Nome da fic: Um pequeno contratempo
Autor: Magalud
Censura: PG-13
Gênero: Drama, toques de comédia.
Spoilers: Todos os cinco livros e todos os três filmes. Com modificações.
Desafios: número 88. Severo, por arte de um feitiço, vira criança de novo,
mas com toda a memória de seus conhecimentos. Entretanto, como isso acontece
quando ele está em poder de Lord Voldemort, este decide enviá-lo para um
orfanato trouxa. Lá ele é adotado e passa a viver em um lar trouxa. E agora?
Conseguirá ele adaptar-se? Acreditarão as pessoas quando ele disser que é
homem feito e bruxo? Como seria essa família trouxa? O que eles fariam? Do que
gostariam? Ele teria irmãos? (Jobis)
67. Acidente faz Snape voltar a ter 4 anos de idade. (Nielle)
Resumo: Snape volta a ter quatro anos de idade
Agradecimentos: Thá, minha superbeta e Jana, minha beta querida!
Disclaimer: Esses personagens são de JKR, eu não quero nem vou ganhar dinheiro
com eles.
Esta fic faz parte do SnapeFest 2004, uma iniciativa do grupo SnapeFest, e está
arquivada no site e no meu site
Um pequeno contratempo
Capítulo 1
- Severo, eu quero uma prova de lealdade e confiança.
Severo Snape realmente não tinha como recusar a ordem, não diante de todos os Comensais reunidos na Mansão Riddle. O tom de Lord Voldemort não deixava margem para dúvidas – ou resistência. Além do mais, fazia tempo que Snape não trazia nenhuma informação útil sobre a Ordem da Fênix. O Lord das Trevas estava ficando impaciente por ter novos alvos para atacar o Bem, e Snape não estava contribuindo.
- Sim, meu senhor.
Aquele não estava sendo um bom dia para Snape, desde o começo. O inepto Longbottom tinha explodido outro caldeirão, Harry Potter o incomodara, Alvo o tinha chamado para outra daquelas conversas de "Você precisa relaxar, Severo". E desde que chegara à reunião imprevista de Comensais, Voldemort parecia estar de péssimo humor.
Agora, isso.
- Vou lhe fazer um feitiço e enviá-lo ao mundo trouxa.
Lugarzinho detestável, pensou Snape.
- Minha missão?
- Voltar ao nosso mundo, se conseguir! – ele puxou a varinha e apontou para Snape – Puer terragenum!
Um raio brilhante saiu da ponta da varinha e a claridade adquiriu um formato azul ao envolver Snape, que gritou de dor. Uma grande explosão cegou os Comensais durante alguns segundos. Quando eles puderam enxergar de novo, viram apenas as roupas de Snape no chão. Muitos deles estavam assustados.
- Milorde... – disse Lúcio Malfoy, mais branco que sua máscara de Comensal – Não o Puer terragenum!...
- Não se preocupe, Lúcio – disse Voldemort, sem se abalar - Severo é muito engenhoso, eu tenho certeza que vai se sair dessa. Por isso é que eu preciso de um favor seu.
Mas Lúcio mal prestava atenção. A pilha de roupas no chão começava a se mexer, e do meio dela surgiu uma criança.
Um menino, para dizer a verdade, de uns quatro anos. Seu cabelo era preto feito carvão, os olhinhos também. Ele era magrinho e provavelmente era pequeno para sua idade. Ele olhou em volta e o nariz puxadinho para baixo não deu a nenhum dos comensais qualquer dúvida sobre quem era aquele menino.
Severo Snape.
Por um instante, Snape não entendeu direito o que tinha se passado. Ele estava em pé, então como sentia que estava próximo do chão? Por que todos pareciam ser tão altos, quase inatingíveis? Ele ergueu a cabeça e olhou para cima. Voldemort o olhava com uma satisfação perversa nos olhos verdes, e Lúcio Malfoy, a seu lado... Bom, Lúcio estava com a máscara de Comensal, então ele só viu os olhos cinza brilhando – de puro desprezo.
Num átimo, Snape compreendeu tudo: ele tinha sido atingido com o Puer terragenum, um feitiço análogo ao Puer infringenum – um feitiço que fazia as pessoas voltarem a ser crianças durante algum tempo, o que as fazia reviverem suas sensações de criança. A diferença entre os dois é que o Puer terragenum não mexia na memória do atingido: isso porque ele era um feitiço permanente, passível de reversão apenas com potente contra-feitiço.
Para coroar sua suprema humilhação, Snape tinha ficado pequeno demais para a roupa e estava nu debaixo das suas longas capas.
Ele chamou:
- Milorde?
A próxima constatação era cruel.
Sua voz, um de seus instrumentos de trabalho mais preciosos, era a de uma criança. Até que era agradável para a voz de uma criança de quatro anos, não chatinha e fininha que irritava como uma lâmina nos ouvidos. Mas ainda assim, não era mais a voz capaz de seduzir só no seu tom, ou de atemorizar alunos do primeiro ano só com sua intensidade, sem que ele precisasse erguer a voz para silenciar uma turma inteira de crianças de 11 anos.
Voldemort virou-se para ele e apontou a varinha, dizendo:
- Ajustate!
Imediatamente, as roupas de Snape se adaptaram ao tamanho dele e o pequeno garoto no chão parecia uma miniatura do Severo Snape que todos conheciam. Estranhamente, porém, o cabelo estava bem assentado e assemelhava-se ao corte Romeu – ele parecia um minúsculo pajem medieval.
Os Comensais estavam calados, mas a tensão no ar era palpável.
- Lúcio – chamou Voldemort – Pegue-o no colo.
Houve uma ligeira hesitação. Lúcio Malfoy tinha verdadeiro pavor de criança. Ele se gabava do fato de jamais ter posto Draco no colo depois que o menino tinha sido batizado.
Sem tirar sua máscara, Malfoy agachou-se e pegou Snape pelas axilas, elevando-o e ajeitando-o contra si. Com as mãozinhas pequenas, Snape não pôde evitar tocar na máscara. Lúcio praticamente rosnou para ele, e Severo parou.
- Meu servo Lúcio – disse Voldemort – Quero que você o entregue a um orfanato trouxa para ser adotado. Será um teste para que ele reafirme sua lealdade e seu lugar entre os meus Comensais. Ah, e já que você estará entre trouxas, Severo, não vai precisar mais disso – ele apontou a varinha para a de Severo – Virga evanesca!
