As luzes não se acendem como antes – lamparinas, postes de iluminação, lanternas, até mesmo as lâmpadas das casas, nada funciona por conta da falta de energia elétrica –, apenas as estrelas e a Lua brilham como se a desgraça deste mundo não importasse. Pois, diante da imensidão do universo, a aparência das coisas toma, realmente, proporções bem menores. Mas a destruição também é vasta. Alguns líderes religiosos chamaram-na, no começo, de limpeza, disseram que apenas os pecadores estariam condenados, até se infectarem como todos os outros. Sendo um castigo ou não, isto está realmente "limpando" a humanidade.
São Paulo
Dois de outubro, 22:00h
Faço parte de um grupo pequeno: pessoas que já perderam tudo na vida – além da própria vida. Nós saímos à noite, com algumas armas e com toda a coragem que ainda nos resta, matando e dilacerando, cuidando daqueles que são menos cuidadosos. É preciso arranjar comida e roupa, além de um pouco de energia, e é por isso que invadimos mansões, roubando o que nos apetece.
Vozes. Vozes de pessoas vivas. Eles comem, bebem e se divertem a noite toda, julgando estarem seguros no interior de suas fortalezas. Mal sabem que fortificações de concreto não são fortes o bastante. Apesar da casa ser grande – podendo acomodar, aproximadamente, 120 pessoas –, a estrutura estava marcada pelo tempo: alguns quartos já apresentavam buracos e rachaduras nas paredes. Seriam os primeiros a ceder.
Aos poucos, dedos e mãos mortas surgem dos buracos, quebrando os blocos de concreto. Não sei quem foi a primeira vítima, mas logo a matança se espalhou como uma praga e os cômodos foram pintados de sangue. Por um golpe de sorte ou por todos os anos que passei esperando por esse momento, eu pude sair com vida. Quando você vive em meio ao caos, faz-se necessário aprender algum tipo de luta (ou todos ao seu alcance): karatê, boxe, além do le parkour.
Afinal, quando você se vê diante de um portão de ferro com cerca de três metros de altura e que deveria proteger a população dos monstros que perambulam pelo outro lado, é preciso saber como dar um salto poderoso e como amortecer a queda, para que a sua corrida não seja prejudicada. Eu fiz tudo isso, apesar de ser uma mulher com pouco mais de 167 cm, e saí com vida, correndo feito louca para dentro de um matagal.
A cidade, um dia, fora um grande centro econômico e industrial, além de concentrar grande parte da população brasileira. Mas, hoje, tudo o que vemos ao andar pelas ruas de São Paulo são corpos, lixo e mato, além do cheiro de podridão. A capital se tornou um grande depósito de cadáveres e, enquanto corro na direção de algum lugar seguro, enquanto tropeço em raízes e sinto as folhas duras e secas das plantas cortarem a minha pele, torço para que não me encontrem.
That is not dead which can eternal lie,
And with strange aeons even death may die.
― H.P. Lovecraft
