CAPÍTULO UM

O sol surgia tímido por entre as nuvens do céu ateniense, subindo de sua cama oceânica. O Egeu recebia seus raios cálidos com prazer, marulhando em resposta à maravilha da aurora. A manhã estava fria, mas a claridade ainda acanhada precedia um dia quente, coisa corriqueira no verão mediterrâneo. Mas aquele não era um dia como outro qualquer.

No Santuário de Atena o serviço já havia começado antes mesmo do sol pensar em aparecer. Dezenas de servos formavam um batalhão em constante movimento, todos preparando os serviços do dia. Manter o maior centro de treinamentos do mundo não era uma tarefa fácil. O Santuário abrigava mais de mil e cem empregados, variando desde faxineiros até diplomatas, todos engajados na manutenção de uma das mais respeitadas instituições religiosas do ocidente.

- Já está na hora?

Perguntava uma voz sonolenta ao seu lado. A luz matutina entrava sorrateira no dormitório beta, deixando sombras compridas desenhadas no chão de pedra crua.

- Sim, logo o mestre passará em revista, portanto trate de dar um jeito em seu uniforme.

Respondeu também com a voz arrastada. Fazia sete anos que estava ali, e ainda relutava em sair da cama àquela hora.

Era dia de avaliação. Isso significava que o Grande Mestre fiscalizaria, ele mesmo, os treinamentos e o comportamento de seus discípulos, uma lembrança inegável da hierarquia que imperava no Santuário.

Shiva estava sentado à mesa do refeitório ainda vazio, com o prato de mingau intocado à sua frente. Os olhos vagavam por uma dimensão paralela, perdidos no intrincado desenho formado pelas sombras espalhadas pelo chão. As colunas jônicas da frente do prédio jogavam suas silhuetas de uma maneira oblíqua pelo chão pétreo, o canelado branco das pilastras contrastando com suas sombras austeras no piso.

- Olá...? Shiva?

Ele não havia percebido a chegada de Orpheus, que tentava chamar sua atenção há um tempo. O indiano saltou de seus sonhos para a realidade sonolenta do refeitório, para o garoto à sua frente iluminado pela luz amarela da manhã.

- Está quase na hora. Termine seu mingau e vá indo na frente, nos encontraremos nas arenas.

Suas palavras foram seguidas por um bocejo profundo, indicando que ele mesmo se esforçava para não entrar no mundo onde Shiva estava há pouco tempo.

- Tem certeza de que não vai se atrasar?

Shiva levantou-se, trazendo o prato de mingau ainda cheio.

- Sim, pode ir.

Respondeu, sorrindo inocentemente.

-o-o-o-

- Atenção!

O instrutor sênior, Tremy de Sagita, usava sua voz de comando para organizar as linhas de aprendizes enfileirados na arena principal. Do alto da bancada de pedra, o Grande Mestre observava o rigor com que Cavaleiros e aprendizes entravam em formação. Como iria fiscalizar ele mesmo o andamento dos alunos, o Grande Mestre evitava sua túnica cerimonial, usada nos outros períodos de seu pontifício. Durante as inspeções vestia uma armadura de treinos, sobre uma túnica leve que ia até os joelhos, deixando à mostra as pernas firmes e os braços fortes. As ombreiras de couro duro e o peitoral de metal eram responsáveis pelo ar bélico da figura do Mestre, lembrando a todos que representava não apenas a santidade do Santuário, mas também sua força militar devotada à defesa da Deusa. Mantinha, porém, a obrigatória máscara, feita de prata como a das Amazonas, deixando soltos seus cabelos prateados.

- Bom dia, jovens guerreiros.

O Grande Mestre emanava uma aura de autoridade mesmo à distância, sua figura ornamentada como se houvesse recém-chegado do Olimpo.

- Bom dia, Senhor!