A varinha se desfez em pleno ar.
- Não! – o menino gritou, sem conseguir se controlar, mexendo-se no colo de Lúcio.
Voldemort soltou um sorriso odioso:
- Ah, sim. Você vai notar que rapidamente seu controle emocional vai falhando, embora suas memórias se mantenham intactas. Ser criança nunca foi fácil para você, Severo, eu sei, mas quem sabe, agora que você vai ser trouxa, você tenha lembranças mais felizes. E se algum dia conseguir voltar para mim, faça isso – ele se virou para Lúcio – Podem ir agora.
Lúcio apertou Severo contra si e Aparatou.
- Faça o favor de me acompanhar.
- Você não pode me levar no colo? – rosnou Snape, o que era uma façanha para um menino de quatro anos – Minhas pernas estão muito curtas.
- Isso não é problema meu – foi a reposta fria – O nosso Lord parece estar muito desgostoso com você e eu não quero desagradá-lo.
- Lúcio, você precisa me ajudar.
- Desculpe, Severo, mas minhas ordens são explícitas. E ainda terei que lidar com trouxas por sua causa. Eu odeio essa gente, você sabe! Só querem dinheiro. Ainda bem, que eu tenho algum dinheiro trouxa para emergências.
- E eu? Vou ter que viver com eles.
- Bom, você não é um espião? Aja como um.
- É difícil. Esse corpo está cheio de sensações estranhas. Sinto meu controle emocional falhando.
- Bom, chegamos. Faça o melhor para se controlar.
Os dois pararam em frente a um portão de uma casa antiga, com um pequeno jardim na frente. Como era de noite, ela parecia escura e ameaçadora. Lúcio abriu o portão. Severo seguiu-o até a porta de entrada, sentindo-se apreensivo. Não gostou daquele lugar. Lúcio bateu à porta e esperou algum sinal de vida lá de dentro. Uma luz se acendeu e em seguida, uma mulher despenteada abriu a porta:
-Sim?
- Desculpe a hora, mas vim de longe – disse Lúcio – e me disseram que aqui haveria a solução para o meu problema – ele olhou para Severo, que ergueu o olhar para a mulher diante dele. Ele a olhou com atenção.
Ela parecia alta (bom, todos pareciam altos), era magra, talvez uns 40 anos, enrolada num roupão de baixa qualidade. Severo viu chinelos gastos e meias puídas. A mulher abriu um sorriso calculista entre os dentes amarelados.
- Claro, senhor. Por favor, entre.
Lúcio ultrapassou a porta, Severo o seguiu e olhou para a casa velha, com pisos de madeira. Visivelmente desconfortável com o ambiente, Lúcio foi direto ao assunto:
- Não posso me demorar. O menino perdeu os pais num recente incêndio.
- Por isso ele está de luto – observou a mulher – Ele não tem papéis?
- Tudo foi queimado. Gostaria que ele fosse adotado para viver com uma família... er, boa.
- Claro, claro. E o senhor é...?
- Um vizinho. Ele ficou comigo uns dias, mas agora precisa seguir sua vida. Moro longe, perto de Wiltshire, e seu estabelecimento me foi muito recomendado.
- Não se preocupe, senhor – mais um sorriso cheio de dentes amarelos – Cuidaremos bem do garoto.
- Excelente. O nome dele é Severo Snape, e ele tem quatro anos.
- Ele não tem roupas ou brinquedos?
- Tudo queimado, infelizmente. Bom, eu preciso ir agora.
Severo sentiu uma aflição no estômago:
- Lúcio, não!
- Ora, ora, Severo, nós conversamos sobre isso. Agora você vai ficar com a moça boazinha e ela vai lhe arranjar novos pais.
Sem conseguir se controlar, ele pediu:
- Não me abandone, por favor!
- Seja um homem, Severo – repreendeu – Talvez um dia nós nos encontremos de novo. Adeus.
A mulher levou Lúcio até a porta, e Severo sentiu lágrimas se formando em seus olhos. Ele tinha que dar um jeito no seu descontrole emocional, e logo. Afinal de contas, ele não era uma criancinha de quatro anos, não era!
A mulher voltou e pegou-o pelo braço:
- Venha, garoto – o tom simpático e falso tinha sumido de sua voz – Chegar a essa hora na noite! Onde já se viu? Pelo menos ele deixou muito dinheiro – tive algum lucro!
Severo ergueu o olhar e viu que as mãos dela estavam cheias de notas dobradas. Pareciam muitas.
- Você pode me chamar de Srta. Dóris. Vou colocar você junto com os mais velhos essa noite, e depois vou mudá-lo para o alojamento dos pequenos.
- Sim, Srta. Dóris.
- E mantenha a voz baixa. Não queremos acordar ninguém. Você vai manter sua cama em ordem e suas roupas no lugar. Infração serão severamente punidas. Em breve você vai ser entrevistado pelo Serviço Social. Eles vão arrumar uma família que queira adotá-lo.
- Quanto tempo até eu ser adotado?
- Isso é com o Serviço Social. Mas porque está fazendo todas essas perguntas? Você só tem quatro anos!
Com isso, Severo teve que calar a boca. Crianças não eram ouvidas entre os trouxas.
A Srta. Dóris lhe deu um pijama e o levou até um dormitório escuro cheio de camas enfileiradas, como se fosse um estabelecimento militar. Havia meninos dormindo nas camas, mas alguns disfarçadamente abriram os olhos para ver o que estava acontecendo.
Dóris foi até o fim do dormitório, onde havia camas vazias. Ela parou na última e disse:
- Todos são acordados às 6h. Os mais velhos vão para a escola depois do café, mas você ficará com os mais novos. Espero que ajude a tomar conta dos menores.
- Sim, Srta. Dóris.
- Fique longe de problemas e você se dará bem. Está com fome?
- Não, Srta. Dóris.
- Então vá dormir.
Sem dar boa noite, ela o deixou para se trocar e colocar-se sozinho dormir. Naquele momento, ao ver-se completamente sozinho, Severo sentiu-se indefeso. Sem poder controlar o medo do que seria sua existência dali para frente, ele chorou silenciosamente, lágrimas correndo pelas faces muito alvas de seu rostinho infantil.
- Pssst – veio uma voz à direita – Não faça barulho.
Severo se virou. Era um menino, erguido nos cotovelos que o encarava. Deveria ter uns nove ou dez anos.
