Esse Doce Veneno

Lya M.

Consultora: Nelli Lords


Prólogo

Veneno. Uma pequena dose basta para que um ser qualquer tenha suas funções vitais destruidas. Uma vez dentro do corpo, o único resultado é a morte. A ferida superficial e imperceptível trucida sua vítima com o líquido mortífero que é introduzido em suas veias, sendo capaz de causar uma dor interna inimaginável. Foi ele quem me disse isso, rindo dos meus arrepios.

Alguns anos se passaram desde a noite em que estávamos sentados nas escadas do Santuário, entre a Casa de Libra e a Casa de Escorpião, enquanto ele me contava com entusiasmo o quanto seus precisos ataques eram perigosos.

Aqueles eram tempos felizes. Tempos em que eu podia sentir o calor de seu corpo, abraçá-lo, deixar que ele fizesse a travessura de despentear o meu cabelo despontado, ouvir sua voz excitante que eu tanto adorava, fazê-lo dormir em meu peito como mãe que nina o filho, esquentar sua cama em dias chuvosos... Tempos em que eu me sentia viva... Aquele veneno era o que me conservava viva. A cada dose recebida, eu tinha a certeza de que não poderia mais viver sem aquela droga que me deixou dependente. O veneno era como mel... Doce como um menino. O meu menino...

Repito que aqueles eram tempos felizes...

Capítulo I

Eu estava um pouco mais animada naquele dia. As chuvas que se iniciaram na semana anterior felizmente haviam dado uma trégua, permitindo que fracos raios de sol iluminassem Rodorio. Finalmente as roupas que eu havia estendido no varal poderiam se secar.

Morávamos minha tia e eu numa pequena casinha que ficava nos fundos de uma ruela, praticamente escondida e afastada do resto da vila. A pobre estava quase caindo aos pedaços. As janelas de madeira eram todas empenadas devido ao aguaceiro que caia diretamente nelas, o ranger das portas, para quem não tinha o costume de ouvi-los diariamente, era insuportável, a tintura azul da parede – a pouca que ainda restava – estava enlodada e o sofá velho tinha um leve cheiro de mofo e pelo de gato. Apesar de estar em situação deplorável, minha casa não era muito diferente das outras que faziam parte da vila de Rodorio.

Eu era costureira. Pegava cortes de roupas na mão de um velho que os trazia de Atenas, e vez ou outra tinha algumas encomendas de vestidos que minhas colegas de infância me pediam pra fazer. O trabalho era muito e o pagamento razoável, mas eu nunca me queixei. Era a única coisa que eu havia aprendido a fazer e o suficiente para sustentar a casa e comprar os remédios que minha tia diabética precisava para continuar vivendo. A doença a consumia cada vez mais depressa, para o meu desespero. Começou com uma pequena ferida no pé que foi se alastrando até o joelho, sendo necessário amputar sua perna direita para que a doença não continuasse a se propagar pelo corpo. A pobre mal saia da cama, e não merecia. Chamava-se Cléria, e era forte, otimista e muito bonita. A pessoa que mais me amava. Depois que meus pais me abandonaram quando tinha três anos de idade, devido à falta de recursos e valentia para continuarem me criando, ela me acolheu com todo o carinho que poderia oferecer me tratando como sua própria filha. Se eu era o que era até aquele momento, devia unicamente a ela.

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Comecei a olhar com desânimo o quintal da minha casa, três vezes maior que ela. O capim havia crescido de maneira espantosa nas últimas semanas, tomando conta da pequena horta e do canteiro de flores que eu cultivava carinhosamente. Respirei fundo. Eu nunca teria tempo de sobra e nem força suficiente pra pegar uma enxada e capinar o lote. Tentei me conformar ajoelhando na terra molhada enquanto arrancava as ervas daninhas que estavam próximas às flores com as minhas próprias mãos. Novamente odiei aquelas chuvas que conseguiram estragar minhas belas gérberas, as únicas coisas que acrescentavam um pouco de cor na minha vida. Agora estavam desbotadas, murchas e totalmente sem graça. Resolvi deixá-las lá, voltaria a me preocupar com elas quando o sol brilhasse com mais intensidade e secasse o capim molhado que começava a pinicar a minha pele, ao contrário de Teuh, que rolava sobre o mato alto sem o menor incômodo. Peguei o gato e o coloquei no cesto em que estavam as roupas que eu havia recolhido do varal e levado para a pia da cozinha.