Gritaram os alunos em resposta, a disciplina que permeava o grupo era algo quase palpável. Sagita deixou escapar um pequeno sorrisinho de satisfação, já antecipando os elogios que receberia do Mestre ao término da inspeção.

O Mestre passava diligentemente por entre as fileiras de garotos, perfilados militarmente na arena principal. Fazia perguntas e observações a cada um deles. Elogios, porém, eram raríssimos. Seu rigor ia desde o estado das roupas até a precisão com que o aprendiz se posicionava na fila. Andava devagar, suas sandálias de couro trançado estalando sobre o saibro grosso. O sol começava a esvanecer o frescor matutino, fazendo um ar abafado subir do chão poeirento.

Shiva, estático em sua posição na fila de meninos ainda imberbes, observava com o canto do olho cada movimento do Mestre. Ansiava pelo momento de sua avaliação. Sabia que seria um dos poucos elogiados. Afinal, como poderia passar pela avaliação de Shaka e ser ignorado pelo Grande Mestre?

- Qual é seu nome, garoto?

Uma voz melíflua, porém inegavelmente potente, surgiu de trás da máscara metálica.

- Shiva, Senhor.

Respondeu o menino com precisão militar, firme, alto, mas sem ser estridente e insubordinado.

- Sim, um dos discípulos de Shaka, não?

Falou o Mestre. Lembrou-se do menino treinando com Virgem. Shaka desferia golpes precisos e potentes, prontamente evitados pelo aprendiz. Sabia que o Cavaleiro não utilizava toda força, mas levava o garoto ao seu limite.

"- Não vá matá-lo, Shaka.

Um de seus raros momentos de descontração, brincou com a severidade do tratamento dado a Shiva. O menino continuava a se esquivar habilmente da série de golpes desferidos pelas mãos ágeis do treinador.

- Se for necessário para seu aprendizado, irei, Mestre.

Shaka respondeu sem mesmo tirar os olhos do aluno. E o Mestre sabia que ele o faria se fosse preciso."

- E a qual Armadura aspira, pupilo?

- Pavão, Senhor.

O Mestre fez um pequeno silêncio. Se seu rosto pudesse ser observado, ostentaria uma expressão de estranheza. Pavão era uma das Armaduras de prata mais obscuras, e raramente havia um bom número de competidores por ela como havia para Centauro ou Órion, muito mais populares entre os aprendizes.

- E posso saber por que pretende lutar por esta constelação especificamente?

Era a única pergunta pela qual não esperava. Shiva se viu engasgado, olhando fixamente para o nada, como o protocolo militar rezava. Não saberia dizer com certeza o porquê havia escolhido Pavão. Sua conexão com a Índia, talvez. Os olhos atentos na cauda lendária do animal, iguais aos seus, poderiam ser usados como desculpa. O silêncio era constrangedor, para o Grande Mestre e para o próprio aluno. Sentia os cantos dos olhos dos outros aprendizes sobre sua figura estática. Shiva abriu a boca, mas as palavras foram forçadas a sair.

- Porque é minha constelação protetora, Senhor.

O Grande Mestre permaneceu em silêncio. Todos aguardavam sua reação, que não foi mais do que um aceno positivo de cabeça seguido de um 'Bem, então boa sorte'. Shiva nunca havia se sentido tão constrangido em toda sua vida. Ouvia os risinhos inaudíveis dos outros garotos ao seu redor, os olhos irônicos de Sagita, e seu sangue ferveu sob o sol escaldante.

Sua ira, porém, seria deixada para depois, pois uma única pergunta dominava sua mente: "Onde ele está?". Orpheus não havia chegado e sua vez de ser inspecionado estava próxima. Sabia que ele sempre fora assim, meio avoado, mas nunca em dias importantes como aquele. O Grande Mestre continuava seguindo, até parar em um espaço vazio na fileira de garotos. Virou a máscara metálica em direção a Tremy de maneira interrogativa, fazendo o instrutor revirar sua lista de chamada.