Severo fungou e se enfiou debaixo das cobertas finas e baratas. Ele tentou pensar como poderia sair daquela situação, e se juntar novamente ao mundo dos bruxos, mas no momento, ele não conseguia pensar em nada, de tão apavorado que estava. Tudo lhe era desconhecido, e ele se sentia tão pequeno, tão desprotegido, com aquele mulher tão grande e má a ameaçá-lo. Olhando para o teto da casa antiga, ele imaginou o que seria dele dali para frente.
O menino à direita se sentou na cama e cochichou:
- Por que está aqui?
- Meus pais morreram. E você?
- Minha tia não me quis. Você não tem ninguém?
- Não.
- Nem eu. Mas você é pequeno. Vai conseguir ser adotado logo. Eu não, já sou grande.
- Como é o seu nome?
- Joey. E o seu?
- Severo.
- Nossa, que nome estranho. Tomara que seus novos pais mudem o seu nome.
- Eu não quero mudar de nome. Durante toda minha vida, eu tenho sido Severo.
- Você é estranho. Mas é legal. Vou te dar um conselho: fique longe do Moe. Ele gosta de judiar dos pequenos que nem você.
- Vou me lembrar.
- Agora vou dormir. Tenta dormir um pouco também.
- Tá bom. Boa noite, Joey.
Snape se virou para o lado, tentando adormecer apesar dos pensamentos atribulados de seu coração e dos pequenos ruídos que os garotos adormecidos faziam. Depois de muito tempo, ele conseguiu conciliar o sono.
Capítulo 2
Quando abriu os olhos na manhã seguinte, Severo viu que já era dia. Mais do que isso, viu diversas cabeças a encará-lo curiosamente.
- Ele acordou.
- Quem é você?
- Severo Snape.
Um dos garotos olhou para o outro e disse:
- Ele é muito pequeno.
Um garoto maior, de cara de poucos amigos, olhou para ele e perguntou:
- Você vai para a escola?
- Não – respondeu Severo, tentando não se sentir intimidado com tantos garotos tão maiores do que ele.
- Você chegou ontem?
- Cheguei de noite.
- Foi você que começou a choramingar e a ter pesadelos de noite.
Droga, ele tinha falado alto?
- Eu tive pesadelos, sim.
- Você tem dinheiro?
- Não.
- Então você vai fazer um servicinho para mim – disse o garoto desagradável – Meu nome é Moe, e todos aqui me obedecem. Você também vai me obedecer.
- Por que eu faria isso?
Os demais garotos começaram a rir.
- Ih, olha só o pivete!
- Qual é, garoto? Vai encarar?
Moe também parecia estar se divertindo:
- Garoto, você é novo então não sabe como as coisas funcionam por aqui. Por isso é que eu não vou quebrar sua cara agora. Mas se eu chegar da escola e você não tiver roubado pelo menos três cigarros da Bruxa Velha...
- Lá vem ela!
Bruxa? Tinha alguma bruxa ali?
A bruxa entrou – e era ninguém menos do que a própria Srta. Dóris, enfiada num guarda-pó cinza escuro, e com cara de poucos amigos:
- Que bagunça é essa?
A chegada de Dóris ao dormitório fez os garotos todos se colocarem em posição de sentido. Instintivamente, Severo se levantou e ficou ao lado de sua cama. Ela olhou para todos, com uma expressão rigorosa:
- Vejo que já conhecem seu novo colega. O nome dele é Severo e ele não vai ficar nesse alojamento, e sim com os menores. Venha comigo, Severo, eu vou lhe mostrar onde fica o seu quarto. Traga suas coisas.
De pijaminha mesmo, ele catou todas suas roupas, enfiou o sapato e foi com ela, sob os olhares dos demais. A cara de Moe dizia claramente que o assunto entre eles não estava acabado.
Com trinta anos de atraso, Severo sabia que estava para sofrer abusos nas mãos de colegas.
Pelo menos não era abuso dos pais. Ele estremeceu ao se lembrar de seu pai e algumas das coisas que ele o tinha feito passar.
O alojamento era consideravelmente menor do que os garotos de maior idade. Ali só havia oito camas, todas pequenas e adaptadas ao tamanho de seus ocupantes. Os garotinhos estavam levantando naquele horário, e alguns deles sorriram para Severo.
- Atenção – disse a Srta. Dóris para o grupo – Hoje vocês ganharam um novo amiguinho e o nome dele é Severo. Ele é mais velho do que alguns de vocês, e vai ajudar naquilo que vocês tiverem dificuldade.
Um lourinho que aparentava uns cinco anos perguntou:
- Quantos anos você tem?
- Quatro.
- Eu tenho cinco – ele disse, orgulhoso – Vou ajudar a tomar conta de você.
- Eu não preciso de ajuda! – inflamou-se Severo.
A Srta. Dóris interveio:
- Aqui é assim, Severo. Os mais velhos ajudam os mais novos. Mark vai ajudar a cuidar de você e lhe ensinar como são as coisas aqui. Você pode cuidar de Stevie, Maurice e dos outros. Calvin vai ajudar Mark. Agora arrumem suas camas. Severo, suas coisas ficam ali.
Ele recebeu uma prateleira para colocar suas coisas e depois de se vestir com as roupas simples que a Srta. Dóris lhe deu, ele desceu para o café da manhã na sala comum.
Nem de longe aquilo lembrava o Salão Principal de Hogwarts. Primeiro porque era pequeno. E todas as crianças estavam ali. Os mais velhos deveriam ter 11 anos. Moe e sua turma lançaram olhares ameaçadores para Severo, que ajudou Stevie a se servir de mingau. Era o que eles tinham para comer: mingau de aveia e um suco ralo de cenoura.
Depois do café, os mais velhos foram para a escola, e os novos, como Severo, iam ajudar nas tarefas do orfanato. Era trabalho duro para crianças tão pequenas, mas Severo ficou admirado que os garotos faziam tudo sem reclamar. Pequenos como eram, eles podiam limpar banheiros e alcançar partes inacessíveis para um adulto. Também arrumavam os escritórios e limpavam tapetes.
Só depois do almoço é que eles receberam permissão para brincar. Os mais novos estavam cansados e com sono, Severo percebeu. Ele mesmo, reagindo ao corpinho de 4 anos, também gostaria de uma sonequinha. Mas a brincadeira foi boa. Ainda mais que foi no quintal.