Eram aproximadamente cinco da tarde, minha tia estava cochilando. Abri a porta de seu quarto vagarosamente evitando acordá-la, mas era impossível disfarçar o barulho que meus passos faziam no piso de tábua oco.

- Lia, minha filha, é você? – Fez um esforço para abrir os olhos e erguer o corpo.

- Sim, tia. Vim ver como estava. Desculpe acordá-la...

- Não faz mal. Já dormi um bocado... Alguma nova notícia do mundo lá fora?

O mundo lá fora... Meu coração se apertava cada vez que ela me perguntava dos acontecimentos recentes de Rodorio. Injuriava-me saber que uma pessoa tão boa, que nunca havia feito mal a ninguém poderia carregar o castigo de não ser mais capaz de andar, de não ter as funções do organismo funcionando normalmente, nem desfrutar dos poucos prazeres que a nossa vida simples nos oferecia. O pior, é que era eu quem não aceitava sua situação. Ela sempre encarou a doença como um fato simples, que fazia parte da vida de algumas pessoas, sendo incapaz de evitar, mas eu não. Se eu tivesse o poder de "ditar as regras", aquilo jamais teria acontecido.

Esfreguei os braços, o quarto estava um pouco frio.

- Bem, a melhor notícia que tenho é que parou de chover. Demais, Brina me pediu para fazer a barra de um vestido novo que ela ganhou. Hoje mesmo eu entrego.

- As chuvas cessaram? – Pareceu não ouvir a outro comentário que eu havia feito. – Bem que notei que o barulho parou! Não perca tempo filha, abra a janela, preciso ver a claridade!

Obedeci, mesmo sabendo que o sol ainda não estava totalmente a nosso favor. A única coisa que conseguimos ver foi uma luz cinzenta que entrava junto com a brisa gelada.

- O céu ainda está um pouco nublado... – me incomodei com seu ar de decepção – mas... pode ser que amanhã tenhamos mais sol...

Ela não pareceu muito confiante na possibilidade que dei. Fechei a janela novamente, era melhor que pegar um resfriado qualquer. Fui pra perto da cama e dei um beijo carinhoso em sua testa.

- Tia, não fica assim. Mais dia menos dia e aquele calor a que a Grécia está acostumada logo volta.

- Se você diz, eu acredito – bocejou.

- Agora descansa – lhe cobri. – A senhora não pode fazer esforço.

- Minha filha – sorriu –, você é um anjo.

- Quem dera... – respondi com outro sorriso.

Saí do quarto e encostei a porta. O melhor era deixá-la dormir em paz.

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Em poucos minutos eu havia terminado de fazer o vestido. O fiquei observando por segundos, achei que a barra ainda estava muito comprida, Brina sempre gostou de algo mais leve e que facilitasse o movimento das pernas. Coloquei a fita métrica no pescoço, alguns alfinetes e agulhas na minha blusa, embrulhei o vestido e coloquei uma tesoura pontuda e afiada por cima. Caso fosse necessário algum ajuste, eu poderia fazê-lo em sua própria casa.

Assim que cruzei da porta para fora, pisei em uma enorme poça de água e lama, o que me fez sujar o calçado e o pé.

Aquilo foi o suficiente para tirar o meu juízo e fazer com que eu praguejasse até a última geração que fosse viver em Rodorio, o lugar que eu amava e que ao mesmo tempo detestava. Se tinha uma coisa que eu não gostava naquela vila, era suas inúmeras ruas desniveladas e descalçadas, que me faziam tropeçar cada vez que eu voltava para casa. Tentei esquecer o incidente, afinal, ficar emburrada por causa daquilo não limparia os meus pés, apesar de que eu sempre me aborrecia por coisas muitas vezes insignificantes. Sempre tive o temperamento um pouco... intolerável.

Sai da ruela e entrei em várias outras até chegar à casa de Brina, um pouco mais conservada que a minha. Ela experimentou o vestido, fazendo uma expressão de aprovação.

- Está ótimo!

- Não acha que ficou comprido? Se precisar, eu arrumo...

