História escrita para o Desafio RCR, um desafio promovido pela comunidade OA Fanfics.

Não deixe de visitar meu perfil para conhecer os eventos nos quais participo ^^v

Se você é escritor, venha participar dos eventos da comunidade Olho Azul Fanfics!

Se você é leitor, venha ler as fanfics de outros ficwriters da Olho Azul Fanfics!


Memórias inéditas


Ninguém havia morrido na última batalha, contra Mnemosine. Apesar de terem quase morrido, pelo enorme poder da deusa e por seu desejo intenso de acabar com os humanos covardes. Dizia ela que mesmo os mais bravos heróis sentiam medo por algo, e estava certa. Apesar de dispostos a perder as vidas, eles tinham medo pelas pessoas que amavam.

No auge da luta, quando Mnemosine disse que ela voltaria a acreditar nos humanos caso um deles se revelasse um homem completamente sem medos, o que dizia ser impossível. E um deles disse que seria assim. Fora um plano ousado, corajoso, a prova que Mnemosine desejara.

Saíram do campo de batalha com um acordo de paz e a sensação de que perderam. Pelo menos, para Ikki, era uma grande derrota. Se ele tivesse sido mais forte, as coisas poderiam ter se resolvido de outra forma, mesmo pela violência. Naquele momento preferia a violência, se ela fosse capaz de proteger a pessoa com que mais se importava. Ele não tinha vergonha de achar-se medroso pelos outros. Ter medo naquele sentido era ser humano.

Ikki caminhou pelos corredores do hospital da Fundação Grado até encontrar o quarto desejado. Abriu a porta e lá estava Shun, que havia permanecido no hospital por mais algumas semanas. Trazia roupas limpas e alguns livros para a distração do irmão.

"Oi."

"Olá", respondeu Shun.

Depois de colocar a sacola sobre a bancada, voltou-se ao irmão.

"Como se sente hoje?"

"Melhor. Não sinto mais dor, mas me disseram que terei de ficar para fazer mais exames."

"Que bom."

"Trouxe suas roupas e… alguns livros. Não sei se você já leu."

"Obrigado. Eu vou ver mais tarde. Desculpe o incômodo."

"Não é incômodo."

Alguns segundos desagradáveis em silêncio se passaram, marcados pelo sorriso gentil de Shun, e Ikki decidiu perguntar:

"Você não vai mais perguntar?"

"Não. Cheguei à conclusão de que isso é um aborrecimento para as pessoas. Eu não gostaria de causar mais problemas do que já estou causando, sabe? Eu noto que as pessoas se sentem incomodadas quando eu pergunto. Isso eu consigo perceber depois, apesar de… ser muito estranho. Mas elas acabam falando depois."

"Você não mudou de personalidade."

"Acho que não é a primeira vez que me dizem isso."

Shun riu, um sorriso vazio, bastante superficial. Aquilo doía. Ikki deu alguns passos adiante e estendeu a mão.

"A propósito, meu nome é Ikki."

"Prazer", respondeu Shun, cumprimentando-o. "Acho que o correto seria: prazer, mais uma vez. Não é a primeira vez, certo?"

"Certo."

Logo depois de cumprimentá-lo, Shun apressou-se para o criado-mudo e abriu um caderno que vinha usando desde o começo da internação. Nele havia uma lista com os nomes de todas as visitas e algumas anotações.

"Ikki… Ah, é o primeiro da lista! Então você é a primeira pessoa que veio me visitar... E depois… neste dia e neste..."

E o sorriso gentil transformou-se numa expressão de culpa.

"Desculpe…Deve ser horrível."

Qual dor era maior em cada encontro? A dele ou a de Shun? Desde que Mnemosine tirara de Shun toda a memória das pessoas queridas e a capacidade de criar laços profundos com outras no futuro, tudo o que restara fora uma casca vazia. Um guerreiro sem nenhum medo, era verdade, mas completamente perdido.

"Eu já me acostumei", mentiu Ikki. "Não se preocupe comigo. Você só precisa se preocupar consigo mesmo. Se lembrar de algo, não se esqueça de avisar."

