Mu


Quando um velho amigo pede um favor, nada mais natural do que atender seu desejo. Shion não fazia a menor ideia de por que estava caminhando pelas ruas de sua terra natal, mais de dois séculos depois de ausência. Com tudo diferente, era impossível não sentir que não pertencia mais àquele lugar, apesar de não estar muito distante da esquina onde nascera. Na juventude, ouvira bastante que se tornara um traidor de seu povo de origem, pois o deixou por definitivo para trocá-lo pelo Santuário de Athena para viver como um cavaleiro de ouro. Não podia negar aquela acusação.

Era Áries quem o guiava. A armadura andava inquieta há dias, e agora finalmente lhe dava direções, em busca de algo que ele ainda não compreendia. Sem a reencarnação de Athena no Santuário, era incomum haver qualquer manifestação divina dela à sua volta. Shion considerava os pequenos desejos de sua armadura uma forma de a deusa conversar com ele. Afinal, havia tão pouco a fazer para agradecer-lhe pela proteção…

Ao dobrar uma rua, quase no fim da vila, encontrou a casa para qual Áries apontava. Era relativamente nova, mas estava em péssimo estado de conservação. Parte da parede havia cedido e estava coberta por uma lona marrom para ocultar o estrago. A porta havia sido substituída por um lençol. Era para entrar ali, embora ele ainda não soubesse o que faria depois. Shion delicadamente afastou o lençol e entrou na casa.

Quase todos os móveis do interior estavam revirados. Uma mulher ninava um bebê no colo, enquanto seu marido tentava consertar o pé quebrado da mesa. Shion manteve-se junto ao lençol, para não assustá-los. Ainda bem que deixara as vestes de Grande Mestre no Santuário e viera como um simples morador de Jamiel.

"Perdão pela intromissão."

"O senhor… quem é?", indagou o marido.

Havia um brasão na parede da sala, ainda que capenga. Reconheceu aquelas formas: pertencia ao mesmo clã de Atla. Isso explicava os cabelos lilases do bebê.

"Eu sou Shion de Áries. Vim do Santuário de Athena."

"Mas as roupas e as marcas na testa… O senhor com certeza é de Jamiel."

"Sim, eu nasci aqui, há muito tempo… Este é o clã do Atla. Esse símbolo na parede diz tudo."

"Atla é o bisavô de minha esposa. O que deseja, senhor Shion?"

"Seu idiota!", esbravejou-se a esposa, na direção do marido. "É Shion-sama! Esse homem não só é um cavaleiro de Athena, mas é o próprio mestre do Santuário de Athena!"

"É?! Ele?!"

"Grande Mestre Shion-sama, perdoe os modos do meu marido…", desculpou-se a mulher, abaixando a cabeça. "Ele sabe pouco sobre o Santuário de Athena e sobre a história desta família…"

"Ah… Não se preocupe. Sou eu quem precisa desculpar-se, pois entrei nesta casa sem nenhum objetivo claro. Estava apenas seguindo as instruções de minha armadura de Áries."

"Sua armadura?"

"Sim. As armaduras são entidades com vida, sentimentos e desejos. A minha queria porque queria vir para cá, e por isso estou aqui. Ainda não sei o que ela deseja, mas realizar a vontade dela é o mínimo que posso fazer. Afinal, tem sido a minha parceira desde que eu era muito jovem…"

"Dizem que foi o nosso povo que forjou as armaduras. Isso é verdade?"

"Sim, junto com a Athena-sama. Desde então, o Santuário sempre tem tido uma relação próxima com Jamiel. Você sabe bastante."

"Foi o vovô Atla que me contou! Gostaria que ele tivesse vivido o bastante para conhecer seu novo trineto…"

"É…? Trineto de Atla? Ora, Atla era o discípulo mais jovem de meu mestre… É incrível como tenho a oportunidade de conhecer o mais novo descendente dele. Será que eu posso…?"

"Ah… Eu gostaria muito, senhor… Mas, se ele chorar…"

"Entendo. Não quero deixá-lo chateado."

"Não é isso… Esta criança, Grande Mestre, acabou despertando o poder psíquico pouco depois de nascer, ele ainda não sabe controlá-lo… Tenho medo de nossa casa vir abaixo de novo, caso ele chore…"

"Então…! A casa está danificada assim por causa dessa criança?"

"Sim… Normalmente, as crianças despertam os poderes psíquicos aos três ou quatro anos, mesmo em nossa família, que é conhecida por possuir poderes bem fortes. Mas o pequeno Mu tem um poder que vai além do meu. Talvez seja tão forte quanto o do vovô Atla…"

"Por isso vieram morar tão longe em relação ao resto da vila…"

"Mesmo assim, tem sido bastante difícil. Não posso pedir que Mu não chore quando fica com fome ou suja a fralda. Perdão, Grande Mestre, por aborrecê-lo com nossos problemas."

