Esta é minha primeira fic publicada neste site, o que dizer? Bom, não tenho muito costume de escrever sobre quadrinhos ou anime, mas como sou uma eterna fã de Saint Seiya e como sempre imagino histórias com seus personagens, sobretudo com Shun e Hyoga (.), decidi colocá-las no papel e deixar que outros fãs as apreciem e opinem sobre elas.
É importante ressaltar que, embora o tema central seja a concretização de um romance yaoi, eu não sou uma fã irrestrita deste gênero. Portanto, nesta fic, não há apenas casais yaoi, só aqueles, ou melhor, aquele que fica subentendido no próprio anime. Também não se trata de uma fic pura e simplesmente romântica. Na verdade, sempre quis criar alguma coisa relacionada a uma possível continuação da série: um novo desafio para Atena e seus cinco cavaleiros após o fim das batalhas com Hades, uma vingança dos outros deuses por eles terem se rebelado contra a ordem imposta pelos imortais. Mais ou menos o que o Tenkai-hen tentou fazer, só que tendo Hyoga e Shun como protagonistas, não o Seiya e a Saori. XDD
Tentarei me basear simultaneamente no anime e no mangá, que considero mais coerente na história e na caracterização dos personagens, a não ser em pontos ridículos e absurdos como o fato de todos os cavs. de bronze terem entre 13 e 15 anos e de serem irmãos. Uma vez que os filmes deturpam muito o enredo e os personagens – em todos, Shun parece um débil-mental, entre outras coisas – eles não funcionarão como pano de fundo dessa fic. Considerarei legítimas apenas as mudanças feitas pelo anime. Enfim, para compor a narrativa como um todo e caracterizar os novos personagens que aparecerão, vou me inspirar naquilo que, pra mim, é o mais empolgante em Saint Seiya: o resgate da mitologia grega. Vou parando por aqui que esse capítulo já ficou longo demais!
Porque os deuses nos invejam
Cap. I. – Novamente, a luz.
Tokyo, Japão.
Aproximou-se da beira do pequeno córrego e acompanhou-o com o olhar até a grande porção azul esverdeada em que desaguava, alcançando a linha do horizonte. Pensou em andar até o lago e mergulhar, há tempos não o fazia. Já havia percorrido todo o território e sentia-se um pouco cansado, seria delicioso um banho. A água calma refletia o céu iluminado como um espelho, deixando-lhe uma sensação de paz como há muito tempo não ousava ter. Como deveria estar fresca àquela época do ano e quão diferente daquela a qual estava acostumado, que mais lembrava o fio de uma navalha perfurando-lhe as carnes. Abaixou-se para tocá-la e observou a vida que se movimentava submersa, de tão límpida que era. Tantas vezes esteve naquela mansão e nunca, em seus breves passeios, fora até o córrego. Lamentou-se por não ter explorado melhor o único lugar que, possivelmente, não lhe traria más lembranças, embora soubesse que não teve muito tempo para aproveitar momentos como aquele.
Shun era, talvez, o único que conhecia bem os arredores da propriedade Kido. Certa vez chegou a descrevê-lo minuciosamente. Era exatamente como o podia ver agora. Sem dúvida alguma era seu melhor refúgio quando restava sozinho na mansão. Nunca tinha para onde ir depois das batalhas, aquele era seu único lar, ainda que Tatsumi ou os outros cavaleiros de bronze não fossem companhias muito agradáveis. Embora tentasse esconder sob suas gentilezas, sabia que os modos rudes dos outros, sobretudo do mordomo que se achava senhor do lugar, incomodavam-no bastante. Mas ele não teria escolha. Sentiu nova pontada no coração. Levantou-se bruscamente ao lembrar do amigo convalescente. Novamente a preocupação lhe angustiava. Ansiava por voltar para as terras geladas as quais sentia pertencer, ao seu povo que confiava em sua força protetora, aos seus mortos queridos, mas não podia deixá-lo naquela situação penosa, sozinho.