- Não, ficou perfeito... – girou a saia com graciosidade, o que me fez sentir uma pontada de inveja. Fazia tempos que eu não ganhava um vestido novo. – Quanto lhe devo?

- Ah, não me deve nada não. Fazer a barra de vestidos não me dá trabalho nenhum, eu não preciso cobrar – respondi com sinceridade.

- Sabe Lia – se virou para o espelho dando um sorriso debochado – você é uma bobinha...

- Como é? – perguntei ingênua.

- Não lhe pedi um favor. Se lhe dei o vestido para consertar é porque pretendia pagar. Me cobrando você não faz mais do que sua obrigação. Deixe de ser boba e aceite o meu dinheiro.

Tirou alguns trocados de uma pequena gaveta e colocou no bolso da minha calça, sorrindo ao me agradecer pelo serviço feito. Sai de sua casa com a sensação de que havia feito uma coisa que não deveria. Pensei em voltar e devolver o dinheiro, mas enquanto caminhava em direção ao centro de Rodorio, conclui que o trocadinho ganho poderia ajudar a encher um espaço na minha geladeira enferrujada.

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Se nós, cidadãos de Rodorio, tínhamos um motivo para nos orgulharmos era de nossa tranquilidade e capacidade de viver pacificamente. O povo era simples, humilde e festeiro, como todo bom grego. Raramente havia intrigas entre as pessoas, ocorria mais o caso de um comerciante entrar em desavença com outro pela disputa de um freguês.

E foi justamente isso que aconteceu naquele dia... O dia em que minha vida mudaria por completo.

Eu estava voltando da casa de Brina em direção ao mercado de frutas. Pretendia empregar o dinheirinho na compra de algo que minha tia gostava de comer, geralmente maçãs e uvas bem frescas. Parei na pequena tenda, o vendedor que me conhecia desde que era criança veio até mim às pressas para me contar os barulhos do momento.

- Filha! – Um péssimo costume que os mais velhos tinham era o de me chamar de filha, e confesso que sempre detestei. – Já viu o que acontece na próxima esquina?

- Não senhor, ainda não passei por ela... – Peguei uma sacola de papel, comecei a enchê-la de pinhas e algumas poucas maçãs e não dei muita importância "ao que acontecia na próxima esquina". A não ser que acontecesse um noivado, que significava para mim encomenda de roupas para o casamento, eu não me sentia muito interessada no que se passava ao meu redor. A única coisa que prendia a minha atenção no momento era a diferença de preço entre as pinhas e as uvas.

- Os mercadores de peixes estão fazendo o maior rebuliço no armazém de exportação – me segredou. – Disputam para ver qual deles consegue negociar com os credores e trazer mais lucro para a vila com suas mercadorias! – sorriu.

- Grande... – disse para mim mesma enquanto depositava o pagamento nas mãos do velho. – Não faz mal brigarem. Os soldados que vêm do Santuário sempre colocam fim a essas discussões...

Era o que costumavam fazer. Sempre que algo de errado acontecia em Rodorio, eles vinham com aquele nariz empinado, com aquele ar de seres superiores que estavam ali apenas para fazer favores a reles mortais como nós. Nunca gostei daqueles homens, quase sempre eram arrogantes, aproveitadores e cruéis. Vez ou outra eu os via lançando olhares por demais maliciosos para cima de amigas, e ameaçando pessoas com chicotes. Nunca entendi como homens como aqueles poderiam ajudar a guardar um recinto tão sagrado quanto o Santuário.

- Isso é melhor, filha! Dessa vez não vieram soldados, e sim um cavaleiro de ouro! – a excitação na voz do velho era clara. Para os habitantes da vila, cavaleiros de ouro eram como pequenos deuses...

- Então ele dará fim ao problema bem rápido. – Peguei minha sacola e coloquei a tesoura por cima das frutas enquanto dava um sorriso singelo ao me despedir do vendedor, que pareceu ficar surpreso com o meu descaso pela presença de um cavaleiro-mor na nossa simples cercania.

Fiquei pensativa. Tentei imaginar o motivo que faria um deles, o cavaleiro de ouro, descer até Rodorio. Certamente deveria ter coisas mais importantes para se preocupar do que uma simples discussão entre mercadores.

