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Para melhor ambientação da história, a cada capítulo indicarei (ou ao menos tentarei indicar) uma música para ser escutada durante a leitura. Costumo ser bastante atarefada, então colocarei um prazo de publicação de capítulo que poderei cumprir, que será do máximo de 15 dias (poderá ser publicado antes).
Link da música no youtube (Lilium, Saint Version) : watch?v=zFaX2NpI6Cs
Boa leitura :)
"Beatus vir qui surffet tentationem..."
(Bem-aventurado o homem que suporta a tentação)
Capítulo 1 – Ora Pro Nobis
02:45
O cheiro de incenso impregnava o ar do grande saguão vazio. Nem todo o calor do mundo serviria para aplacar o frio da torrencial chuva que caía lá fora, serpenteado pelas vidraças coloridas beatificadas como se lacrimassem em dor.
A iluminação das velas em candelabros tão antigos quanto aquela construção, bruxuleava pelas imagens santas, solitárias, iluminando fracamente a figura prostrada no ultimo banco de mogno, ao fundo da igreja. A figura do homem, um único homem ajoelhado, temente.
Os joelhos há muito haviam se tornado vermelhos, as mãos tremiam, fechadas em resiliência, ele não orava. Queimar-se-ia se o fizesse, queimar-se-ia se minimamente o desejasse.
Apertou o tecido úmido do pesado sobretudo que o cobria, sentia-se febril, fadigado. A cada minuto marcado pelo relógio de pulso, uma mão invisível fechava-se cada vez mais em torno de sua garganta. Seu dorso queimava. Castigo, decerto, ao pecador.
02:50
Os olhos eram azuis, semicerrados, desfocados. O suor frio escorria pelo corpo quente e entregava sua dor, audacioso, amaldiçoado. Que ruíssem agora os portões do paraíso por cima de sua cabeça, ousara pisar em território santo. Lá ele esperava, lá ele sofria.
Então ouvi uma forte voz que vinha do santuário e dizia aos sete anjos: Vão derramar sobre
a terra as sete taças da ira de deus. O primeiro anjo foi e derramou a sua taça pela terra, e
abriram-se feridas malignas e dolorosas naqueles que tinham a marca da besta. (Apocalipse 16:1-2)
Três estigmas rasgaram-lhe o rosto de cada lado, marcando a miséria de uma criatura de Deus expulsa do reino dos céus, um anjo infeliz, um demônio decadente. A pele das costas ameaçava borbulhar. As asas se revelariam, se já não houvessem sido arrancadas.
Patético
Cala-te.
Pensas que Ele é burro? Pensas que tu o enganas? Enlouqueceste?
Enlouquecera? Talvez.
Há meses vem te submetendo a esta tortura, criança. E para quê? Não pode tocá-la com tuas mãos amaldiçoadas.
Arfava curvado, como escorasse o peso da cruz dos pecados. Olhou o relógio enferrujado.
02:55
Não poderia tocá-la sequer se não fossem tuas mãos amaldiçoadas. Será que não entende?
Entendia, e não se importava. Já não podia decair mais. De que adiantava, agora, negar o pecado que o condenara? Não poderia vivê-lo mas decerto poderia senti-lo, mesmo que ainda não o bastasse.
Tu és nada além de um covarde.
Sim. Covarde era. Se contentava em definhar, arder entre os pilares celestiais, se isso significasse uma oportunidade para vislumbrar sua menina. Como um covarde restava a semana espreitando-se nas sombras, acumulando forças para o sétimo dia.
Em seis dias o Altíssimo trabalhou no mundo a sua palavra, o sétimo, descansou.
Então abençoou Deus o sétimo dia e o santificou, porquanto nele descansou depois de toda
a obra que empreendera na criação. (Gênesis, 2:3)
Dominações e Potestades redobrariam suas guardas, mas pouco poderiam fazer sob a hora do demônio.
03:00
A agonia se dissipou, o calor do fogo fundiu-se ao corpo ereto e os olhos abriram.
Vermelhos. Sanguinolentos. Não ousava ficar de pé, entretanto.
A voz calara, subjugada. Ainda assim suspirou, a febre não iria embora tão cedo.
Levantou o rosto e foi então que finalmente a viu. Agarrada às pilastras do altar sagrado, como uma tábua de salvação, ela o observava. As mãos pequenas pressionadas fortemente contra a frieza do mármore como se desejasse parti-lo em dois. Percebeu-a estremecer quando seus olhares se cruzaram.
Sim, a febre não iria embora tão cedo.
Esgueirou-se pelo chão, aproximando-se daquela criatura divina, o motivo de sua perdição e decadência, e também de salvação.