Shiryu não demoraria muito mais. Queria ter certeza de que deixaria tudo em ordem, mas não via a hora de voltar para a China. Não era essa a vontade do próprio mestre? Depois de tudo terminado, seu espírito severo não poderia se furtar à felicidade. Mesmo que estivesse preocupado com o Seiya e o Shun, não podia fazer esperar mais tempo aquela que o aguardava fiel e silenciosamente, sua motivação primeira nos campos de batalha.
- Ele partirá em breve. Essa mansão ficará um túmulo, um túmulo de más recordações - falou em voz alta.
O olhar perdido no horizonte foi arrebatado por um bando de pássaros que se deslocava em direção ao outro lado do riacho.
- Se ao menos Ikki não tivesse ido embora... Como pôde fazê-lo em uma situação dessas? Que coração de pedra... - suspirou. Seria melhor voltar, já se aproximava da hora do almoço. - Não posso fazer nada, Shun não é nenhuma criança, ficará bem. Se o próprio irmão pensa assim, ou melhor, se a própria Atena, por que haverei de preocupar-me? -
Tentava convencer-se, argumentando para si mesmo. Àquela hora, Shiryu já deveria estar chegando para a refeição, era melhor apressar-se. Mas continuava resistindo a falar sobre o assunto com ele. Não seria justo preocupá-lo ainda mais, seu mundo também o esperava.
- O banho ficará para depois... - pensava enquanto retomava o caminho de volta - ... mas acho que ainda há tempo para colher as rosas. -
OooOooO
Acabara de adentrar no grande salão e já se deparou com o mau humor de Tatsumi:
- Por onde você andou, já estamos na hora do almoço!
- Eu acabei me atrasando, sinto muito. O Shiryu já chegou?
- Não, ainda não voltou do hospital. Eu vou mandar servir o almoço mesmo sem vocês, onde pensam que estão, em um hotel? Aqui - falava como se a casa lhe pertencesse - temos que cumprir horários...
- Sei, sei, mas se o Shiryu não voltou ainda, deve estar discutindo o caso com o médico - levou a mão ao queixo, pensativo. - Achei que já tivesse chegado... Estou preocupado com a demora. Será que traz alguma má notícia? - falou dirigindo-se às escadas que levavam para os aposentos.
- Ora, não seja dramático. Não é a primeira vez que isso acontece. Quantas vezes já não os vi prostrados em cima de camas, cobertos por tubos, em coma? Todos aqui têm o tratamento médico mais avançado... Você se preocupa demais! - completou com um tom sarcástico e um olhar malicioso. - Aliás, não já devia ter voltado para a Sibéria? - Hyoga girou sobre a cintura e o encarou com um olhar congelante, como só ele sabia fazer. Depois de alguns segundos olhando-o friamente, replicou com voz ríspida:
- Tantos anos, tantos combates e sofrimentos, e você não mudou nada. Não acha que deveria começar a nos respeitar um pouco? - virou-se e subiu as escadas a passos largos.
- Respeitar? Com quem pensa que está falando? - berrou o careca. - A senhorita não está, eu sou o responsável pelo zelo da casa! Foi a própria Atena quem me incumbiu de cuidar de tudo! Está ouvindo? Aonde vai, já não lhe disse que a hora...
O russo percorreu rapidamente o corredor para livrar-se daquela presença incômoda. Não havia nada que odiasse mais que as demonstrações de autoridade do velho.
- Que criatura insuportavelmente irritante - pensou consigo mesmo. - Não admira que Ikki não se demore um dia sequer nesse lugar. Deve ser para não cair na tentação de lhe quebrar a cara... - cerrou o punho direito automaticamente. - E o que ele quis dizer com "se preocupando demais"? Palhaço! Não foi ele quem percorreu o próprio inferno... - Irritava-se cada vez mais ao lembrar da cara cínica do velho até interromper o passo em frente à porta do amigo. Suspirou, tentando dissimular a expressão de raiva, e bateu na porta. Uma enfermeira abriu-a imediatamente. Segurava uma bandeja com o resto do que tinha sido a refeição de Shun.