Duas meninas, aparentemente mais jovens que eu, vinham no meu sentido contrário. Cochichavam e riam uma para a outra animadamente, certamente falavam de algum rapazinho.

- Me disseram que é o mais bonito deles! – a mais baixinha comentou.

- E que nem Peixes tinha a beleza que ele tem! – Riram.

Não. Não falavam de nenhum rapazinho, e sim do cavaleiro. Percebi quando citaram a constelação de Peixes. Apesar de achar uma bobagem toda aquela empolgação, eu não podia culpar as meninas de Rodorio. As opções de rapazes mais avantajados em beleza e porte físico – o que sempre chamou bastante atenção em nós, mocinhas – não eram lá muito comuns. Não era de se admirar o sucesso que os fortes, belos e bondosos cavaleiros faziam entre as garotas mais sonhadoras. Se elas tinham um desejo em comum, com certeza era de um dia poderem tocar aqueles corpos torneados e convidativos que tinham.

Mestre Aiolia de Leão costumava ser o principal alvo, pois visitava nossa vila com mais frequência que os outros, talvez por ter sido criado em meio ao nosso povo. Era gentil e tinha um rosto entre o severo e o amável. Realmente um homem encantador, que conseguia arrancar suspiros das meninas e causar inveja nos rapazes com muita facilidade. Apesar de nunca ter trocado uma palavra sequer com ele, eu o admirava, tanta na dignidade e fidelidade para com Atena e o povo quanto na sua aparência jovial. Mas a meu ver, em quesito de beleza, mestre Aiolia dividia o patamar com – em minha opinião – o exótico mestre Shaka. Também já ouvira falar que o maldoso mestre Ares tinha lá os seus encantos...

Eu também poderia achá-los belos, desinteressadamente é claro, mas achava.

Sim, eram belos... Exceto um.

E eu queria esconder o que eu realmente via no rosto desse certo cavaleiro...

O cavaleiro com uma beleza diferente da dos outros, diferente do que as pessoas costumavam enxergar.

Eu ia além disso...

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Eu voltava para casa sem a menor pressa. Naquele dia eu não tinha coisas muito importantes para fazer, a não ser cuidar da minha tia. Não pretendia fazer como todos os outros, me acotovelar em meio à multidão que se formava na esquina para descobrir mais a fundo a confusão que estava acontecendo, ou melhor, não iria expiar o cavaleiro presente. Sim, com a desculpa de quererem estar a par das novidades, as pessoas aproveitavam para admirar os dourados. Sempre faziam isso.

Via as pessoas correndo, querendo chegar o mais rápido possível para terem tempo de ver por mais alguns minutos o rosto daquela entidade respeitada e endeusada... Tolos. Provavelmente ele não lhes daria a devida atenção que esperavam receber, a não ser que fosse o próprio mestre Aiolia que estivesse ali, mas eu cria que não.

Quase chegando a minha casa, um pensamento cruzou minha mente como um raio, como se alguém tivesse colocado aquela ideia na minha cabeça propositalmente... Eu teria algo novo para contar à minha tia! Ela ficaria feliz em saber que algo diferente aconteceu em Rodorio naquele dia.

Apesar de não querer me misturar com o povo curioso, eu me senti mais animada quando imaginei o rosto empolgado que minha tia Cléria faria quando eu lhe contasse que vi um cavaleiro de ouro de perto. Tão bela... Qualquer coisa, por mais insignificante que parecesse, lhe fazia contente. Por vezes quis ter a mesma paixão pela vida que ela tinha, só não sabia que naquele mesmo dia eu conseguiria.

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Levei empurrões, cotoveladas e meus pés foram pisoteados várias vezes. Eu sabia que havia uma grande quantidade de pessoas aglomeradas naquela esquina, mas não imaginei que agiriam daquela forma. Fingiam não conhecerem ninguém à volta, fingiam não enxergar nada além do exímio ser humano que estava vestido com uma armadura dourada.

Como as pessoas faziam um círculo, deduzi que ele e os mercadores deveriam estar no centro, então fiz o possível para me aproximar dali. Empurrei, acotovelei e pisoteei como todos os outros estavam fazendo, sem me dar conta de que a cada sofrido passo que eu dava, chegava mais perto do ponto que queria, perto demais...