Foi quando, do fundo da arena, passos apressados foram ouvidos. Orpheus corria desesperadamente em direção ao seu lugar na fila, enquanto Sagita fervia em frente aos seus alunos, que seguravam o riso ao ver a expressão cômica do instrutor.

- Pronto, Senhor!

Falou, esbaforido, enquanto tentava arrumar sua roupa de treinos ainda amarrotada.

- E quem é o senhor?

A voz do Mestre era um misto de ironia e divertimento.

- Sou Orpheus, Senhor.

Respondeu com um sorriso. Por detrás da máscara, o Mestre sorria com a simpatia sincera do garoto de cabelos escuros.

- E posso saber onde o senhor estava?

O garoto tentava recobrar o fôlego quando respondeu ao Mestre.

- Dormindo, Senhor.

Respondeu sem hesitar. A turma toda explodiu em risos, e até mesmo o Grande Mestre deixou escapar algumas risadas, escondido pela máscara fria.

- Perdoe-me, Senhor. É que estava tomando café quando adormeci na mesa...

Falou, baixando os olhos para o chão. Shiva odiava-se por tê-lo deixado sozinho no refeitório.

- Não se preocupe. Só prometa que não acontecerá novamente, sim?

Falou o Mestre com uma voz confortante e levantando o rosto do menino com a mão em seu queixo.

- Está bem, Senhor!

Respondeu Orpheus, sorrindo com a mesma expressão de uma criança que escapa do sermão.

-o-o-o-

- Como pode ter se atrasado? E em dia de avaliação, pelos Deuses?

Indignava-se com a atitude do amigo, descontando a raiva em uma maçã. A manhã já estava alta, e as arenas estavam escaldantes. A primeira pausa de dez minutos imperava, e a confusão reinava ao redor dos dois. A brisa mediterrânea começava a soprar, refrescando os corpos suados dos futuros Cavaleiros.

Orpheus, sentado na grama às margens do bosque do Santuário, tentava se desculpar.

- Eu dormi na mesa do café... Mas a culpa é sua! Você me acordou muito cedo!

Respondeu ele, passando a culpa para Shiva.

Costumavam fugir para o gramado ao redor da pequena floresta que o Santuário mantinha na Ala Oeste nas pausas entre os treinos. Desde que se conheceram, aquele era um local quase que sagrado, onde os dois passavam a maior parte do tempo juntos.

"-Olá!

Disse o garoto recém-chegado. Estavam no início da escadaria que dava acesso às Casas Sagradas; Orpheus em pé, ao lado de Shiva, que olhava perdido para as arenas lá em baixo, uma expressão séria em seu rosto juvenil. Não se deu ao trabalho de responder àquele cumprimento jovial, mantendo os olhos presos na paisagem de mármore do Santuário.

Havia odiado aquele entusiasmo despropositado e sua simpatia exacerbada, características que nele não floresciam. Sorria para tudo e para todos, ao contrário de si, que se fechava para o mundo. Às vezes pensava se não deveria ser discípulo de Camus, mas então se lembrava da incapacidade emocional de seu próprio mestre, e a ideia parecia infundada.

- O que aconteceu?

Falou novamente, com uma expressão preocupada por aquele menino que nunca vira antes. Mal sabia ele que Shiva havia acabado de conhecer seu tutor. E não havia gostado nem um pouco dele.

- Não aconteceu nada.

Respondeu secamente, levantando do degrau onde estava e encarando o desconhecido de frente. Ainda não havia visto o rosto de quem falava com ele, e ficou estático por um instante quando pôs os olhos nele. Mesmo naquela idade, os olhos escuros do garoto já o haviam fascinado. Tinham um brilho diferente. Talvez a verdadeira felicidade. Ou talvez a luz de seu próprio encanto refletido naquelas duas esferas repletas de uma escuridão cálida e confortável.