Na verdade, era um pátio pequeno, sem grama ou piso, que mal comportava todas as crianças do orfanato. Era terra, e como tinha chovido, havia lama em muitos lugares. Eles foram severamente advertidos para não entrar com lama na casa.
Os meninos queriam jogar algo estranho, um jogo que consistia em ficar chutando uma bola velha com o objetivo de fazê-la ultrapassar dois tijolos no quintal. O nome do jogo era futebol, e Severo nunca vira aquilo na vida. Em nada se parecia com quadribol, não se podia tocar a bola. Logo Severo foi marcado como mau jogador, e o máximo a que ele podia aspirar era a posição de goleiro – apanhador da bola, encarregado de impedi-la de ultrapassar os dois tijolos.
Eles brincaram durante algum tempo, mas no meio da tarde os mais velhos voltaram da escola. Começava aí o flagelo de Severo. Ele estava tomando conta de Stevie, limpando-o da lama do futebol, quando foram cercados pela turma do Moe. Steve ficou todo nervoso, mas Severo lhe disse calmamente:
- Steve, espere por mim no alojamento.
O pequeno protestou, de olho nos mais velhos:
- Daqui a pouco é o jantar. Vem comigo, Severo.
Moe disse ao menininho:
- Vai logo, pirralho. Eu quero conversar com o cara novo.
Stevie entendeu a indireta e saiu rapidinho. O grupo, uns cinco garotos, cercou Severo num círculo. Moe disse:
- Conseguiu o que eu pedi, baixinho?
- Eu nem tentei – replicou Severo calmamente – Não sei onde a Srta. Dóris guarda seus cigarros e eu certamente não vou roubá-los apenas porque você quer.
Houve um minuto de tensão. Moe ficou vermelho.
- Escuta aqui, baixinho. Aqui você faz o que eu mando, se não você vai se dar mal, entendeu?
Desafiador, Severo olhou para cima (pois Moe era bem mais alto que ele) e encarou-o dentro dos olhos, dizendo com uma voz firme:
- Você não me mete medo.
- Pois devia – disse Moe, ainda mais vermelho – Vou te dar uma lição agora mesmo.
Mal ele terminara de pronunciar as palavras, Severo arremessou contra Moe, usando os ombros para atingi-lo no meio do estômago, derrubando-o no chão e tirando seu fôlego. Pega de surpresa, a turma viu quando o pequeno Severo usou toda a sua força para desferir murros com as mãozinhas direto no fígado de Moe.
O garoto grande gemeu, surpreso. No chão, Moe chutou Severo para longe, e o pequeno rolou no chão. A gangue riu alto, e os outros garotos se aperceberam que havia uma briga rolando. Todos vieram para perto, a fim de ver a disputa.
Moe era grande e desajeitado, mas ele era forte. Severo, por outro lado, era bem mais fraco, mas era pequeno, ágil e esperto. O chute, porém, o fez sentir as costelas. Os garotos gritavam numa torcida feroz quando alguém da gangue do Moe pegou Severo pela camisa e empurrou-o na direção de Moe, que se levantava.
Severo não teve dúvidas: partiu para cima do brutamonte.
O grandalhão estava preparado, e Severo recebeu mais um golpe na cintura. Calculando suas chances, ele se mexeu, tentando sair do alcance de Moe, esperando que algum adulto viesse apartar a briga. Só o que ele tinha que fazer era sobreviver até lá. Ajudava que a gangue aparentemente tinha recebido ordens de não se intrometer na briga.
Em meio à gritaria cada vez mais alta dos garotos, Moe acertou Severo no rosto, fazendo o pequeno sonserino cambalear para trás, rumo à audiência excitada. Ágil, Severo resolveu se jogar no chão e rolar pela lama para evitar os chutes do grandão, e foi nessa hora que uma voz masculina adulta desconhecida surgiu acima dos gritos da meninada:
- Parem já com isso! Parem agora! Parem com isso!
Severo sentiu um forte puxão na camisa, e foi totalmente erguido, balançando as pernas e procurando se equilibrar.
- Quem é você?
Só então Severo olhou para o homem que apartou a briga – e empalideceu. Se Argo Filch, zelador de Hogwarts, tinha um irmão gêmeo, esse irmão seria ele. Os dois eram muito parecidos, os mesmos dentes horríveis e a cara assustadora, exceto que o sujeito do orfanato tinha o cabelo crespo curto e castanho. Ele olhava com cara de poucos amigos para Severo.
- Eu não conheço você.
Um dos garotos disse:
- Ele é novo, Sr. Richard.
- Chegou hoje.
- Novo e já está arrumando encrenca, é? Tsk, tsk, tsk. Começou mal, garoto – na outra mão, ele segurava Moe pela camisa – E você, Moe? De novo brigando em garotos da metade do seu tamanho?
- Ele me provocou, Sr. Richard.
- Não é verdade! – Severo não pôde se conter, ainda esperneando – A culpa é dele!
- Moe, eu não acredito em você – disse o tal Richard – O baixinho mandou ver, hein? Quem diria, tão pequenininho e não se intimida. Bom, tem alguém machucado?
Severo tinha um olho roxo e suas costelas doíam, mas ele não falou nada. Moe também ficou de bico calado.
O caso foi levado à Srta. Dóris, que determinou que os dois limpassem as latrinas depois do jantar. Eles se lavaram (estavam imundos de lama) e fizeram a refeição. Severo foi recebido como um herói pelos menores. Aparentemente, ninguém jamais tinha enfrentado Moe antes.
Dali para a frente, a vida de Severo se resumiu a fugir das provocações e das armadilhas de Moe. E foi assim que ele descobriu que sua magia não o abandonara.
O incidente mais revelador foi uma tarde no pátio. Severo estava com Stevie e de repente, ele foi empurrado no chão. Moe, que o havia empurrado, e sua gangue riram-se alto, apontando para Severo, no chão.
Como sangue fervendo de ódio, o pequeno sonserino lançou um olhar ferino para Moe, que se afastava ainda rindo. Foi quando ele sentiu uma espécie de arrepio, uma energia a percorrer-lhe o corpo. Moe foi ao chão porque os cadarços de seus sapatos estavam repentinamente amarrados um no outro. Ele xingou, esbravejou, cuspiu ódio pelas ventas, mas ninguém conseguiu explicar como isso tinha acontecido.
O coração de Severo acelerou-se. Instantaneamente, ele soube que tinha feito magia sem varinha. Havia esperança.