Tropecei. Não sei exatamente em quê, mas meus pés se embolaram e meu corpo se jogou para frente, permitindo que a afiada tesoura que estava por cima das frutas que eu carregava encostasse, para logo em seguida deslizar, em um impecável manto branco, causando um enorme rasgo. O dono da veste se virou assim que foi levemente empurrado pelo meu corpo.

Me senti envergonhada pelo meu bobo descuido de tropeçar. Ainda com a cabeça baixa, murmurei timidamente enquanto recolhia a tesoura e algumas maçãs que haviam rolado pelo chão:

- Desculpe-me senhor... Não tive a intenção de lhe empurrar, foi mesmo por causa do tumulto...

Continuei abaixada recolhendo meus pertences, sem me dar a licença de erguer os olhos para identificar o homem que eu havia, acidentalmente, rasgado a veste.

- Está tudo bem – fiquei um pouco mais aliviada. – Quer ajuda para se levantar?

Estendeu-me a mão, e mesmo não olhando para ela, a segurei.

Era grande, leve, e... gelada.

Não pude esconder minha expressão de surpresa quando vi que a mão que me dava apoio estava encoberta por um ouro reluzente. Fiquei com os olhos arregalados, enquanto ela me ajudava a erguer o corpo. Baixei o olhar. Vi os pés, as canelas e as pernas. Atrevi-me a continuar levantando os olhos gradualmente, vendo os quadris, o abdômen, o tórax, os ombros, e por fim os braços. Estava todo coberto por puro ouro detalhadamente desenhado em perfeito ajuste ao corpo daquele homem.

Dei-me conta:

Era uma armadura dourada.

Aproximei-me mais do que queria aproximar.

Espantada, não sabia o que fazer. Meus olhos giraram pelo chão, pelos meus pés enlameados, pela minha sacola de frutas, para enfim pararem na outra mão dourada, a esquerda, que segurava um belíssimo buquê de gérberas envolvidas por pequenas flores campestres. Justamente gérberas... As minhas favoritas.

Suspirei ao olhar profundamente para as flores com tons vibrantes de vermelho que chamaram em muito a minha atenção, talvez mais do que o próprio dourado que iluminava o meu rosto. Não, talvez eu tenha suspirado por sentir que o toque da mão fria me deixava para pegar nas pétalas de uma daquelas beldades que a natureza havia criado.

A tirou do buquê... Estendeu-a para mim.

- Pega. Estou dando pra você.

Foi aí que abandonei a flor com o olhar para mirar timidamente aquele rosto moldado por um cabelo comprido e revolto de tom azul índigo.

Não respondi, ainda estava confusa. Ou melhor, assustada. Queria apenas chegar perto... Contar a minha tia que o havia visto, mesmo que fosse de relance. Mas rasguei-lhe o manto, ele me tocou, me oferecia uma linda flor. A mais linda que já havia visto.

Ora olhava para seu rosto, ora para sua mão estendida para mim. Ele me observava, com os olhos impassíveis. Dei um passo para trás. Virei o rosto e deparei-me com vários olhares, curiosos dos homens, gélidos e indiferentes de algumas mulheres e muitas meninas. Todos só me ajudaram a me sentir mais envergonhada e mais apavorada do que já estava me sentindo. Voltei a fitá-lo, precisava lhe dizer algo.

- C-c-cav-valeiro de o-ouro...? – Reverenciei de modo desajeitado e fiquei ofegante depois de engasgar com as palavras. Naquele momento senti um súbito temor.

Temor... ou talvez respeito.

- Milo de Escorpião. – Respondeu-me sustentando um olhar indescritível.

- Mestre – um homem tocou seu ombro –, creio que o problema entre os mercadores já tenha sido resolvido. Aconselho que vá cumprir com seus demais compromissos para evitar futuros transtornos.

Ergueu o dedo indicador para o homem.

- Um minuto, Aranthis.

Aranthis. Comprido, um corpo bem forte, mas com um rosto fundo e um nariz encurvado, e que a princípio pareceu não simpatizar com minha pessoa. Olhou-me de cima a baixo, reparando principalmente nos meus pés e na barra da minha calça sujos de lama. Aquilo não me incomodou. Nem o conhecia, mal me importava a impressão que estava tendo a meu respeito.

