Rachel Berry, diva mor de McKinley High, trocava os livros dentro do armário pela segunda vez no dia. Desta vez a aula seria a fascinante literatura inglesa. O tópico da vez era Jane Austen. Pelo menos Rachel gostava da autora. Era uma das poucas autorizadas que ela estudava com algum entusiasmo, apesar de ser proibido levantar qualquer mensagem contida nas entrelinhas nas obras dela e em qualquer outra da lista dos autores autorizados. O mesmo valia para a música. Os artistas estrangeiros banidos já não circulavam mais nas rádios. Os nacionais banidos estavam presos e os que tentavam comercializar suas obras, primeiro eram submetidos a uma avaliação da censura. Rachel odiava aquela falta de liberdade de opinião, de expressão. Mas era assim que o país funcionava desde quando era pequena. Era assim que os jovens cresciam e aceitavam todo tipo mensagem dito pelo regime. Era assim que eles se transformavam em ovelhas obedientes. Rachel não era uma ovelha. Só fingia ser uma para a própria segurança.
Ainda no armário, ela percebeu que havia um objeto familiar na frente dos livros. Um botão preto de um centímetro de diâmetro. O que tornava aquele botão peculiar era o raspado na borda.
"Se não é RuPaul, a pequena órfã!" – Quinn Fabray se aproximou e Rachel revirou os olhos antes de encarar a abelha rainha – "Ainda me admira que não tenha sido presa."
"Entediada a essa hora do dia?" – Rachel a encarou. Como sempre, Quinn estava acompanhada de Santana Lopez, a guarda-costas número um, embora a líder de torcida preferisse o título de segunda no comando.
"Controle a sua boca, anã!" – Santana praticamente rosnou. Rachel não estava impressionada com os arroubos da colega.
"Eu não seria valente agora se fosse você" – Quinn aproximou-se de forma perigosa – "Minha mãe vai organizar uma festa neste fim de semana, algo mais informal na minha casa. Precisamos de pessoas que sirvam e queria saber se vocês e seus amigos perdedores não gostariam de um trocado?"
Não era a primeira vez que Quinn fazia tal tipo de proposta. Os Fabray eram uma família importante da região e Russell Fabray fazia parte do parlamento regional. As festas informais, como clamava Quinn, eram algumas recepções que Judy organizava junto com as excelentíssimas esposas de outros parlamentares ou damas da sociedade. E se eram informais, queria dizer que o único intuito era estabelecer contatos. Tudo era política. Rachel já havia trabalhado em duas delas servindo canapés e outros quitutes. O pagamento não era ruim. Ela tirava a metade para depositar na poupança. Desde pequena que economizava dinheiro para dar o fora de Ohio assim que fizesse 18 anos e fosse considerava maior de idade. Estava disposta a colocar dinheiro nas mãos de um coiote para tentar atravessar a fronteira para outros países. Mudou de idéia quando começou a conversar com botões.
Depois do racha provocado pela grande crise mundial, a antes toda-poderosa nação dos Estados Unidos foi dividida em alguns países independentes. Ela nasceu no Estado mais conservador e fascista. A crise política que resultou na fragmentação ocorrera há quase 50 anos. Mas ela tinha apenas 12 anos de idade quando o homossexualidade foi criminalizado no país dela. Hiram e Leroy foram presos e condenados à morte. Eles tiveram direito a conversar com a filha como um último desejo. Foi quando revelaram que botões poderiam ajudá-la a escapar. Talvez até a encontrar com a mãe biológica que morava em Nova York. Ela foi levada a viver com os Puckerman. Apesar de adorar Noah "Puck" Puckerman e a pequena Natalie, Rachel detestava Anna, a mãe dos dois.
Os Puckerman eram pobres. Noah trabalhava limpando piscinas e Rachel se virava entre um bico e outro. Parte do dinheiro ela colocava nas mãos de Anna para "pagar os gastos", e a outra metade ela economizava. Daí a razão de engolir desaforos e destratos de pessoas como Quinn Fabray na escola. Era deles que vinha parte do dinheiro.
"Eu vou falar com os meus amigos perdedores. Devo ligar para a governanta da sua casa?" – Rachel raramente falava com Judy. A governanta era quem organizava os empregados fixos e temporários. Era também amante de Russell. Rachel os flagrou uma vez nos jardins da mansão. Não contou a ninguém a respeito. O momento certo surgiria.
"Faça isso. O meu recado já foi dado."