A partir daquele momento, o pequeno Severo procurava se esforçar para realizar pequenos feitiços, quando estava sozinho no pátio, ou de noite, debaixo das cobertas. Ele conseguiu mover uma pedra sem ninguém perceber e derrubar um copo de água (de Moe). Quanto mais ele ficava com raiva, ou ficava fora de controle, mais rápido ele conseguia fazer o feitiço.
Essa era praticamente sua única alegria. A vida no orfanato era dura mesmo quando Moe estava fora. Ele passava muito tempo com os menores, e logo se sentiu protetor deles. Stevie era o mais apegado a Severo, e chegou ao ponto de não comer sem Severo para ajudá-lo.
Fazia mais de uma semana que Severo chegara ao orfanato e parecia um ano. Mas naquele dia, logo no café da manhã, a Srta. Dóris chegou perto dele e disse:
- Você deve tomar um banho, vestir as roupas com que veio para cá e esperar meu chamado. Hoje é um dia importante para você. A encarregada do Serviço Social vai olhá-lo para colocá-lo no programa de adoção. Faça o favor de não me envergonhar.
- Sim, Srta. Dóris.
A cabeça de Severo fervilhava de idéias quando ela saiu. Uma chance de sair daquele lugar!... Adoção! Sim, ele podia conseguir. Só o que ele precisava fazer era agir como uma criança legítima.
O problema era que isso estava se tornando cada vez mais fácil sem ter que fingir. Embora ele retivesse seus conhecimentos e memórias, cada vez mais ele sentia a resposta emocional de uma criança de quatro anos. Ele se lembrava de sua mãe, da ternura que ela lhe evocava, e do seu pai, do terror que ele lhe impunha. Ainda assim, enquanto ele se vestia como ordenado, ele tentou "incorporar" mais o espírito infantil, pensando no que a assistente social esperava ver: um menino órfão, de 4 anos, recém-chegado num orfanato. Ele lembrou que o olho ainda estava um pouco roxo, e pensou que podia dizer que caiu no chão. Afinal, ninguém ia querer levar para casa um garoto brigão.
Foi pensando nessas coisas que ele foi para a sala de recreação, onde brincou com Stevie enquanto esperava o chamado da Srta. Dóris.
Capítulo 3
Eles estavam empilhando blocos quando a Srta. Dóris chegou à porta da sala de recreação e avisou:
- Severo, venha comigo. Stevie, fique com Calvin.
O pequenino fez bico de quem iria chorar, mas Severo cochichou:
- Eu volto logo.
Severo esperou Stevie voltar a empilhar os blocos para seguir a Srta. Dóris, suas pequenas capas fazendo com que ele lembrasse com uma pontada de dor dos tempos felizes de Hogwarts, e como seria bom ter 37 anos novamente.
A mulher disse, parecendo agitada:
- A assistente social me fez uma surpresa, e trouxe um casal interessado em um menino. Você faça o favor de se comportar bem, ou eu vou dar a preferência para Stevie, que é lourinho e todos querem uma criança loura, entendeu?
- Sim, srta. Dóris.
- Agora faça cara de coitadinho e conquiste aqueles otários.
Severo concordou com a mulher, mas nunca imaginou, em toda sua vida, que teria que usar o charme e a inocência para conquistar alguém. Simplesmente não era o seu estilo. Imagine, Severo Snape dependendo de suas qualidades infantis para conquistar alguém. Engolindo em seco, ele a seguiu para dentro do escritório.
Havia três pessoas desconhecidas ali. Três adultos, e como todos os adultos que Severo via, pareciam altos, talvez por isso parecessem ameaçadores.
A Srta. Dóris abriu um grande e falso sorriso e disse:
- Aqui está nosso mais novo garoto. O nome dele é Severo Snape.
Uma moça mais jovem que a Srta Dóris abriu outro imenso sorriso para ele e disse:
- Oh, meu Deus, como ele é pequeno. Olá, Severo, como vai?
- Bem – disse ele.
A Srta. Dóris apresentou-a:
- Severo, essa é a Srta. Jade, do Serviço Social. Ela veio aqui só para te conhecer.
- Obrigado – disse ele, olhando para os outros ocupantes da sala, e o casal sorriu para ele também.
- Esses são o Sr. e a Sra. Campbell – continuou a srta. Dóris, naquele tom falso – Eles também estavam curiosos para ver você.
Severo disse:
- Muito prazer.
A Srta. Jade abaixou-se para ficar mais perto dele e disse:
- Severo, você pode se sentar ali. Queremos conversar com você.
Ele obedeceu, e tentou controlar-se, olhando de soslaio para o casal que acompanhava tudo com atenção. Ele se ajeitou na poltrona, e as perninhas dele ficaram balançando, bem acima do chão. Ele tentou controlar as pernas para não balançarem.
- Você estava na escola?
Ele respondeu:
- Eu não vou à escola. Escola é para criança grande.
A Srta. Dóris disse:
- Ele brinca com os menores. Precisa ver como ele gosta de cuidar dos pequeninos!
A Srta. Jade disse:
- Madame, nós preferimos que a criança fale por si mesma.
- É claro, é claro.
- Severo, você sabe quem sou eu?
Ele fez que não com a cabeça e ela respondeu:
- Eu procuro pessoas simpáticas como o Sr. e a Sra. Campbell, que estão procurando menininhos como você para adotar. Você sabe o que é adoção?
Ele olhou para ela e tentou ser o mais infantil possível:
- É ganhar novo papai e nova mamãe?
- Isso mesmo. Vamos ver se o Sr. e a Sra. Campbell vão ser seu novo papai e sua nova mamãe.
Ele olhou para o casal e disse, inocente, apontando para a Sra. Campbell:
- Ela é bonita.
Aquilo provocou risos entre os adultos, e a Srta. Jade disse, como se falasse com um retardado:
- Agora vamos fazer algumas perguntas para você, está bem, Severo? Diga, onde você morava com seus pais?
- Em casa – ele respondeu feito outro retardado.
- Sim, mas aonde ficava sua casa?
- Longe. Pegou fogo, não tem mais casa.
- Eu sei, querido, mas você não sabe onde era isso? Em que cidade, em que condado?
- Não.
- E você tinha irmãos?
- Não.
- Você sabe o que o seu papai fazia?
- Não.
- E sua mamãe?
- Fazia bolo e pudim. Eu sinto saudade do bolo da mamãe.