Shiva tinha poucas lembranças de sua infância. Mas lembrava-se claramente da viagem feita da Índia à Grécia na companhia de um homem estranho. Homem este que o havia levado para um lugar igualmente estranho, feito de pedras brancas e muito enfeitado, por onde pessoas com armaduras reluzentes passavam de um lado para outro. Até conhecer Shaka.

O recém-ordenado Cavaleiro de Virgem mantinha uma disciplina tremenda sobre o garoto, que fora seu primeiro discípulo, sempre alegando que 'era para seu bem'. Sabia disto. Sabia que tinha que ser forte. Só não sabia a razão.

- Então te vejo depois.

Falou finalmente o garoto, desistindo de manter uma conversa e deixando Shiva parado às portas da Casa de Áries.

- Hunf, tenho coisas mais importantes para fazer.

Mentiu para si mesmo depois que o menino desapareceu em direção às arenas. Sabia que queria encontra-lo novamente. Só não admitia que realmente quisesse isto.

Subiu as escadas em direção a Virgem, pensando em seu rosto inocente. Havia se perdido por ele naquele exato momento.

Uma semana depois e já estavam amicíssimos. Shiva não queria sair de perto de seu novo amigo por nada neste mundo. E o sentimento era também sentido por Orpheus. Só que ninguém tinha conhecimento dele. Nem mesmo os próprios garotos. As brincadeiras interrompidas pelos treinos foram rareando, até tornarem-se apenas conversas no gramado margeado pelas árvores escuras do bosque"

- É dia de revista! Óbvio que o acordei cedo. Mas com sua demora para se organizar, deveria ter lhe chamado ontem! Sabia que não deveria tê-lo deixado sozinho naquele refeitório...

Falou, possesso com a intimação do outro e assumindo a culpa para si mesmo. Orpheus simplesmente virou as costas para ele, em clara atitude infantil. Não que fosse muito crescido, mas com seus dezesseis anos suas atitudes já haviam mudado. E muito.

Apesar de não parecer, Orpheus já era um homem crescido. Independente, muito esperto e rápido nas palavras, porém com um sorriso angelical e expressões infantis. Havia também crescido no relacionamento com outras pessoas, para o ciúme de Shiva. Apesar da relação que possuíam, Shiva deixava-se tomar por uma força desconhecida quando via Orpheus sozinho com outra pessoa, o único sentimento que, mesmo com os intensivos treinos mentais, conseguia dominá-lo.

- Está bem. Desculpe... olhe para mim.

Orpheus virou o rosto, que ostentava um pequeno sorriso, para o outro.

- É bom que se desculpe mesmo.

E gargalhando, lançou-se em um abraço. Não tinha vergonha de seus atos, pelo contrário. A inocência era tão natural que ele não possuía malícia alguma em atirar-se em uma demonstração de carinho como aquela.

"- Posso deitar com você?

Perguntou ele duas noites atrás. Desde que começaram a dormir no mesmo dormitório os dois juntavam as camas, não resistindo à mínima distância que os separava. Durante todas as noites, desde os oito anos, eram um ritual sagrado para ambos.

- Você já está deitado comigo. É impossível juntar mais as camas.

Shiva não fizera menção de abrir os olhos, a voz arrastava-se sonolenta e com a única consciência de não acordar ninguém ao redor. Não compreendia o que o amigo falava.

- Não estou falando das camas. Estou dizendo com você.

O silêncio que seguiu o sussurro fez Shiva abrir os olhos e encará-lo de verdade. Finalmente compreendera o que estava sendo dito para ele. Com um rápido sorriso, cedeu espaço para o garoto se acomodar ao seu lado, abraçando-o logo depois de ele ter se deitado. Não sabia dar nome àquele sentimento que crescia em seu peito dia após dia de convivência. Mas sabia que não queria que fosse embora dali. De seus braços. De sua vida.

- Prometa-me que sempre será meu, Shiva.