Quinn virou as costas e Santana empurrou Rachel de leve contra os armários antes de seguir a líder. Demonstração desnecessária de poder. Rachel balançou a cabeça em desaprovação. Os amigos perdedores eram Sam Evans, Mike Chang, além de Puck. Em outras palavras: os amigos pobres. Às vezes Tina Cohen-Chang topava alguns trabalhos dependendo de como estivesse o humor dela ou se os pais tinham condições de dar a mesada do mês. A ausência da mesada indicava que Tina estava disposta a fazer algum bico. E havia Mercedes Jones e Kurt Hummel. Eram os únicos amigos que Rachel tinha que não precisavam trabalhar por necessidade.
Mas antes de tudo, ela olhou para o botão preto mais uma vez. Suspirou e o colocou dentro de uma bolsinha que deveria ser de moedas, mas só existiam botões iguais de diversas cores. Exceto pelo botão preto raspado, os de Rachel era um pouco maiores e tinham as bordas pintadas de dourado. Pegou um botão branco e o empurrou para dentro de um armário. Entrou em contato com a governanta e ocasional empregadora. Era uma festa simples. Bastavam três pessoas para servir mais um auxiliar de cozinha. Matt Rutherford era o auxiliar perfeito de cozinha. Ele ia estudar para ser um chef e já acumulava certa experiência em eventos do tipo. Mesmo em outra escola, Rachel ainda tinha muito contato, afinal, Matt era uma das pessoas que falavam com os botões. Mandou mensagem de texto para os amigos e logo conseguiu a equipe de garçons: ela, Sam e Puck.
Puck na casa dos Fabray? Significava que o melhor amigo de Rachel ficaria até mais tarde para rapidinha com Quinn. A líder das cheerios posava de virgem na escola, mas a verdade é que Puck já havia chegado lá e existia certo burburinho de que Sam também, ao passo que o namorado oficial, Finn Hudson, ainda pelejava conquistar a segunda base. Rachel tinha pena de Finn e se revoltava com as coisas que eram feitas nas costas dele, inclusive pelos amigos próximos, mas Finn não falava com botões e nem havia demonstrado ser confiável ou ter bons motivos para começar a falar com eles.
"Muito bem pessoal" – o professor Schuester – "Esta é a semana decisiva para a competição local. Precisamos fechar o repertório hoje mesmo."
"O arranjo de Good Vibrations, dos Beach Boys, ainda está de pé?" – Finn perguntou.
"É um bom número coletivo, se todos concordarem, mas ainda precisamos da balada."
"Não ia ser o solo de Rachel para Celine Dion?" – Kurt parecia entediado.
"Precisamos de um plano B e um plano C. Preparar duas canções apenas seria displicente de nossa parte."
"Eu concordo!" – Rachel levantou-se e ficou de frente para o restante do coral. Enfrentou reviradas de olhos coletivas. Nada que não estivesse acostumada, afinal, ela era a co-capitã da equipe conhecida pelo exagerado entusiasmo.
Rachel realmente gostava de cantar e dizia para quem quisesse ouvir que o destino dela seria Cleveland, onde ela poderia participar das grandes montagens musicais e ser estrala na indústria cinematográfica. Essa era a versão pública. A versão lá com os botões dela era atravessar a fronteira e ir para o país vizinho, Nova York, mais especificamente.
"Há diversas canções country que podemos fazer e certamente os jurados iam ficar atônitos com nossa demonstração de nacionalismo" – Rachel abriu um sorriso falso radiante – "Tenho certeza que Jason Aldean ou Dolly Parton seriam bem-vindos".
"Formidável, Rachel" – Schuester deu dois tapas nas costas dela e a focou a sentar-se – "Alguém tem mais alguma idéia?"
Não é que Rachel gostasse tanto assim daquele coral. Estava mais interessada nas competições e nos convites que eles recebiam para apresentações noutras cidades, em especial aquelas que ficavam perto da fronteira. Cantar mesmo, de verdade, ela preferia com os botões. Falando neles, lembrou-se do preto. Franziu a testa em curiosidade. No armário dela, quando foi pegar os materiais antes de ir embora, viu o botão branco raspado. Foi para casa dos Puckerman, quando chegava mais ou menos no mesmo horário em que a guardiã e Natalie. Anna era professora auxiliar numa elementary school e sempre ficava estressada com o trabalho exaustivo e o pouco dinheiro. Por isso Rachel aprendeu a não falar muito. Fazia primeiro as tarefas domésticas, depois os deveres de casa. Ajudava Anna com o jantar e com as louças sujas. Tomava banho e ia dormir. Isso se não tivesse um compromisso com seus botões.