O primeiro degrau tornara-se o limite da sua barreira imaginária, dali ele não poderia avançar. Sentiu os olhos arderem na lembrança desesperadora de que jamais suas mãos suplicantes poderiam acariciá-la. Jamais um demônio poderia tocar um anjo.
A luz que emanava quando ela se aproximou era cálida e iluminou o ouro de seus cabelos rebeldes, os únicos resquícios de sua origem divina, como se desdenhassem da ordem do Pai.
Ali ela restava, leve, branca, imaculada. A imagem celestial, a perfeita conserva de Deus e ainda assim tão perigosamente dele quanto ele era seu. A alguns degraus de distância, os olhos brancos derramavam pesadas lágrimas prateadas e o anjo caído sentiu queimar quando desejou beijá-las. Os cabelos negros como a noite seguiam em cascata por suas costas, uma mecha despencava por cima do ombro macio como em uma leve carícia, zombando daquele infeliz que nada poderia fazer além de olhar e desmoronar.
- Por que vens aqui? Não vê que te adoece?
- Ah, pequena... o que me adoece é minha maldição. Te ver é o único oásis que ainda tenho no meu deserto, não compreendes?
- Tu ardes, eu posso ver.
- E tuas fugas em nada abrandam meu fogo.
E o anjo se abaixou, como que para tentar amenizar a distância que aqueles degraus impunham, e o demônio contorceu-se no chão ao sentir o cheiro de natureza que ela exalava. Castigo, audacioso, pecador.
Abençoada que era, a moça possuía o olhar poderoso do criador, elaborado para cuidar e velar. Olhar este que sentia sobre sua cabeça dia e noite, penetrando em suas entranhas e desvendando sua alma. Enquanto a ele, pobre bastardo, esperaria, ansioso, um único momento para vê-la. Apertou os punhos sentindo-se desprezível por não conseguir velá-la, naquele ínfimo espaço de tempo, apenas desejá-la.
- Isso é insano.
As asas se ergueram, puras, ameaçadoras. Cada pena o julgando como ser indigno que era. Soluçou. Sim, que pingo de sanidade haveria de ter entre um anjo celestial e um demônio sujo? Que tipo de sensatez afloraria de um desejo luxurioso em possuir uma criatura tão sagrada? Maculá-la com sentimentos tão impuros e mesquinhos para saciar aquele inferno que queimava intermitente dentro de si.
Olhos perolados o encaravam de maneira suave, triste.
Amor é um sentimento desprovido de perfeição. É egoísta, pecaminoso, humano. É desejo, carne, ruína. Não é digno das criaturas mais perfeitas do Senhor. Anjos rebeldes sucumbentes a tentações tão humanas tornar-se-ão nada além de miséria.
As mãos dela apertavam-se junto ao peito. Apreensiva, desceu um degrau.
- Para! Fica longe. Há penúrias para aqueles que desdenham das regras dos céus. – Ele suava, tremia. Qualquer proximidade a um ser sagrado o atormentava. Aquele, em especial, o desvairava com sua distância. – Temo por ti. Não podemos.
Pois Deus não poupou os anjos culpados, mas os precipitou, entregou-os aos antros
tenebrosos da escuridão, guardando-os para o julgamento (2 Pedro 2:4)
- Não o faremos, tampouco.
- Não te aproximas.
- Se tocar-te findarei teu sofrimento.
- Se tocar-me será tua perdição, menina. - O coração batia-lhe descompassado no peito, feito tambor. – Pois ainda hei de me descontrolar sob a sensação da tua pele.
E quando percebeu os olhos vermelhos nublarem por um momento, rompendo lágrimas de sangue impuro, o anjo soube que ele falara sério. Pobre criatura vil, ousando vislumbrar o servo de deus que não se materializava em sua presença.
- Apenas prometa-me que tu não mais desaparecerás. – Ela recuou, angustiada e ele repetiu, como um mantra num sopro – Apenas prometa-me.
Seus olhos encontraram-se por instantes antes dela fechá-los e se fazer matéria em sua frente. Os pés delicados fincaram-se no chão, as asas fecharam-se em suas costas. A luz que emanava diminuiu, o rosto corou, o calor aumentou. O coração bombeou quente, humano.
Oh Deus, mesmo designado besta, monstro, animal, ainda sim apenas desejava tê-la. Beijar, até roxos tornarem-se os lábios rosados, tocar, até vermelha tornar-se aquela pele tão branca, fincar os dentes nela, prendê-la e nunca mais deixá-la ir.
Que os céus me ajudem.
Se ela o mostraria a candura do céu, ele a conduziria pelo fogo do inferno.