A Sra. Campbell interferiu:
- Jade, por favor, não pode poupá-lo disso? Veja, o menino ainda nem tirou o luto pelos pais. O pobrezinho é muito pequeno.
- Eu só estou tentando obter informações. Ele foi trazido sem documentos, a pessoa simplesmente o deixou no orfanato, sem sequer dar um nome, e nós não sabemos nada sobre ele. Quem sabe se ele foi raptado?
Severo colocou sua expressão mais inocente e quis saber:
- O que é raptado?
- Severo, o homem que o trouxe, ele era seu amigo?
- Sim. O nome dele é Tio Lúcio.
- Ele morava perto de seus pais?
- Não, ele morava em outra cidade.
A Srta. Dóris disse:
- Viu? É como eu disse! Nenhuma informação.
- A polícia não tem registro de nenhuma criança desaparecida com a descrição dele, mas nunca se sabe – disse Jade, olhando para Severo com pena – E ele é tão pequeno, ainda menor do que uma criança de 4 anos normalmente é.
Severo olhou para baixo e disse, como se quisesse choramingar:
- Desculpe...
Aquilo encheu Jade de pena que chegou perto dele e disse:
- Não, meu amor, você não fez nada errado. Nada errado. Nada disso é culpa sua. Você não fez nada errado, Severo.
A Sra. Campbell disse:
- Eu sabia que isso ia terminar aterrorizando o garoto. Pobrezinho, ele já sofreu demais, não acham?
- Está tudo bem, Jane – disse o Sr. Campbell para a esposa, abrindo a boca pela primeira vez.
A Srta. Jade disse:
- Bem, de qualquer forma, tivemos um primeiro contato. Acho que Severo vai gostar de voltar para as suas brincadeiras agora, não vai, querido?
Ele arregalou os olhinhos pretos e perguntou, com uma voz doce:
- Eu vou ter um papai e uma mamãe?
A Sra. Campbell soluçou de emoção, levando a mão à boca, e o marido a abraçou. Ambos pareciam tocados. A Srta. Jade olhou para Severo e disse, com um sorriso nos lábios e lágrimas nos olhos:
- Vamos fazer de tudo para você ganhar uma família, Severo. Agora pode voltar a brincar.
- Sim, senhora – ele olhou para a Srta. Dóris – Com licença.
Severo teve dificuldade para sair da poltrona, mas o fez sozinho e saiu da sala, cuja porta se fechou atrás dele. Ele se encostou na porta para ouvir os adultos falando:
- Como ele é pequenininho! E já sofreu tanto, pobrezinho! Oh, Bill, ele é um sonho! Eu o quero! Não quero ver nenhum outro.
- Acho que para um primeiro contato foi muito bem.
- E ele é educadinho. Acho que ele gostou de nós.
- Temos chance de conseguir ficar com ele?
- Bom, ainda há uma parte de burocracia a resolver. Mas vamos fazer de tudo para que encontremos uma solução a termo.
O coração de Severo se acelerou e ele achou melhor sair dali antes que fosse descoberto. Aparentemente, seu plano tinha dado certo. Ele tinha convencido os Campbell de que era um menininho de 4 anos, órfão e abandonado à sorte. Infelizmente, só o que ele podia fazer era rezar para que os Campbell ganhassem a custódia sobre ele.
Houve pelo menos mais duas visitas. Na primeira, Severo se aproximou mais da Sra. Campbell, sentindo que ali estava o elo mais fraco da corrente. Ele não queria testar o Sr. Campbell, pois não sabia se ele era um pai amoroso.
Ele soube que os Campbell tinham um outro filho, e por isso temeu não ser escolhido. Se o irmão mais velho não quisesse um irmão caçula, e os pais tivessem que escolher entre os dois, adivinha quem iria parar na rua da amargura? Claro que seria Severo, o intruso da família.
A segunda visita foi longe da Srta. Dóris, mas a principal atração foi o irmão mais velho, de nome David e da idade de Moe. Severo ficou ressabiado, mas David foi incentivado a fazer amizade com o menino mais novo. Coube a Severo fazer a aproximação, indagando se ele gostava de futebol. David respondeu que sim, e Severo pediu que o ensinasse, porque ele jogava muito mal. Os adultos acharam graça da simplicidade do menino.
Sem a Srta. Dóris por perto, Severo pôde se soltar mais, tentando dizer inclusive que já sabia ler e escrever. Os Campbell não acreditaram, e acharam graça de Severo querer ser homenzinho. A Srta. Jade gostou da interação entre o casal e o menino.
Ainda levou algumas semanas, mas o Ministério do Interior finalmente deu a palavra final sobre o caso: Severo iria para a casa dos Campbell, para ser adotado formalmente. O processo todo levaria meses para se concretizar, com dois meses de experiência para que ambas as partes se acostumassem uma com a outra.
O pequeno Stevie estava com lágrimas nos olhos:
- Você vai embora? Quem vai me ajudar a cortar minha comida?
Severo disse:
- Não se preocupe. Calvin vai ajudar você, ou então Mark.
- Eu quero você, Severo – o pequeno se agarrou a ele – Você é meu amigo.
- E seremos amigos para sempre, Stevie. Lembre-se do que eu lhe disse: nós só vamos morar em casas diferentes.
Mark disse:
- Eu vi sua nova mamãe. Ela parece ser uma boa mãe.
- Ela queria me dar brinquedos – mas a Srta. Dóris disse que os meninos não podem receber presentes. Todos os brinquedos têm que ser dados para o orfanato. Aí eles deram de presente aqueles carros de madeira que estão na sala de recreação. Vão ficar para vocês todos brincarem.
- É, se o Moe não quebrar antes de a gente pegar.
Severo disse:
- Vocês têm que revidar o Moe. Viu o que aconteceu comigo? Por um tempo ele ficou me chateando, mas agora ele não me chateia mais!
- É, mas você apanhou que saiu até sangue!
- Uma vez só! E ele também saiu sangrando!
Stevie continuava abraçado a Severo, agarradinho feito um carrapatinho.
- Quem vai me proteger do Moe? Eu sou pequenininho.
- Você tem que correr e aprender a subir na árvore. Assim ele não te pega. Ele é grande e desajeitado, ele não consegue subir na árvore. Promete que vai se cuidar?
- Vou, sim, Severo. Puxa, você sabe muita coisa. Vou sentir sua falta.
- Também vou sentir a sua.
- Quando eles vêm te pegar?