"Arrumei um serviço para este fim de semana. Vou servir numa festa dos Fabray."
"Será que eles vão servir torta de limão outra vez?" – Anna melhorou o tom de voz. Sempre que podia, Rachel trazia para casa um pouco do que sobrou da comida e a tal torta de limão havia se tornado uma lenda.
"Vamos torcer. Noah também vai trabalhar."
"Eu sei muito bem por que" – Anna praticamente rosnou. Ela sabia do envolvimento do filho com Quinn Fabray. Longe de uma oportunidade, aquilo cheirava a encrenca.
"O trocado vale à pena."
"Não a vida do meu filho. Sei muito bem que Russell Fabray seria capaz de matar o meu Noah caso descubra ou aquela filha dele diga alguma coisa se fazendo de vítima."
"Noah é esperto" – Rachel disse de forma automática.
"Noah é um estúpido que só pensa com o pinto. A gente pode ter as nossas diferenças, Rachel, mas agradeço profundamente por você nunca ter dado bola a ele."
"Ele é como se fosse um irmão" – Rachel ficou meio enojada com a idéia de ter um envolvimento de natureza amorosa com Puck.
"E que continue assim."
Rachel desceu até o porão, onde ficava o quarto dela. Não reclamava. O local era bem arrumado e digno. E tinha a vantagem de ser o mais privativo daquela casa. Puck havia implorado mais de uma vez apara que ela trocasse de quarto, pois assim ficaria mais fácil levar as meninas para o quarto e não se preocupar tanto com os barulhos por casa da mãe que dormia no cômodo ao lado. Nem pensar. Ali ela tinha um banheiro próprio, a cama, o pequeno guarda-roupa e uma pequena televisão. Também tinha um aparelho de DVD em que podia convidar as amigas para uma tarde de refrigerante e pipoca. Ou com o namorado. Este atendia pelo nome de Kurt Hummel. O garoto era gay, mas ele não podia ser ele mesmo na escola ou estaria enrascado. Rachel concordou em ser a namorada apenas para fazer jogo de cena. Os dois almoçavam juntos no refeitório, às vezes se beijavam pelos corredores (sempre nos lábios, nunca de língua), andavam de mãos dadas ou abraçados vez ou outra. Kurt e Rachel falavam com os botões.
Foi por causa do botão que ela precisou sair. Estava quase na hora do toque de recolher. Depois das 23 horas, só os cidadãos com licenças podiam circular. Rachel não pertencia a esse grupo privilegiado. Pegou a bicicleta, o melhor veículo para andar naquelas condições e correu até downtown. Entrou num beco e abriu o cadeado de uma porta de ferro que ficava nos fundos de uma pizzaria. Era a cozinha.
"Não esperava vê-la aqui hoje, Rach" – a menina levou um susto quando um homem de meia idade saiu das sombras.
"Por deus, senhor Reynolds" – Rachel falou com a mão no tórax. A respiração ficou ofegante por um minuto ou dois – "Achei que a pizzaria já estivesse vazia."
"Dia da contabilidade. Desculpe por ter te assustado."
Steve Reynolds era o proprietário de uma das melhores pizzarias da cidade. Por causa do toque de recolher, só se aceitavam pedidos até as nove da noite e os funcionários eram dispensados às dez da noite. Era quando os botões circulavam com mais facilidade. E o senhor Reynolds era um dos maiores de Lima.
"Razão especial para estar aqui?"
"Botão preto."
"Bom, eu vou estar na minha casa. Qualquer coisa... não me chame" – a casa dele ficava da sobreloja da pizzaria. Era prático e perfeito – "Se quiser, pode pegar um pedaço de queijo no refrigerador. Tem pão no depósito.
"Obrigada, não estou com fome."
Enquanto Reynolds subia as escadas, Rachel tomou a direção contrária. Entrou no depósito. Ficou diante da prateleira das conservas e procurou o painel disfarçado. Digitou a senha e uma porta se abriu. Ela dava acesso a escadarias em direção a um porão: a casa dos botões. O lugar era reconfortante para Rachel. Naquele espaço existia uma ampla biblioteca com livros e discos proibidos. Havia um espaço com perfeito isolamento acústico onde se podia cantar, tocar os discos, saber das novidades do mundo exterior. Às vezes até saber notícias sobre conhecidos no exterior àquele mundo fascista proibitivo. Rachel viu que tinha chegado novidades. Começou a checar os objetos. Havia correspondências. Não verificou. Se tivesse chegado alguma para ela, teria recebido um botão rosa por algum dos meios. Existiam outros além do armário na escola.