"Na verdade… Acho que foi bom você ter me contado isso… Talvez esse seja o motivo de a armadura de Áries ter me trazido até aqui."

"A armadura? Mas por quê?"

"Posso carregá-lo?"

"Mas, se ele chorar…"

"Não se preocupe. Meu poder dará conta."

"Está bem…"

Os grandes olhinhos curiosos de Mu estavam fixados nos dele quando a mãe o entregou. O menino parecia uma cópia de Atla, de tão parecido com o trisavô. O pequenino ainda puxou o cachecol de Shion, entretido, pouco antes de notar que não estava mais nos braços da mãe. A expressão transformou-se num instante, a boca abriu-se, soltando um berro.

Shion notou os objetos da casa levitando com o poder psíquico de Mu e sentiu a própria estrutura da casa balançar com aquela pressão. De fato, aquele era um poder bastante parecido com o de Atla, capaz de teleportar centenas de pessoas sem o menor esforço. A armadura de Áries reagiu com aquele grito, deixando claro que aquele menino era o objetivo da viagem.

"Grande Mestre! A casa!"

Com o auxílio do cosmos, Shion deteve o poder de Mu, ao menos sobre as paredes da casa. E, em vez de devolvê-lo à mãe, tentou acalmá-lo. Experimentou cantar uma música de ninar, típica de Jamiel. Sua tática funcionou por cerca de vinte segundos, até Mu voltar a chorar, e Shion ser obrigado a devolvê-lo para a mãe.

"Parece que ele realmente não está interessado em ninguém além de você."

"Ainda bem que foi com o senhor. Seu poder é mesmo incrível, Grande Mestre Shion-sama."

"É que ele aumenta de acordo com meu cosmos, mas… O poder do pequeno Mu é puro e está muito além do que eu posso imaginar. Atla tinha um nível de telecinese muito parecido com o deste pequeno. É a primeira vez que vejo um bebê demonstrar tanta força… Não deve estar sendo fácil… Cuidar dele aqui."

"Quando Atla-sama estava vivo, nossa casa permanecia segura, pois ele sempre a protegia. Mas agora… Mal nos mudamos para cá, e acho que logo teremos de procurar um lugar novo. Eu tenho poderes fortes, mas Mu me supera em muito..."

A armadura de Áries sinalizou-lhe de novo. Shion já havia entendido a mensagem de sua parceira.

"Se quiser, posso ajudar nisso."

"Senhor?"

"Mas… Mãe alguma gostaria de ouvir… a proposta que tenho para fazer. Peço perdão adiantado."

"O que quer dizer?"

"Como disse antes, vim aqui porque minha armadura me guiou, representando a vontade da própria deusa Athena. Eu acredito que o que estamos presenciando hoje neste encontro é a roda do destino movimentando-se, para mim, para a sua família e, principalmente, para o pequeno Mu. A armadura de Áries está me dizendo que o destino dela e o de Mu estão ligados."

"Então ele e a armadura…"

"Parece que ela escolheu quem será o meu sucessor como cavaleiro de Áries."

"O meu Mu?! Mas ele é só um bebê!"

"É claro. Ele nem pode engatinhar ainda. Mas um talento como o dele deve ser desenvolvido desde muito cedo e com muito cuidado para não gerar acidentes, como os que ocorreram em sua casa. É por isso que fomos reunidos hoje. Existe um lugar ideal para ele desenvolver essa telecinese, que será bem mais forte do que a minha. É o mesmo local onde realizei o meu treino quando menino. Não há ninguém morando por lá há décadas, mas é um lugar literalmente vivo, onde pessoas com forte telecinesia podem praticar sem medo."

"Está me pedindo para me separar dele tão cedo?"

"Não, é claro que não. Estou oferencendo a morada de meu mestre, para que não precise mais se preocupar com a casa. Mas o que eu não gosto de pedir para uma mãe é que me deixe educar e instruir o pequeno Mu… no caminho de um cavaleiro de Athena."

"Cavaleiro de Athena… Isso significa que ele morrerá na guerra que dizem acontecer a cada dois séculos?"

"Não significa a morte certa… Mas é possível."

"Mesmo sendo uma pessoa santa, eu não vou permitir que faça isso com o meu filho!", brigou o pai. "Não me importo de morar numa casa caindo aos pedaços, nem de consertar o teto quantas vezes forem necessárias! Não quero que o meu filho se envolva em problemas que deveriam ser só dos cavaleiros! Não quero que ele acabe morto feito um sacrifício aos deuses!"

"Eu entendo se não quiser", respondeu Shion, compreensivo. "O problema é que o destino, assim como o disco de Perseu, vem para a pessoa, por mais que esta tente fugir. O senhor precisa considerar que tentar fugir desse destino pode tornar a vida de seu filho mais difícil."