Severo respondeu:
- Amanhã bem cedinho.
- Será que eles são ricos?
Calvin cortou:
- Bom, eles deram aqueles carros de madeira para todos nós. Tem até um caminhão grande!
- Se você virar um menino rico, você vem visitar a gente?
- Eu vou pedir para eles me trazerem aqui, já que eu ainda não tenho aula. Mas se a minha nova mãe trabalhar fora, significa que eu vou para uma creche ou coisa parecida – Severo fez uma careta – Eu preferia passar o tempo com vocês.
- Legal. Você é um amigão, Sev – disse Calvin – Posso te chamar de Sev?
- Tudo bem.
A Srta. Dóris chegou nesse momento:
- Hora de dormir! Todo mundo para a cama, agora mesmo. E você, Severo, ajude Stevie a se cobrir direitinho, se não ele fica resfriado.
- Eu não sou bebezinho! – disse Stevie, irritado.
- Não me responda, menino! Você não é tão pequeno que não possa levar um castigo por ser respondão. E você, Severo? Que está fazendo aí, parado? Só por que vai embora está se achando grande coisa?
- Não, Srta. Dóris. Venha, Stevie.
A mulher mal-humorada apagou a luz e disse:
- Graças a Deus, uma peste a menos para eu cuidar. Vamos ver quem será o próximo na lista de adoções.
Todos queriam ser, mas sabiam que ela se irritaria se começassem a falar depois da luz ter sido apagada, então ficaram quietinhos.
Sem dar sequer um boa-noite, ela fechou a porta e os garotos se ajeitaram para dormir.
- Severo? – falou Stevie, cochichando.
- O que é?
- Dorme comigo?
- Por quê?
- Estou com saudades de você.
- Mas eu ainda nem fui embora.
- Mas você vai amanhã cedinho. Dorme comigo hoje, vai? Por favor!
Com o estilo mais Snape possível, ele revirou os olhos e disse:
- Está bem. Chega para lá.
Juntinho com Stevie, Severo passou sua última noite no orfanato, mal podendo dormir de tanta ansiedade que a manhã chegasse.
Capítulo 4
No dia seguinte, logo depois do café, os Campbell apareceram para apanhar Severo. Houve uma despedida especial dos colegas, e até a Srta. Dóris o abraçou – tudo isso para que os Campbell não percebessem que lugar horrível era aquele. Severo no fundo estava com pena de seus amigos, mas como todo bom sonserino, ele estava satisfeito por poder aproveitar a oportunidade que o destino lhe trazia.
Só o que ele tinha que fazer era bancar a criança – e aí sim, colocar seu plano em ação: voltar para Hogwarts e recuperar sua identidade de odiado professor de Poções de 37 anos.
- Onde estão suas coisas? – quis saber a Sra. Campbell.
Severo deu de ombros:
- Eu não tenho nada. Só essa roupa que estou usando. O resto era emprestado.
Ela trocou olhares com o Sr. Campbell, que parecia chocado com a revelação.
Em seguida, Severo foi levado pela mão até lá fora e foi colocado no banco de trás de um carro grande, confortável, e dentro de uma cadeirinha especial para crianças pequenas. A Sra. Campbell disse, amarrando-o à cadeirinha:
- Você vai aqui atrás, onde estará seguro.
- Sim, Sra. Campbell.
Ela disse, em tom suave:
- Severo, pode me chamar de mamãe. Nós somos uma família.
- Desculpe.
- Não tem problema, você logo se acostuma. Somos mamãe e papai. E David é seu irmão.
- David é mais velho. É criança grande.
- É, ele vai ser seu irmãozão. Qualquer coisa que precisar, pode pedir a David.
Eles rodaram durante algum tempo, e o balanço do carro fez Severo sentir uma ligeira sonolência. Ele teve que fazer força para não dormir na viagem. Maldito corpinho de quatro anos!
Mas ele sentiu que os Campbell estavam nervosos, e muito emocionados. Severo ficou se perguntando por que eles tinham conseguido ser atendidos tão rapidamente no seu desejo de ter um filho, se eles já tinham um. Mas achou que não valia a pena pensar nisso.
Pareceu muito tempo até que o carro parou. Amarrado na cadeirinha, Severo não viu muita coisa além da cabeça da Sra. Campbell até que ela o desamarrasse e o colocasse no chão.
- Chegamos. Espero que você goste de sua nova casa.
Ele olhou para cima e gostou do que viu. Era uma casa trouxa ampla, com um pequeno jardim, mas tinha dois andares. Sr. Campbell disse, com um sorriso:
- Agora tenho que ir, Severo, porque preciso trabalhar. A gente se vê na hora do jantar, está bem?
- Bill, não se esqueça de me deixar o cartão de crédito. Preciso fazer compras para Severo.
- Está bem, querida. Compre o que precisar para o garoto.
- Obrigada. Bom trabalho.
- Tchau para vocês!
- Severo, dê tchau para o papai!
Ele acenou para o carro, que deu ré e voltou para a rua. A Sra. Campbell disse, levando-o pela mão:
- Agora vamos para dentro, porque está ventando. Aqui você vai ter seu próprio quarto, e muitos brinquedos. No ano que vem, você irá para a escola.
- Mas eu já sei ler e escrever!
A Sra. Campbell se riu alto:
- É claro, é claro.
Ele entrou na casa, e ela parecia bem ampla, mas claro que isso podia ser porque ele estava vendo tudo da perspectiva de um garoto de quatro anos. Mas havia uma sala bem cuidada, com móveis simples e funcionais. Ele subiu as escadas, sempre sendo levada pela Sra. Campbell, que ia mostrando tudo: os quartos, o banheiro, o escritório do papai, e finalmente o quarto dele. Era um aposento simples, confortável e cheio de brinquedos – um quarto de uma criança trouxa normal, muito mais alegre e divertido do que o seu antigo quarto na Mansão Snape.
- Você gostou?
- De quem é esse quarto?
- Esse é seu quarto, querido. Se não gostou de alguma coisa, é só dizer que nós tiramos. Você disse que gostava de futebol, então compramos uma bola novinha para você jogar no jardim. Espero que goste.
Ele olhou o beliche e disse:
- Por que tem duas camas? David também vai dormir aqui?
- Não – ela riu – Toda criança gosta de beliche. Achamos que iria gostar. Podemos tirar a cama de baixo, se você preferir.
- E eu não vou cair de lá de cima?