- Como ele está?
- Bem! Não reclama de nada. Não há paciente mais adorável... - Hyoga a olhou com uma expressão irônica.
- Humm... Mas se é justamente esse o problema! Posso entrar?
- Sim, já terminei - disse, deixando o caminho livre para que ele passasse.
- Hyoga acercou-se da cama do jovem de madeixas de ninfa1, localizada bem no meio do quarto e paralela à porta de vidro que dava para a varanda. Ele já havia sentido sua presença, mas continuou na mesma posição, recostado ao espaldar do leito com o rosto delicado voltado para o outro lado, na busca de algum indício de vida por trás das cortinas meio fechadas. Corria uma brisa quente vinda do jardim e o aroma de flores invadia o quarto.
- Tatsumi parecia irritado - falou sem virar o rosto. Sua voz ainda saía fraca, mas parecia mais serena que a dos últimos dias.
- Você ouviu daqui? Ou será que desenvolveu também o dom da telepatia?
- Humm... Não seria de espantar, tenho descoberto tantos dons ocultos em mim... - respondeu com certo amargor. O silêncio tomou conta do lugar. Hyoga não sabia o que dizer quando ouvia tais comentários. - Aconteceu alguma coisa? - mudou o tom, tentando parecer mais jovial.
- Nada demais. - O loiro desviou o olhar para o jarro de flores que estava vazio na mesinha, ao lado da cama. - Seus ataques habituais de gentileza... - falou com ar jocoso enquanto curvava-se para colocar as flores que há pouco havia colhido no jardim. Ergueu o rosto e deparou-se com imensos olhos verde-azulados que o observavam curioso. Uma linha de interrogação marcava seu rosto pálido.
- Eu as colhi enquanto caminhava no bosque. Lá é tão tranqüilo, exatamente como você havia falado. - Tentou parecer o mais natural possível ao depositar o pequeno buquê no recipiente com água, dentro do jarro. Shun continuava observando-o com uma curiosidade que encobria um pouco seu semblante abatido e triste. Enfim, olhando fundo em seus olhos, quebrou o silêncio com uma voz que mais parecia um sussurro:
- O que está fazendo, Hyoga?
- O jarro estava sem flores... - desconversou, meio sem jeito. Incomodava quando ele o encarava assim.
- Não estou falando do jarro. Por que ainda não voltou pra Sibéria? - Shun evitou mais rodeios. Pareceria indelicado se Hyoga não soubesse exatamente o que queria dizer.
- Ora, mas que pergunta, estou esperando você se recuperar. Ou será que não aprecia minha companhia? - Com um ar de riso meio forçado, dirigiu-se à porta de vidro para abrir um pouco mais as cortinas e deixar que o sol inundasse o aposento.
- Não é isso, só não quero que atrase sua vida por minha causa. Você deve ter obrigações a cumprir na Sibéria, sempre retorna o mais rápido possível quando terminam os... - estancou, não ousava proferir aquela palavra. - Agradeço a atenção, mas estou bem, não corro mais risco algum.
- Sim, Shun, você não corre mais risco. Acontece que não há nada nem ninguém me esperando na Sibéria no momento, certo? - Abriu totalmente as cortinas e a luz invadiu, poderosa, todo o aposento. O rapaz, que parecia feito de porcelana, baixou o rosto. Os raios lhe queimavam as retinas, já desacostumadas com a luz do sol.
- Devia estar mais preocupado com o Seiya... - um sentimento de culpa o atormentava desde que ouvira comentários a respeito do estado de saúde do cavaleiro de Pégaso.
- Seiya está sendo muitíssimo bem cuidado por sua irmã e pela própria Atena, não tenho com o que me preocupar. Nem você! - respondeu um tanto áspero, voltando-se para ele. Shun mantinha o rosto abaixado.