- Como se chama? – perguntou-me.

- E-eu? – apontei para o meu próprio peito, que havia ficado muito trêmulo por sinal.

- Por acaso falo com outra pessoa além de você? – cerrou os olhos, dando um sorriso que julguei ser superior, só pelo canto dos lábios.

- Desculpe mestre. – Minha voz se tornou mais firme. Talvez eu também quisesse mostrar um pouquinho de significância perante ele. – Me chamo Lia. Q-quer dizer... É Talia.

- Espero não estar enganado, mas pela fita em seu pescoço e pelas agulhas em sua blusa creio que você seja capaz de consertar o meu manto – o tirou das costas. – Faria isso por mim?

- C-certamente mestre – o peguei de sua mão. – é a única forma de me desculpar...

Jamais imaginaria que um homem com um título como o dele pudesse se dar à simplicidade de reparar na humilde condição que eu me encontrava naquele momento: meio despenteada, com a roupa alfinetada, e de quebra, com os pés imundos.

Acho que eu os subestimava demais.

- Perfeito. – Assim que me entregou o manto, o sorriso superior sumiu e senti que seu olhar foi se tornando aos poucos mais bondoso e quente.

Apenas dei um tímido aceno positivo com a minha cabeça para logo em seguida baixar novamente meu olhar. Pensei por alguns segundos se deveria continuar ali aguardando por demais ordens ou se simplesmente poderia virar as costas e ir embora dali.

Naquele momento a segunda opção me era mais tentadora.

Assim que ameacei me virar, senti novamente seu punho gelado, mas agora segurando firmemente o meu antebraço. Senti meu coração acelerar. Pela pressão que ele fazia, eu acreditava que fosse me ralhar, dizendo que eu pretendia lhe desrespeitar dando as costas daquela maneira.

Mas não. Ele me soltou, pegou novamente a flor que antes havia me oferecido e deu um passo a frente, ficando mais próximo a mim. Suspendeu uma das mãos em direção ao meu rosto, o que me fez engolir a saliva várias vezes deixando óbvio o meu nervosismo.

Afastou meu cabelo e colocou a flor atrás da minha orelha delicadamente.

- Talia... É um belo nome, aliás.

Apenas reinstalou o sorriso superior no canto dos lábios antes de passar por mim e ser seguido pelo tal Aranthis.

Olhei-o pela última vez por cima do meu ombro, reparando que ele me olhava da mesma maneira enquanto caminhava em direção à saída de Rodorio.

Fiquei parada, apenas observando a partida do cavaleiro que havia me dado uma atenção que eu jamais esperaria receber de um homem como ele. Pela primeira vez senti que havia sido notada de maneira diferente, e não vista como uma simples menina mal arrumada e desajeitada, como a maioria das pessoas daqui da vila me viam.

Percebi que meu olhar se demorara demais no cavaleiro quando ouvi burburinhos ao meu redor. Reparei em todas as pessoas que ainda formavam um círculo em volta de mim e senti meu rosto rubro.

Olhei desorientada para os lados, como se procurasse uma saída entre a multidão. Não encontrando uma boa alma que me desse passagem, empurrei um bom número de pessoas para então sair daquele aglomerado e correr de volta para a minha casa.

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Não demorei a chegar. Logo depois de tomar um bom banho e trocar de roupa, tratei de guardar as frutas na geladeira e enxotei o gato que insistia em roçar nas minhas pernas.

- Menina! Onde você se meteu?

Ouvi minha tia me chamar com voz repreensiva, o que me fez correr para o seu quarto para ver o que queria. Estava tricotando um caminho de mesa muito bonito.

- Sim tia, o que quer? – perguntei.

- Lia, isso lá são horas de chegar? Fiquei preocupada... Por que demorou tanto?

Baixei os olhos ao procurar o que responder. Me perguntei se faria certo ao lhe contar que havia visto um cavaleiro de ouro bem de perto, e acabei concluindo que era o certo a se fazer. Não havia segredos entre nós... ainda mais porque foi por causa dela que eu tinha ido ao encontro de mestre Escorpião.

- Bem, é que... – dei um suspiro e logo depois sorri carinhosamente para ela. – Acho que a senhora vai gostar de uma novidade.