"Sim… Ikki, o seu nome é estranho."

"Por que diz isso?"

"Aqui no caderno, eu anoto tudo o que posso sobre as pessoas que vêm me visitar. Este Seiya, por exemplo, disse que é meu amigo, e que nos conhecemos ainda pequenos. Eu anoto tudo, porque eu não posso mais lembrar. De todos os nomes deste caderno, você é o que mais me visitou até agora, mas é o único que não tem nenhuma informação no caderno. Eu imagino que eu era uma pessoa importante para você, mas..."

Foi insuportável ouvir aquilo. Ikki rapidamente agarrou os ombros de Shun com força e por pouco não o chacoalhou, na louca tentativa de que alguma memória voltasse. Deteve-se e encarou o irmão:

"Shun… Você ainda é importante para mim. Não use o verbo no passado."

"Ikki."

Não aguentava mais ficar ali. Ikki deu meia volta e dirigiu-se para a porta.

"Eu preciso ir. Eu volto para vê-lo, Shun."

"Entendo… Obrigado por esta e pelas outras visitas, Ikki!"


Shun havia recebido alta e agora morava na mansão Kido, aos cuidados de Tatsumi e dos empregados. Ikki, apesar de sua aversão pela mansão, decidiu morar lá para apoiá-lo e tentar recuperar sua memória, embora tanto Saori quanto os médicos dissessem que não havia solução.

As anotações tinham se multiplicado em vários cadernos. Obcecado no passado que não podia recuperar, Shun passava o dia inteiro lendo as informações, organizando-as em grupos, a fim de acessar com maior facilidade os dados de cada pessoa. Um dos montes sobre sua mesa era para pessoas que o visitavam com frequência, no qual Ikki estava incluso. Shun conseguia memorizar os dados da pessoa enquanto esta estivesse na sua frente e até por meia hora depois de ela ter partido. Depois disso, esquecia quase tudo do encontro.

Às vezes, Ikki passava o dia inteiro com Shun, tentando fazê-lo lembrar de alguma coisa, na esperança de que pelo menos o seu rosto fosse gravado. Mas o dia seguinte mostrava-se muito mais doloroso do que o dia anterior pelo tamanho da deceção, e Ikki simplesmente desistiu.

"Oi. Sou eu, Ikki."

Shun estava trabalhando no diário, no qual escrevia fatos que julgava importantes das pessoas nas visitas. Ele lia e relia o diário continuamente, mas nunca se lembrava das pessoas sobre as quais escrevia. O rapaz interrompeu sua atividade e pegou o arquivo de Ikki, que não possuía quase nada de informação, além das inúmeras visitas datadas, rigorosamente anotadas. Atualmente, as informações extras que Shun anotara eram: 'eu sou alguém muito importante para Ikki', 'não falar de si mesmo no passado', 'ele está morando comigo na mansão'.

"Oi, Ikki! Está tudo bem?"

"Sim… E você?"

"Estou indo bem! É um pouco difícil, porque não lembro os nomes… Preciso consultar a lista o tempo todo. Mas finalmente estou começando a separar as informações de maneira mais efetiva."

O Shun de agora parecia transformar aqueles cadernos na sua profissão. A diferença era que ele não o fazia por dinheiro, mas para viver.

"É mesmo…? E como?"

"Agora tenho um registro para mentiras."

"Mentiras…?"

"É! Eu posso ter perdido a memória, mas, por algum motivo, eu sinto quando as pessoas são honestas ou não comigo. Eu sei que elas mentem porque gostam de mim e provavelmente não querem que eu sofra. Eu preciso me dizer algumas vezes para não ficar bravo com elas. Mas isso me atrapalha na hora de estabelecer as informações verdadeiras. Então eu anoto tudo… O que é verdadeiro e o que é mentira… No seu nome, por exemplo, vejamos… Há cinco visitas, você me disse que é meu amigo. Mas… eu senti que isso não era verdade, por isso descartei a informação para esta pilha. É assim que funciona, sabe?"