Como havia mudado! É verdade que todos ficavam um tanto abatidos no fim das batalhas. Ainda assim, ele logo se recuperava, certamente porque imaginava que não precisaria mais se martirizar com o sofrimento infligido aos inimigos. Mesmo com as ausências de Ikki, os desaforos de Seiya lhe garantiam a alegria no espírito e a companhia constante de Atena fazia com que todos esquecessem um pouco suas mágoas.
Agora era diferente. Não demonstrava mais as faces róseas e juvenis de outrora. Seu rosto virginal tinha dado lugar a uma expressão constante de angústia que era acentuada pelas enormes sombras arroxeadas que se mantinham abaixo de seus olhos. As olheiras, unidas à palidez marmórea de sua pele, davam-lhe um ar sombrio. Seu olhar, antes pleno de uma aura quase divina, parecia pesado de uma dor latejante. E não era uma dor relacionada ao seu estado físico debilitado, mas um pesar que transbordava do fundo de seu ser, como uma torrente negra, tão negra quanto o Aqueronte, que havia dominado toda a luz resplandecente de seu cosmo. Hyoga não suportava vê-lo naquele estado. Girou sobre os pés e transpôs a porta meio aberta, encostando-se na sacada da varanda. Contemplou o jardim com o cenho franzido e a sensação de ter um nó imenso em sua garganta. Não queria que o visse lamentar a juventude e inocência perdida.
Que tipo de mal ele carregava dentro de si a ponto de transformá-lo assim? - pensava consigo tentando imaginar desesperadamente alguma coisa que fizesse o amigo sair daquela letargia de morte. - Será que aquele demônio roubou sua última fonte de vida? Se ao menos Saori estivesse aqui com o Seiya...
- ...Hyoga... - Seus pensamentos foram interrompidos pelo chamado quase imperceptível. O loiro de ombros largos recompôs-se e entrou novamente no quarto, encarando-o com preocupação. - Será que eu poderia descer esta tarde, estou cansado de ficar nesse quarto... - Shun esforçava-se para dar a impressão de que estava bem. Decerto percebeu o incômodo que causara no outro.
- Você sabe que ainda não pode andar. Sua perna não está totalmente recuperada e esse ferimento no peito... Precisa de repouso! - disse em tom cuidadoso.
- Não agüento mais esta prisão, preciso andar, respirar ar puro. Já me sinto muito melhor. - Hyoga deu um sorriso, aproximou-se dele e sentou-se na borda da cama.
- E por acaso o ar aqui não é puro? - Apontou a varanda aberta, o vento suave que corria mexendo levemente as cortinas brancas. - Você está, sim, precisando tomar um bom banho de sol, mas não agora, não enquanto estiver com esses curativos - e desviou o olhar para seu peito nu, mais pálido que as faixas que cobriam a ferida profunda feita pelas mãos do próprio irmão, e que quase perfurara seu coração. Ficou sério.
- Você consegue ser mais autoritário que meu irmão... - Shun tentava, em vão, amenizar a situação e parecer mais saudável.
- A enfermeira ainda não trocou esse curativo hoje! - sua voz saiu seca. Levantou-se bruscamente e foi até a maleta de medicamentos que estava sobre a cômoda. - Será possível que seja tão inútil?
- Eu havia acabado de acordar e já me mandaram o almoço. Ela não teve tempo de me banhar. Tenho dormido tanto esses dias... - respondeu tentando desculpar o desleixo da moça.
- Ah, sim, claro! Não deve ser todos os dias que ela cuida de um cavaleiro da "Fundação Kido", que já apareceu na tv e tudo mais... Imagino o que tem feito o dia inteiro: ficar te olhando com cara de boba ou fofocando com as serviçais... Não te pediu nenhum autógrafo? - disse aborrecido, procurando as faixas e remédios para refazer o curativo.
- Ora vamos, não seja tão ranzinza, a comida ia acabar esfriando... - Espantou-se com a reação intempestiva do russo que se aproximava, mexendo na maleta. - O que pensa que vai fazer?