Disse Orpheus de olhos fechados entre os braços do outro. Shiva ficou calado, espantado com a concordância entre os pensamentos dos dois.

- Shiva.

Perguntou o menino, levantando a cabeça esperando pela resposta. O vento quente que soprava do Egeu assolava a noite, varrendo os quartos do Santuário.

- Prometo.

Respondeu finalmente, com um sorriso secreto."

-o-o-o-

- Ele está vindo. Concentre-se agora.

Falava Shiva enquanto Orpheus começava a despontar seu cosmo. Nada grandioso, mas via-se a força contida no corpo mirrado do garoto. Uma aura translúcida brilhava ao seu redor, emanando um calor controlado, mas que possuía um potencial incomensurável.

- O que acha dos dois, Tremy?

A pergunta do Grande Mestre pegara Sagita desprevenido. Estava procurando seu próprio discípulo entre os garotos para mostrar ao Mestre o quanto seu treinamento estava evoluindo. A máscara prateada fazia de cada palavra do Mestre uma surpresa, uma vez que Tremy não sabia o que exatamente ele estava observando.

Ambos andavam pelas arenas, Sagita meio passo atrás, em uma mistura de respeito e bajulação, exaltando seus alunos favoritos e ignorando aqueles com quem não simpatizava. Orpheus e Shiva faziam parte do último grupo.

- Água e vinho, Senhor. Shiva é preciso, rápido, forte e insosso. Orpheus, por outro lado, é desleixado e tem uma péssima atenção, mas guarda um grande potencial. Em compensação, Estephano possui a melhor aptidão para Cavaleiro entre os candidatos...

Tremy desviou o assunto, tagarelando sobre seu discípulo e tentando novamente atrair a atenção do Mestre. Este apenas murmurou, ignorando a arenga do instrutor sênior.

- Realmente água e vinho...

-o-o-o-

- Será que estão falando bem de nós?

Perguntou Orpheus, vendo o instrutor gesticular na direção deles.

- Aposto que sim. Agora, concentre-se. Queime seu cosmo o máximo que puder.

Acatando a ordem do amigo, Orpheus concentrou sua mente na explosão da energia dentro de si. Em alguns segundos a aura que o envolvia se expandiu, tornando-se visível e tremeluzindo em matizes azulados.

- Ótimo! Pode parar agora. Já foi o suficiente por hoje.

Shiva sabia que o garoto era mais forte que ele, porém não sentia inveja de seu poder. Apenas o admirava com olhos reluzentes de orgulho.

- Que foi?

Perguntou Orpheus, estranhando o olhar perdido de Shiva.

- Nada. Vamos subir, já está na hora do almoço.

Dissimulou. Pensava na perfeição de sua vida após a entrada dele nela. E nas mudanças que ele criou quando o fez.

Subiram pelos poucos degraus que separavam as arenas do refeitório, onde dezenas de garotos faziam uma algazarra que Tremy tentava controlar desesperadamente. A paz só foi instaurada com a chegada dos Cavaleiros de Ouro no local. Em dia de inspeção, até mesmo a mais alta casta dos Cavaleiros estava sujeita à vistoria do Mestre, que exigia a presença de todos durante o almoço, onde seria proferido seu tradicional discurso. Os defensores das Doze Casas não estavam utilizando as Armaduras, mas mesmo assim emanavam uma autoridade natural, que fez com que os garotos sentassem para comer tão bruscamente que deixaram Sagita um pouco perdido.

Shiva havia perdido seu costumeiro assento ao lado de Orpheus, indo sentar dois lugares adiante, do outro lado da mesa, de onde via o amigo conversar com Ágora. Não conseguia escutá-los devido ao burburinho à sua volta, mas não gostava nem um pouco da proximidade do outro menino.