"Eu não acredito nessa coisa de destino! Deixe que o meu menino cresça livre e feliz em Jamiel, Grande Mestre. Ele mal nasceu e já terá de lutar numa guerra? Isso é ridículo!"

"Peço perdão por ter vindo com esse pedido. Eu também quero que ele seja feliz aqui em Jamiel e que possa ter uma vida pacífica. Mas, sabendo que existe uma ligação entre ele e Áries, sabendo que ele nasceu com um poder imenso, duvido que seja capaz de ter a vida que merece…"

Crianças órfãs não tinham nada a perder. Shion soube que passou por um ritual para perder a memória de seus pais, pouco depois da separação, de modo a dedicar-se completamente ao treino de cavaleiro. Seus pais com certeza já não estavam mais vivos, e ele não sabia quem foram e nem como viveram. Não queria ter de fazer o mesmo com Mu.

"Isso é ridículo!"

A mãe de Mu deteve o marido e pediu silêncio com um gesto. Sendo ela a representante do clã, era considerada a chefe da família. No silêncio dos presentes, beijou o rosto de Mu, no seu zelo materno, e entregou-o novamente a Shion.

"Ah… ele vai chorar."

"Pegue", ordenou ela, incisiva.

Só lhe restou obedecer e ligar o botão de choro de Mu. Usou seu poder para manter a estrutura da casa estável, enquanto objetos pequenos flutuavam em volta. Tentou acalmar Mu, apontando para várias coisas que talvez chamassem a atenção do bebê, até que conseguiu tranquilizá-lo com um cachorro de pelúcia.

"Viu?", disse a mãe. "Não é difícil fazer com que ele se acostume ao senhor. É bom que ele o conheça bem, já que será o seu discípulo."

"Vai permitir que eu o eduque?"

"Não é o que meu coração quer, mas… Existe uma coisa sobre Mu que sempre me incomodou."

"Que coisa?"

"Não é nada de mais… Pode ser uma besteira… É que… Mu lembra um pouco o vovô… À tarde, depois do almoço… ele sempre sentava lá fora e olhava na direção daquela montanha. Mu faz igualzinho quando estou fora. Achava que isso ia acabar quando mudamos… Mas Mu ainda faz isso, sem qualquer motivo. Isso me levou a perguntar se… Sei que pode parecer ridículo… Mas eu gosto de imaginar que Mu é a reencarnação do vovô Atla."

"Então ele carrega maneirismos de Atla?"

"Deve ser besteira, não? Mas… se não for… Se não for, Grande Mestre Shion-sama, então Mu deve seguir o caminho de um cavaleiro de Athena."

"Por que acredita nisso?"

"Porque… Desde sempre, o vovô Atla sempre lamentou… O fato de que não pôde se tornar um cavaleiro de Athena. Ele não se arrependeu da vida que teve, apenas… gostaria de ter podido viver um pouco como cavaleiro, antes de estourar a guerra, apenas porque queria sentir de perto como é lutar ao lado de companheiros de confiança. Talvez… Mu tenha chamado a armadura porque seja o vovô Atla aqui… querendo uma segunda chance. Não digo que acredito nisso… Mas o pensamento é muito forte. Estou sendo boba, não?"

"Eu não acho", assegurou Shion. "Talvez ele seja mesmo."

"Se for, ele deve ir com o senhor…"

"Bem, ainda é muito cedo para pensar em treiná-lo. Por enquanto, por favor, aceitem a morada de meu mestre Hakurei para manter o pequeno Mu a salvo. É uma torre sem portas ou escadas, mas vocês poderão ficar nela tranquilamente, já que possuem telecinesia. Dentro dela, Mu não correrá o risco de destruir a casa. Independente de me aceitarem como mestre dele, quero que fiquem lá."

"Grande Mestre Shion-sama…"

"Vou levá-los até lá. Não é muito longe daqui, e vocês poderão se teleportar sem dificuldade para lá. Está um tanto suja e empoeirada, mas de vez em quando vou para lá fazer manutenção das coisas. Está pronto, Mu?"

Mu, já calmo com a presença de Shion, agarrou seu cachecol e puxou-o todo para si. A mãe tentou impedi-lo, mas Shion permitiu a curiosidade do pequeno. Enrolou o largo cachecol em torno do peito do bebê.

"Agora ele está pronto. Está frio lá em cima. Se você for o meu discípulo, Mu, será assim mesmo. Você levará tudo de mim."

Alguns segundos depois, teleportou-os para a antiga casa de seu mestre. Assim que a viu, Mu esticou os bracinhos para torre, como se tivesse acabado de chegar em casa. Aquele era mesmo um dia especial…