Ouviu passos descendo as escadas. Eram mais de uma pessoa. Olhou em direção à entrada e viu ninguém menos do que Santana Lopez com a testa enrugada acompanhada de Kurt. Carregavam sacolas e Rachel sabia que tinha roupas dentro delas. Muitos dos botões não gostavam de se arriscar durante o horário de recolhimento e dormiam por ali mesmo. Sem ainda dizer uma palavra, Santana colocou a sacola dela em um dos espaços que simulavam armários abertos. Kurt, ao contrário, foi direto em direção a Rachel e a abraçou. Ali era o único lugar onde podia ser ele mesmo.
"Não sabia que viria" – Rachel abriu um sorriso para o falso namorado. Santana revirou os olhos e foi logo jogando o corpo contra o confortável sofá.
"Blaine está a caminho e eu vim de carona com Satan."
"Fico feliz" – Rachel disse sincera. A casa dos botões era o único lugar onde os dois podiam namorar a salvos. Ela caminhou até o sofá enquanto Kurt colocou um disco do R.E.M banido.
"Não vamos escutar música" – Santana reclamou – "Já que vamos ficar aqui hoje à noite, então que se coloque um bom filme."
"Você concordou em conversar comigo" – Rachel disse séria.
"E a minha resposta continua a ser não."
Foi o tempo em que Blaine chegou. Kurt correu para junto do namorado, este bem real, e o beijou. Santana gostava de Blaine. Os dois eram bons amigos até mesmo no mundo fora dos botões. Por isso foi abraçá-lo. Rachel fez o mesmo.
"Se me dão licença, garotas, preciso conversar com o meu namorado" – Blaine e Kurt se dirigiram a um dos pequenos quartos reservados na casa dos botões que tinham a finalidade de ser usado para encontros de casais proibidos. Os casais heterossexuais não tinham razões para se esconder.
Santana tirou a música e ligou a televisão. Queria ver o último noticiário da noite. Voltou a se atirar no sofá.
"Por que vetou?" – Rachel sentou-se ao lado.
"Você não está pronta" – Santana não desgrudava os olhos da televisão.
"Eu estou pronta."
"Não está. E eu sou responsável por você."
"Você não é responsável por mim. Você é responsável pelo ciclo."
"E você faz parte do meu ciclo, portanto..." – Santana estava muito aborrecida com aquela história que se arrastava a semanas – "Não está pronta. É descuidada."
"Não sou."
"Rachel, você quer incluir pessoas nos botões só porque fazem parte do glee club. Ou seja, não tem o julgamento apropriado para distinguir quem tem ou não necessidade para entrar. Isso aqui não é só um clubinho secreto para se curtir obras proibidas ou para gays namorarem."
"Eu sei disso."
"Você não faria o que fosse necessário, é muito imatura. E não é treinada e nem faz por onde para ser. Três dos nossos articuladores foram mortos semana passada e sabe-se lá como a nossa estrutura ficou comprometida. E eles eram pessoas treinadas para ficarem de bico fechado. Imagine o que fariam com alguém como você? Entregaria a sua mãe no primeiro choque."
"Mesmo assim, eu vou estar ao seu lado na fronteira."
"É outra história. Determinação de Reynolds."
"Então me treina..."
"Na hora certa."
"Diga um começo... eu faria qualquer coisa."
"Sei lá... você precisa ganhar físico, resistência... entre para algum time da escola ou para as cheerios" – Santana tapou a própria boca – "Por favor, não entre nas cheerios! Eu não suportaria!"
"Atletismo?"
"É um começo."
"Quanto aquele meu outro pedido negado..."
"Absolutamente não."
"Seja um pouco racional."
"Minha resposta é definitiva."
Rachel procurou esparramar-se na outra parte do sofá para dormir. Era mais fácil convencer uma parede do que Santana Lopez. A pessoa em questão ainda estava olhando a TV tensa com o noticiário de falsas novidades. Rachel pensou que talvez pudesse persuadir Brittany a persuadir Santana. Brittany falava com botões. Mas como a maioria, era só um botão raso. Só tinha conhecimento de uma pequena parte do todo. Não era como ela, Blaine e Kurt. Mesmo assim, Kurt e Blaine sabiam menos do que Rachel. Brittany achava que os botões faziam festas secretas. Mas Santana era apaixonada por ela, era a melhor amiga. Tinha de ser o suficiente. Ela precisava entrar mais nos botões.
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Fic experimental. Atualização lenta...