Durante as últimas três semanas, Ágora havia se aproximado demais de Orpheus, o que começava a provocar a ira fácil de Shiva. Conhecia bem o tipo. Era o outro discípulo de Shaka, e faziam diversas aulas juntos. Metido, arrogante e sedutor, com uma fala melosa e sempre com um elogio na ponta da língua. Um inimigo temível.

Orpheus não percebia, mas aceitava o charme lançado por Ágora. Ria de suas piadinhas, tocava-o involuntariamente, cochichava em seu ouvido. Shiva fervia observando as maneiras dos dois garotos do outro lado da mesa. Precisava sair dali.

Nem chegou a tocar na comida. Não tinha estômago para assistir àquela cena e depois tentar comer, e levantou-se logo após o discurso do Mestre, do qual ele não escutou uma palavra sequer. Saiu pisando em passos firmes, deixando o salão com ar irritado. Shaka virou os olhos fechados para a porta do refeitório. Sentia o cosmo do aluno crescer.

O ar do lado de fora estava abafado, mas ainda assim mais confortável do que lá dentro. Braços cruzados, pernas afastadas, um pináculo humano observando as arenas com olhos incandescentes. Uma voz soou às suas costas.

- Por que saiu desse jeito?

Orpheus vinha andando lentamente, aproximando-se de Shiva aos poucos. Não que o temesse, mas queria introduzir sua presença devagar. Não obteve outra resposta além do silêncio. Sequer havia se virado para olhá-lo.

- Responda-me. O que houve?

Insistiu. Viu seu rosto virar para o lado, mas o corpo permaneceu estático.

- Nada.

Respondeu seco, árido. Já haviam tido aquele mesmo diálogo antes, e Orpheus sabia que deveria deixa-lo em paz por uns instantes. Iria acalmar.

- Quando quiser conversar, estarei lá dentro.

Partiu em direção ao refeitório com o coração pesado. Sentia em deixa-lo sozinho naquele estado, mesmo que ele pedisse por isso. Mas sabia que não iria adiantar em nada insistir na conversa, por mais que isto o incomodasse. Por mais que gostasse de Shiva, às vezes sentia um vácuo entre os dois. Sentia como se ele se cansasse de sua companhia, como se seus pensamentos fossem por demais inatingíveis para uma mente como a de Orpheus, guardava seus sentimentos, restringia-se a se revelar mesmo quando sozinhos. O que diabos se passava naquele coração impenetrável?

-o-o-o-

Passara o dia todo nas arenas, ora treinando, ora simplesmente vendo o sol se mover pelo chão. Tinha a tarde livre depois da inspeção do Mestre, e decidira passa-la canalizando sua raiva. Orpheus sumira depois do breve monólogo na hora do almoço, e ainda não havia dado notícias. Estava começando a ficar preocupado.

- Quer companhia?

Uma voz veio da entrada da arena. Jym já estava com seus dezoito anos quase completos; alto, de cabelos negros e um corpo de dar inveja a qualquer narciso. Estava prestes a lutar contra Calisto pela posse da Armadura de Cão Menor, e alguns minutos de treino não iriam lhe fazer mal.

Shiva não respondeu. Apenas entrou em posição de luta, esperando pelo novo adversário. Por alguns minutos ambos ficaram se analisando, até os primeiros movimentos serem feitos. No início os golpes saíam a esmo, uma maneira de avaliar o oponente, até que chutes e socos mais precisos começaram a despontar.

Shiva, porém, não estava dando seu melhor. Ficava só na defensiva, evitando a maioria dos golpes de Jym, e não atacava.

- O que foi? Está desconcentrado. Shaka abrandou o treinamento?

A pergunta soou irônica aos ouvidos de Shiva, fazendo-o endurecer o rosto e desferir um chute preciso nas costelas de Jym.

- Não lhe interessa.