- Hum! – animou-se, como eu já esperava. Largou o tricô e me fitou com atenção. – Conte-me, meu bem!

Sentei na beira da cama, peguei uma almofada e entrelacei meus dedos por cima dela, movimentando os polegares. Mordi meu lábio inferior na tentativa de embaçar um sorrisinho.

- Quando fui à feira – comecei, olhando para o gato que havia me seguido quando entrei no quarto -, havia uma multidão aglomerada em uma esquina. O senhor Régius me disse que era uma discussão entre mercadores, daquelas que sempre costumam acontecer aqui no vilarejo... No começo não dei importância, nem mesmo quando ele havia me dito que quem iria dar cabo ao problema era um dos cavaleiros de ouro, e não um simples soldado...

- Um dourado? – me interrompeu e eu sorri. Já sabia que ela gostaria de saber disso. – Como você pode ser indiferente a isso?

- A senhora me conhece... Eu sei o meu lugar – respondi, simplesmente. – Só me juntei ao bando de curiosos – ela riu e acabei acompanhando – pois imaginei que a senhora gostaria de saber que vi um cavaleiro soberano...

- E o que sentiu ao vê-lo? – voltou a tricotar enquanto conversávamos, mas sem perder o interesse.

- Ora, o que haveria de sentir senão respeito? – Dei uma pausa e franzi um pouco o cenho. – Mas... – minha tia me olhou por cima dos óculos – confesso que... fiquei envergonhada quando estava perto... bem perto dele.

- Hu-hum! – pigarreou e começou a tossir, me deixando um pouco preocupada. – Bem perto? Chegou a falar com ele?

- É-é... acho que conversamos – ergui os ombros timidamente – , um pouquinho...

- M-minha menina! – pude ver seus olhos lacrimejarem e um sorriso triunfante nascer. – A minha menina falou com um cavaleiro de ouro! Querida, não sabe como isso me deixa feliz!

- Tia, eu não gostaria de dizer isso – movimentei as mãos para baixo -, mas... não se empolgue tanto. Também fico feliz por saber que gostou, mas não acho que seja pra tanto... me entende? Além do que, acho que não começamos muito bem...

- Por quê? Aconteceu algo?

Pedi para que esperasse. Fui até a cozinha e peguei o manto que havia pendurado no espaldar de uma cadeira, passando a mão pelo rasgo e apertando-o contra meus dedos. Voltei para o quarto, olhando para o tecido.

- Aconteceu que consegui rasgar o manto de sua armadura...

O entreguei a ela e alisou o pano com a ponta dos dedos.

- O manto da armadura... – sua voz saia quase num sussurro. – Como pegou?

- Ele me entregou. Acho que percebeu que eu era costureira e me deu pra consertar.

- Vai devolver? – o apertou contra o peito lançando-me um olhar vago.

- Uhum. Tenho que devolver, não posso ficar com isso. Amanhã vou levantar bem cedo, e assim que terminar de preparar o café sentarei na máquina e farei um bom remendo – olhei para o pano e falei devagar: - Nem vai parecer que o rasguei...

Minha tia o tirou do peito e passou novamente os dedos pelo tecido, sorrindo.

- Então Mestre Aiolia vai lhe ser grato.

- Leão? Ah não, não! A senhora se enganou – peguei Teuh, que ronronava em meus pés, e o pus no colo. – Dessa vez, não foi mestre Aiolia quem veio a Rodorio.

- Como não? – se surpreendeu. – Ele é mais freqüente por aqui! Jurava que era com ele que você havia se encontrado!

- Pois não foi... – dei uma risada marota. – Devo contar ao mestre Escorpião os seus enganos? Acho que ele não vai gostar muito de ser confundido!

- Oh! Não faça! – se constrangeu.

- Não farei, tia. Demais, não sei se o verei novamente... não nos deixam passar pelos limites do Santuário. Terei que pedir a algum... soldado – fiz uma careta – que entregue a ele. Não acha melhor fazer assim?

- Sim... para a sua segurança. Não quero que seja punida por desobediência... Mas que pena! Havia ficado tão contente por saber que você trocou algumas palavras com ele, e agora você não o verá mais!

