as rodas do transporte, fazendo-o deslizar pouco a pouco, "Agatha" sentiu um calafrio, levantou num rompante, pegando na mão de Alice:

- Temos que sair daqui! A estrada é estreita e escorregadia, cada vez que o ônibus acelera, se aproxima do barranco! Aqui não é seguro! Vamos Alice!

Assustada, a única coisa que Alice conseguiu fazer foi agarrar-se com todas as forças em sua bolsa. Trêmula, mal tinha forças para levantar-se. Sem paciência para esperá-la, a moça agarrou o seu braço, forçando-a a mover-se e seguir até a saída, na parte da frente do ônibus.

Diante da porta, um grupo de pessoas se acotovelava, todos tentando sair ao mesmo tempo do veículo, agora balançando perigosamente sobre o barranco. A garota parou no meio do caminho, percebendo que seria impossível passar por ali, rastreou o espaço, à procura de uma outra saída. De repente ouviu-se um estrondo. "Agatha" virou-se na direção do som e viu que um homem quebrara uma das janelas por onde, agora, passavam algumas pessoas. Arrastando uma Alice em estado de choque, a jovem conseguiu alcançar a nova saída:

- Suba no banco Alice! E tente passar pela janela, com cuidado! Há muitos cacos de vidro! - Gritando para se fazer ouvir em meio ao pânico instaurado no ambiente, a moça passava instruções para a senhora, auxiliando-a em sua saída.

Um novo estrondo foi ouvido, mas dessa vez, o barulho aumentava gradualmente, algo se aproximava com velocidade em meio à lama que descia da encosta. Ao avistar o objeto, Alice virou-se com um olhar de espanto, abraçando fortemente a bolsa de couro. Naquele instante, tudo o que "Agatha" conseguiu ver foi a imagem da mulher lançando-se em sua direção, na face, uma expressão de terror. Um grito ecoou na garganta da jovem:

- ALICE!

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Abraçada na bolsa de couro, a jovem de cabelos castanhos fitava, com seus olhos acinzentados, o corpo estirado sobre uma maca. Tanto as suas vestes quanto as do cadáver estavam cobertas de lama e sangue, agora já secos. Procurou cerrar as pálpebras por um instante e todas as imagens brotaram em sua mente, como água numa fonte.

Um enorme tronco deslizara encosta abaixo, vindo na exata direção da janela pela qual ela e a senhora tentavam sair. Quando Alice o viu, já não havia tempo para desviar. Num ato desesperado, a governanta virou-se de costas, agarrando-se à bolsa em busca de sustentação, como se isso, somado ao fato de não ver mais o objeto, fossem suficientes para salvá-la.

Não foram. A madeira chocou-se contra o corpo de Alice, lançando-a sobre a jovem que tentara lhe ajudar a sair. Esta foi arremessada contra as poltronas da fileira oposta. A partir daí, o que se sucedeu foi apenas uma seqüência de sensações. Era possível sentir o ônibus deslizar pelo barranco, arrastando com o seu peso, tudo que estivesse no caminho. Pessoas e objetos eram arremessados para o mesmo lado em que a jovem estava, chocando-se contra as ferragens. Até que finalmente, tudo passou. O barulho ensurdecedor, os gritos, tudo! O veículo chocara-se contra uma parede de árvores, sendo detido pela mesma. A moça que identificara-se como "Agatha", estava agora prensada entre os ferros retorcidos, a enorme bolsa de couro e o corpo de Alice, cuja mão pendia inerte, ao seu lado. A lama passava entre elas, fazendo correr entre os corpos, o sangue da governanta.

Fazendo o olhar dançar entre o cadáver na maca e a bolsa em sua mão, a jovem pensou na sorte que tivera. Quando Alice virou-se, colocando a bolsa na frente do corpo, a barreira das grossas pastas e apostilas impediu que as raízes que atravessaram o seu corpo, também transpassassem o da moça. Graças ao trabalho de uma mulher que mal conhecia, agora estava ali, naquele hospital, viva!

As pessoas passavam de um lado para o outro numa intensa correria. Médicos e enfermeiros tentavam ajudar aqueles que gemiam de dor e, ao mesmo tempo, precisavam dar explicações às pessoas que ansiavam desesperadamente por notícias de um ente querido. Próximo de onde estava sentada, a garota pode ouvir um médico conversando com outras duas pessoas. Uma delas era uma moça de olhos escuros, com longos cabelos numa tonalidade violeta. À primeira vista, muito frágil, mas um olhar atento poderia captar parte da imensa força que seu espírito abrigava. Estava acompanhada de um rapaz, não muito alto, de traços delicados, compostos por cabelos e olhos verdes.