Respondeu secamente ao menino jogado no chão. Não era de sua conta saber que ficara chateado com o episódio durante o almoço. Não precisava saber que sentia um ciúme irrefreável de Orpheus, principalmente quando Ágora estava por perto. Mas não havia motivos para ter agido daquela maneira infantil. Sim, aquela era a palavra: Infantil. Sentiu-se pesaroso por ouvir de sua própria consciência um adjetivo que abominava.

- Doeu, shiva.

Reclamou, levantando-se e afagando a parte atingida, logo abaixo da axila. Não havia quebrado nada, mas um chute daqueles não era algo para ser ignorado.

- Estamos brincando, lembra?

Disse, contando as costelas com a ponta dos dedos.

- Desculpe. Foi mais rápido que eu.

Desviou o olhar do belo rosto que agora ostentava uma expressão de dor, causada por ele mesmo, a mesma situação de algumas horas atrás.

Seus olhos foram cair sobre os primeiros degraus da escadaria das arenas. Sentado ali, Orpheus era uma figura inocente, trajando sua túnica de treinos. Havia retirado as sandálias e as colocado displicentemente no chão. Seu volto sentado sobre as pedras brancas iluminadas pela luz avermelhada do sol que se punha fazia da imagem uma pintura inspirada pelo Olimpo. Não fosse um único detalhe: Ágora.

Novamente ambos estavam juntos. E mais uma vez Shiva perdia o controle de seus sobre os seus sentimentos. Jym não teve tempo de deter o menino que partia em passos rápidos para cima do casal que conversava sobre o pilar. Orpheus estava um pouco apreensivo com a situação: nunca havia visto Shiva com aquele olhar assassino.

Em um esforço súbito para se controlar, Shiva parou a poucos metros de distância dos dois. A respiração forte mostrava o quanto se esforçava para manter sob controle o que quer que crescia dentro de seu peito. Sentia o gosto amargo no fundo da garganta, a dormência na ponta da língua e o calor na boca do estômago, e tentava ao máximo ignorar a tudo.

- O que quer aqui?

Suas palavras saíram em um tom brando, porém extremamente assustador.

- Estou passeando. Preciso de alguma permissão para isso?

O calor irradiou-se para a ponta dos dedos e para as coxas. Sentia as ondas de ira correndo seu corpo, e teve que duplicar a força de vontade para manter-se controlado.

- Estava passando pelas arenas quando vi Orpheus aqui sozinho, observando sua lutinha com Jym com ar entediado. Então resolvi descer e conversar um pouco com ele. Há algum problema nisso?

Shiva odiava a maneira com que ele se referia a Orpheus. Não tinha a dignidade para falar dele, sequer de mencionar seu nome.

- Sim, há um problema. Não quero que Orpheus fique andando por aí com tipos como você, um conquistador baixo, que deveria pertencer àquela gangue patética de Afrodite, mas que foi recusado por ser ainda mais medíocre que eles.

As palavras com que retrucava à insolência de Ágora tinham sabor e textura em sua boca. Eram lisas como o mel, mas levemente doces e secas como o vinho. Era como uma válvula deixando escapar uma enorme pressão. Orpheus estava atordoado com a conversa, virando a cabeça de um lado para outro. Quase podia ver faíscas saltando do encontro entre os dois olhares.

- Sabe, Shiva. Me dá pena ver uma personalidade tão marcante como a de Orpheus, tão divertida e jovial, ser despedaçada contra um bloco de rocha insensível como você. Sua incapacidade emocional vai, aos poucos destruir a simpatia e a alegria do pobre garoto aqui, exauri-lo como um buraco-negro consumindo uma estrela. E digo mais...

Ágora foi interrompido pelo punho de Shiva, que voou em direção à sua boca. A reação de Shiva fora tão automática que sequer modificou sua expressão antes de explodir sua mão contra o maxilar do garoto, tão inesperada quanto um relâmpago em um dia ensolarado.

Um suspiro de surpresa deixou os lábios de Orpheus e Jym. Ninguém duvidava que Shiva poderia explodir, mas mesmo assim a reação foi surpreendente.