- Melhor assim. Ele no canto dele e eu no meu. – Bocejei. – Estou cansada. Posso dormir na cama com a senhora?

Acariciou meu cabelo e meu rosto e me fez deitar do seu lado confortavelmente, juntamente com o gato.

- Se incomoda? – me perguntou enquanto cobria meu corpo com o manto do cavaleiro.

Fiz um aceno negativo com a cabeça e o puxei para cobrir meus ombros. Pude sentir o forte cheiro masculino bem perto de minhas narinas, e que ia se impregnando na minha pele aos poucos. Respirei profundamente e exalei com tamanha preocupação que franzi o cenho involuntariamente.

- Tia? – a chamei.

- O que foi?

- Sobre esse cavaleiro, Milo... Mestre Milo de Escorpião... O que a senhora sabe sobre ele?

Voltou seu rosto para o meu.

- Nada, minha filha. Sobre este... eu nada sei.

Apagou a luz.

Continua...


N.A Antes de mais nada, agradeço a quem leu este primeiro capítulo de minha nova fanfic.

Quando achei que era hora de escrever uma fanfic com o meu amado, pensei: "Não. Não é uma fanfic só com um dos cavaleiros de ouro, e sim com aquele dourado tão responsável quanto Camus de Aquário, tão forte quanto Aiolia de Leão e Saga de Gêmeos, tão fiel quanto Shura de Capricórnio, tão severo quanto Máscara de Morte e tão sábio quanto Shaka de Virgem. É uma fanfic com o cavaleiro de ouro que o Kurumada fez, aquele cavaleiro que tem suas próprias características mas que não se inferioriza (jamais!) aos outros. É sobre esse mestre Escorpião que quero escrever." Gostaria de dizer, como a mais fiel admiradora do Miro de Escorpião e com a mais pura sinceridade, que já estou cansada de ler fanfics em que ele é taxado como um sem noção (entendam como quiserem) e principalmente como um mulherengo. Não que eu esteja julgando (de forma alguma!) quem escreve esse tipo de texto, mas ao meu ver, isso já está ficando meio fora do foco. Compreendo que essa imagem jovial já está tão introduzida no fandon que fica difícil enxergá-lo de outra forma. Só mesmo sendo um excelente ficwriter para conseguir agradar aos fãs com outros conceitos, e sei que ainda estou longe de chegar a esse patamar. Talvez eu não consiga obter os resultados esperados quanto à aceitação da fanfic, mas estou aqui pra tentar e adquirir cada vez mais experiência. Eu só não poderia deixar passar a oportunidade de tentar mostrar aos outros fãs o que sinto e vejo em relação ao meu honorável mestre Miro. Com o passar dos capítulos creio que irão entender melhor toda essa paixão inexplicável que tenho por ele. Mas se você é o tipo de leitor que realmente gosta de vê-lo do jeito que está acostumado a ver, e não aceita que ficwriter algum mude a ideologia costumeira do fandon, aconselho que não continue a ler esta fanfic, pois não pretendo mudar minha opinião nem meu modo de escrever. Sugiro mesmo é que procure por fanfics que condizem com seu gosto (bom do fandon é essa variedade!), antes que você tenha certos desgostos. Estamos entendidos? Espero que sim, e que me compreendam. Por favor, não me vejam como uma chata e mal educada, eu realmente não sou assim... Só estou botando os sentimentos pra fora. xD

Desabafos à parte, vamos ao que importa (ou talvez nem tanto):

Sei que o personagem-mor não teve uma aparição assim... extraordinária, nesse primeiro capítulo. É que achei por bem explicar pequenos fatos fundamentais para o desenrolar da estória. Além do quê, a narrativa é feita por uma personagem original... Capítulos à frente vai dar muito Escorpião (acredito que seja realmente isso que queiram ver, né!) Mas espero que gostem da Talia tanto quanto eu gosto.

Essa fanfic é muito especial pra mim, mas postá-la hoje, 15/10, meu aniversário, a torna um presente mais importante ainda! E espero ganhar presentes em forma de reviews, tá bom gente! É isso!

Só uma diquinha: Leiam nas entrelinhas.

Agradecimento especial a minha amiga Nelli Lords, que me dá a maior força e me ajuda em tudo que preciso!

Beijinhos pessoas, e até!

Lya M.