Pediam informações ao médico, querendo saber à respeito de alguém, provavelmente, um parente, ou amigo próximo, nada que lhe dissesse respeito:

- O resgate ainda está trazendo pessoas para cá. Temos feridos chegando o tempo todo, não há como se ter controle. Não sabemos ainda quantos estão vivos ou mortos. A pessoa que procuram pode até não estar aqui. - O médico explicava aos estranhos, a situação alarmante na qual encontrava-se o pequeno hospital. Por fim, propôs-se a ajudá-los. - Vou anunciar o nome da pessoa, se ninguém responder, recomendo que esperem até termos mais notícias.

Dirigindo-se até um balcão, o homem ligou uma espécie de microfone, e anunciou, fazendo seu recado ecoar por todo o espaço:

- Atenção! Por favor, solicito a atenção de todos vocês! Senhora Alice Williams! Senhora Alice Williams! Favor identificar-se a algum médico ou enfermeiro! Senhora Alice Williams! Favor identificar-se a algum médico ou enfermeiro! Se alguém tem alguma notícia sobre a Senhora Alice Williams, favor identificar-se com algum médico ou enfermeiro! Obrigado pela sua atenção!

As palavras ecoavam como um mantra na mente da garota abraçada à bolsa. Como que em transe, ela levantou-se do chão, afastando-se do cadáver e gritou com a voz trêmula:

- Aqui! - Mesmo gritando, a voz abalada não soou alto em meio aos gemidos de dor e ao choro das vítimas. Tentou mais uma vez, abanando, quase sem forças - Aqui! Eu... Eu sou... - a voz sumiu por um instante, como se quisesse dar um tempo para que ela pensasse no que iria fazer, mas logo retornou, com a decisão tomada. - Eu sou... Alice Williams!

Os olhos atentos do rapaz avistaram a jovem de cabelos castanhos, coberta de sangue e lama, que gesticulava fracamente, acenando na direção em que se encontrava. Chamou a atenção da garota que o acompanhava e ambos caminharam até a moça. Ao se aproximarem, a garota de cabelos da cor lilás falou num tom de carinho:

- Senhora Alice Williams, sou Saori Kido. É um prazer conhecê-la finalmente. Lamento que seja numa circunstância como esta. Não sabe como estou feliz em vê-la viva. - Apontando para o rapaz, apresentou-o. - Este é Shun, ele é assistente do mestre do Santuário e irá ajudá-la no que for preciso.

- Senhora, esta bolsa deve estar pesada. Posso carregá-la? - Shun estendeu a mão para pegar a bolsa de Alice, mas a jovem a segurou com força. Aquela não era uma simples bolsa, dentro dela estava o trabalho de uma mulher incrível, que salvara a sua vida.

Percebendo o medo que rodeava a jovem, Saori tomou delicadamente a mão livre da outra, num gesto de conforto, acalmando-a:

- Não se preocupe. Vamos levá-la para o Santuário. Lá você estará segura.

(1)Piraievs: Cidade litorânea, próxima à Athenas, na Grécia. Vou explicar o porquê dessa cidade ser citada: como a história inteira depende do acontecimento da viagem do 1º cap., eu precisava localizá-lo em algum ponto do mapa para dar sentido à mesma, então pensei assim: No anime, deduz-se que o Santuário fica próximo às ruinas em Athenas, mas como pretendo considerar o vilarejo onde moram os servos (que também será essencial na história) pode-se dizer que o Santuário fica perto mas nem tanto da capital. Então peguei o mapa e encontrei Piraievs, uma cidade não muito grande, entre Athenas e o litoral. Como, pela escala, as duas cidades são bem próximas, achei que seria muito bom localizar o Santuário entre elas, ou seja, no caminho de Athenas para Piraievs. - Eu peço para que, se alguém encontrar uma falha nessa pesquisa (meio rápida) que eu fiz ou saiba de algo que possa ajudar, me comunique, Agradeço de antemão a colaboração.

(2)Agatha Christie: Autora de romances policiais; "O visitante inesperado" é uma de suas obras póstumas.

N/A: Novo fic na área gente... é o seguinte...essa é uma idéia que eu tenho a décadas, mas que só agora veio à luz! O fic tem um quê de mistério e confesso que a personagem dele...a nossa amiga misteriosa e sem nome, é uma personagem pela qual tenho muito carinho, pq trabalhei muito nela. Agradeço à Margarida por revisar esse capítulo para mim. E...rs.. mandem quantos reviews quiserem. B-jos.