- O que diabos você pensa que fez, seu idiota!

Ágora segurava o queixo, tentando coloca-lo no lugar. Seu lábio inferior inchara automaticamente, e uma dor absurda fazia seu ouvido esquerdo latejar. Falava com dificuldade, e a cada palavra uma pontada se fazia presente em toda sua mandíbula. Shiva apenas ofegava à sua frente, o olhar ainda mortal cravado no adversário.

- Nunca mais chegue perto dele. Nunca mais ouse usar seu nome. Não quero que você fique rondando Orpheus como uma mosca impertinente. Seu charme barato pode funcionar para os pirralhos que tenta seduzir, mas não com ele.

Os dentes cerrados davam a Shiva uma aparência de ferocidade selvagem.

- Seu insolente egoísta. Seu egocentrismo cego é uma ofensa àqueles que o cercam. Eu realmente tenho pena de Orpheus por ficar em sua presença durante tanto tempo. Você é mesquinho e carente, e deseja atenção incondicional! Quem você pensa que é? O dono dele, por acaso?

- Sim, eu sou!

O silêncio caiu pesado por sobre a arena. Shiva, em seu ímpeto de defender Orpheus das investidas de Ágora, acabou falando o que não devia. Orpheus tinha os olhos arregalados, não acreditando no que acabara de ouvir. Virara um objeto, posse de alguém, um item sem vontade, jogado de um lado a outro como um bicho de pelúcia nas mãos de duas crianças birrentas. Jym desviou o olhar da cena, com a expressão de quem se compadece da idiotice alheia.

- Desculpe. Me desculpe, não foi o que eu quis dizer.

Shiva começou a se desculpar antes mesmo de Orpheus falar alguma coisa, antevendo sua reação. Este, porém, se limitou ao silêncio. Levantou-se dos degraus, tomou suas sandálias e subiu as escadas, sério como nunca ficava.

- Você ainda vai me pagar por isso, maldito.

Rosnou para Ágora, que mantinha um sorriso sarcástico, como se tudo o que ele havia dito se confirmasse naquela atitude dele. Shiva correu atrás de Orpheus, que já estava no topo da escada.

- Por favor, eu não quis dizer aquilo.

Implorava pela atenção do outro, que mantinha a expressão árida. A boca apertada, os olhos inexpressivos, tudo demonstrava que aquilo havia machucado mais fundo do que parecia.

- Se não queria falar, teria sido melhor ter mantido a boca fechada.

Respondeu secamente, aumentando o passo e deixando Shiva parado, perdido nas palavras que acabava de escutar, e que não sabia ser possível virem de Orpheus. Mas ele tinha razão. Deveria ter ficado calado.

Ágora já havia deixado a arena quando ele desceu as escadarias para encontrar Jym. Este estava lá, com uma expressão de compadecimento que não lhe caía bem, e que Shiva odiou no mesmo instante.

- O que eu fiz? Como cheguei a tal ponto?

Perguntou cabisbaixo ao garoto mais velho.

- Deixou ele te dominar. Ele domou seus instintos, quando você deveria domar os dele.

Shiva levantou a cabeça, reconhecendo as palavras na boca de Jym.

- Eu escuto alguns dos ensinamentos de Mestre Shaka de vez em quando. Fazem bem para a alma.

Era o fim. Acabara de magoar a pessoa que mais amava, havia se deixado levar pelas provocações de Ágora e agora via que alguém que não participava das lições de Shaka sabia mais sobre os ensinamentos de seu mestre do que ele próprio.

Desabou sobre seus joelhos, sendo amparado por Jym. Não deveria estar fazendo cena. Deveria estar controlando seus sentimentos, fechando-os dentro de si. Ou não? Era hora de libertá-los e mostrar finalmente quem realmente era? Estava com dúvidas. Estava confuso e, pela primeira vez desde que conhecera Orpheus, realmente sozinho.