Ela o pegou no colo e mostrou a ele, pacientemente:
- Olhe aqui – tem uma gradezinha para evitar que você caia. Além do mais, você está bem ao lado da gente. Se acontecer alguma coisa, é só chamar que viremos correndo.
- Sim, senhora.
- Pode me chamar de mamãe.
- Sim, mamãe.
Ela o colocou no chão e ele reparou nos outros móveis. Além do beliche, ele tinha um armário para roupas, uma cômoda, prateleiras aéreas e uma caixa grande, para guardar os brinquedos. E ele tinha muitos brinquedos: carrinhos, jogos, bonecos, bolas, até blocos para empilhar. Ele gostava de blocos.
- Muitos desses brinquedos eram de David. Como não sabíamos do que você gostava, achamos melhor começar com esses. Depois se você quiser mais, a gente compra para você. Mas nós temos um problema: seu aniversário.
- Aniversário?
- Você sabe o que é um aniversário, não sabe?
Ele pensou na melhor resposta que um menino de 4 anos daria e disse:
- É quando eu passo disso – mostrou três dedos – para isso – mostrou quatro dedos – Não é?
- Isso mesmo! – ela sorriu – Mas nós não sabemos quando é seu aniversário.
- Eu sei! Eu sei! – ele disse, abrindo um raro sorriso – É 5 de novembro.
- Como você sabe?
- Mamãe me disse. Sabe, minha outra mãe. Aquela que morreu.
- Eu sei. Estou surpresa que você se lembre da data.
Ele pensou numa saída rápido:
- Mamãe dizia que eu era esperto demais.
- Estou vendo que temos um espertinho na família. E agora eu tenho uma festa de aniversário para preparar.
- Já está perto?
- Não, mas eu tenho que fazer os preparativos mesmo assim. Mas agora não. Bom, querido, agora eu vou cuidar do almoço. Quer conhecer a cozinha?
Severo arregalou os olhos. Seria a primeira cozinha trouxa que ele veria. Ele sabia que eles tinham os aparelhos mais fantásticos para compensar a falta de magia, bem como alguns ingredientes muito usados em poções. Ele pareceu entusiasmado de verdade:
- Oba, quero, sim!
- Está com fome?
Severo não saberia dizer por que, mas algo o inspirou a dizer:
- Não. Eu como bem pouquinho, Sra – er, quer dizer, mamãe. Juro que eu como bem pouquinho.
Jane Campbell olhou para ele, muito séria e numa voz engraçada, como se estivesse se controlando com muito esforço, disse:
- Severo, querido, nesta casa ninguém vai dar bronca em você por querer comer mais. Sempre que você estiver com fome, pode pedir comida. Você está muito magrinho e precisa engordar para não ficar doente.
Ela tinha razão, ponderou Severo. Ele passou a infância cheio de doenças por ficar enfurnado dentro de casa sem permissão para comer comidas saudáveis.
- Posso comer frutas?
- É claro que sim. Mas antes vamos almoçar. De tarde, mocinho, eu e você vamos sair. Você precisa de roupas novas. Aliás, você precisa de muita coisa nova. Acho que a conta bancária do papai vai ficar mais magra hoje.
Severo fez cara de quem não entendeu, e terminou seguindo-a até a cozinha, no andar de baixo. Pequeno como ele era, não viu muito dos aparelhos de que tanto ouvira falar, mas viu que a Sra. Campbell fazia amplo uso deles. Ele suspirou, olhando em volta. Não tinha nada para ele fazer.
Como por mágica, a Sra. Campbell notou o silêncio do menino e indagou:
- Quer me ajudar?
- Sim.
- Então você vai me ajudar a picar o alface. Venha aqui para eu lavar sua mãozinha.
Depois de devidamente higienizado, Severo foi colocado em cima de um banquinho, de pé, para ficar da altura do balcão da cozinha. Lá ele recebeu a missão de rasgar as folhas de alface para a salada. Não era exatamente o trabalho mais cerebral do mundo, mas ninguém de sã consciência daria uma faca para uma criança de quatro anos manusear, ele teve que reconhecer. E ele quase se sentia de volta a uma bancada de trabalho, cortando ingredientes para fazer uma poção.
Como ele sentia falta de suas poções.
Enquanto ele cortava a alface com sua pequenas mãozinhas, ele imaginou o que estava acontecendo em Hogwarts. Será que o tinham dado como morto? E o que tinha acontecido com seus estoques preciosos? Quem estaria ensinando os cabeças-ocas? Será que teriam alienado seus bens – o que teria sido feito da Mansão que seus pais lhe deixaram?
Aqueles pensamentos fizeram Severo estremecer. Se eles o tivessem considerado morto, isso significava que ninguém estaria procurando por ele. Ele estava só, abandonado, deixado para viver entre trouxas pelo resto de sua vida, que acabara de se alongar ainda mais. Ele teria mais uns 70 ou 80 anos para viver – afastado de seu verdadeiro mundo, esquecido por todos.
Ele sentiu uma dor indizível no peito, uma espécie de nostalgia, mas que não era bem uma saudade, algo muito difícil de descrever, quanto mais de controlar.
- Oh, meu bem... Está tudo bem.
De repente ele se viu envolvido por dois braços amorosos, reparando que seu rosto estava molhado. Ele estava chorando, e nem sabia dizer direito por que chorava. Mas como era bom ser acariciado, posto no colo, deixar suas angústias se esvaírem em lágrimas sob os braços cheios de carinho de uma mãe que estava dizendo doces palavras ao seu ouvido. Severo chorou, chorou, incapaz de se controlar, agarrado à sua nova mãe.
A Sra.Campbell o levou em seu colo para cima, e o colocou na cama. Ele protestou, entre soluços:
- Não estou com sono.
- Eu sei que não. É só para você descansar um pouco antes do almoço. Só um pouquinho.
O menino concordou, porque estava estranhamente cansado. Uma sonequinha até que era bem-vinda.
- Eu fico aqui até você dormir. Quer ouvir uma historinha?
- Depois.
- Então está bem.
Em menos de cinco minutos, ele estava ferrado no sono, embora alguns soluços de vez em quando sacudissem todo seu corpinho. Ele não sentiu um beijo carinhoso na testa quando a Sra. Campbell deixou-o no quarto e pôs-se a fazer o almoço.
Sem sentir, Severo começava a dar seus primeiros passos para formar uma verdadeira união com os Campbell.