Aquilo era um soco no estômago. Então Shun sabia das mentiras. De alguma forma, ele se tornara mais perceptivo, talvez porque seu objetivo maior tornara-se descobrir quem era e qual era seu passado. Ikki sentiu-se envergonhado por mentir repetidas vezes, mas o fizera apenas para protegê-lo.

"Ikki, neste caderno, eu escrevi que sou importante para você. Você mora comigo, e, mesmo quando eu estava no hospital, você era quem mais me visitava. Então eu gostaria que você, pelo menos, não mentisse para mim… Eu não sei se estou pedindo demais… Desculpe se for demais… Você não precisa aceitar esse pedido se não quiser…"

O rosto angustiado de Shun era mais do que suficiente para Ikki tomar a pior decisão para os dois. Shun não queria viver separado das pessoas. Ele queria a verdade, por mais difícil que fosse.

"Se falarmos a verdade, você vai sofrer muito mais do que já está sofrendo, Shun."

"Eu sei disso! Eu sei, as pessoas que me visitam são boas comigo, se importam comigo. Mas é que… eu quero ter com alguém uma relação especial. Eu quero saber com quem estou falando, eu quero saber por que essa pessoa está me visitando, além da história de ser minha amiga. Por que somos amigos? Que tipo de história nós compartilhamos? Eu preciso saber disso. Todos que vêm aqui gostam de mim, mas estão tão distantes… incluindo você."

"Shun… A distância permanecerá mesmo que a pessoa conte tudo."

"Não! Eu posso tentar, se tiver as informações! Eu vou me esforçar, eu prometo! Eu só preciso que me fale a verdade, por favor… Por favor…"

Era um pedido de socorro, e Ikki, no seu instinto de irmão mais velho, sentia que precisava ajudar, de alguma forma. Mas nunca um pedido de socorro soou-lhe tão mortal. Tinha a sensação de que ajudá-lo era o mesmo que empurrá-lo de um penhasco. Cerrou os punhos, nervoso. Shun estava com caneta e caderno em mãos, pronto para registrar o que quer que dissesse.

"A verdade… A verdade… A verdade, Shun… é que eu sou seu irmão mais velho."

O rosto de Shun empalideceu, e o choque impediu-o de escrever a informação. Mas logo ele anotou apressadamente, em letras grandes, desesperado. E, assim que escreveu, sentou-se na cama, coberta de anotações, sem se importar com os papéis amassados.

"Meu irmão…", repetiu, num sussurro. "Meu irmão?"

"Sim. Nascemos dos mesmos pais. Fizemos nosso treino de cavaleiro em lugares separados, mas, depois que nos encontramos, lutamos juntos em muitas batalhas. Eu sempre te protegi."

Shun ficou olhando para a parede do outro lado do quarto, boquiaberto. Uma lágrima escorreu no rosto.

"Eu não lembro."

Mais alguns segundos se passaram, e o semblante de Shun mudou para o desespero.

"Eu não lembro! Por que não consigo lembrar algo tão importante?! Por que eu não consigo te reconhecer?! Ikki! Não… Niisan! Eu… eu não consigo…!"

Mais lágrimas caíram, e Ikki precisou de todo o autocontrole para não derramar as suas. Sentou-se ao lado do irmão e abraçou-o, abafando no peito o choro do irmão. Empurrara-o do penhasco. Por que fizera aquilo? Por que não o faria, vendo-o tão triste? Não sabia mais o que fazer, ou talvez não houvesse nada pra fazer. Queria canalizar toda a dor que sentia em alguma ação pelo bem de seu irmão, mas não havia nada que pudesse fazer.

Shun chorou por horas, até cansar-se e dormir. Ikki passou a noite ao seu lado. Imaginava Shun despertando e reconhecendo-o em um milagre. Quantas vezes repetira o mesmo sonho em sua imaginação? Mas logo de manhã, ao acordar, Shun fitou-o com olhos inchados e sorriu.

"Bom dia. Espere só um pouco, vou pegar o caderno."

E Ikki teve de virar o rosto para que Shun não visse sua lágrima.


FIM