- O que você acha? Será que sou tão burro a ponto de não saber trocar um curativo? - Deixou-a sobre a cama, na altura daqueles pequenos pés alvos como mármore, e curvou-se sobre ele para desfazer as ataduras, já meio avermelhadas. Shun segurou de leve seu braço musculoso e o olhou fixamente.
- Não precisa me tratar como se eu fosse um moribundo, não é a primeira ferida que me fazem.
- Não, não é. Nem a você, nem a mim. E é justamente por isso que não precisamos de nenhuma enfermeira cobrando pelo trabalho de cavaleiro. -
Soltou-se rapidamente de suas mãos finas e continuou o que havia iniciado. Passava as ataduras velhas de um lado a outro de seu tórax delgado, desfazendo as várias voltas que cobriam seu peito e costas. Shun, que permanecia sentado, tinha descolado as costas do espaldar da cama e continuava olhando-o sem resistência. Não tinha força de vontade para dizer sim ou não e deixou-se levar. De fato, ele perdera a conta das vezes que teve de ajudar com os curativos do Seiya e do próprio Hyoga. E uma coisa que aprendeu sobre a enfermidade é que, diante dela, as pessoas perdem totalmente sua privacidade.
Depois das ataduras, o loiro retirou o curativo cuidadosamente, para não correr o risco de abrir o ferimento, ainda recente. Shun sentiu duas mãos frias em seu peito, o que teria provocado um leve arrepio se o sangue corresse normalmente em suas veias. Ele não havia mudado nada. Todas aquelas guerras, e o Cisne, era como gostava de chamá-lo no início, permanecia com o espírito vigoroso e temerário de antigamente. Em nada pareciam ter-lhe afetado, embora ele soubesse o quanto o amigo sofrera com a morte dos mestres e do velho companheiro.
- Hyoga... - pensou - queria ter metade de sua força para suportar o que vem suportando com o coração impassível, sem amargura ou arrependimento.
Seguia todos os passos com os olhos vagos, sem expressão nenhuma. Hyoga havia depositado as faixas usadas em cima da cama e agora analisava atentamente os remédios para saber qual deveria usar. Verificava-os meio confuso até reparar em um frasco com líquido avermelhado e rótulo branco que indicava "Anti-séptico".
- Deve ser este! - e voltou o olhar para a ferida imensa, com os pontos à mostra.
- Nossa... - balbuciou - quase me esqueço...
Levantou-se e foi até o banheiro lavar as mãos. Ao retornar, sentou-se e tomou o algodão e as gazes que estavam em um pequeno estojo de alumínio, ao lado dos frascos. Olhou novamente para o peito do amigo e não pôde disfarçar a expressão de tristeza. Shun sempre foi, dentre todos, o que menos tinha cicatrizes, pois sua corrente era uma fortaleza poderosa. Seu corpo sem marcas e de curvas suaves, um tanto femininas, era até motivo de pilhéria, sobretudo para Seiya. Mas aquela ferida era de causar inveja a qualquer um que visse em suas cicatrizes troféus de guerra. Tinha o formato de uma cruz enorme que cobria quase todo o lado esquerdo de seu peito. Hyoga lembrou imediatamente do que Ikki havia contado sobre as criaturas demoníacas que retirara de dentro do irmão durante o confronto com Hades. Estava completamente hipnotizado pelo imenso ferimento, imaginando como Fênix o teria feito. Levou inconscientemente a mão até lá e deixou-a ficar por instantes, na ânsia de sentir um coração pulsar por baixo daqueles pontos. De olhos fechados, tentou reconhecer o cosmo caloroso que já havia sentido em seu próprio corpo e que lhe tinha trazido de volta à vida. O outro continuava contemplando-o em silêncio.
- Como ele pôde fazer isso? - falou sem perceber.
- Eu pedi que o fizesse - Shun interrompeu sua divagação, recebendo em troca um olhar penetrante, quase violento.
- Ainda que você tivesse-me implorado... Jamais te machucaria... - respondeu em tom sombrio. Retirou a mão tão logo se apercebeu do que fazia, resmungando entre os dentes: - Isso não é desculpa! - Molhou um pequeno pedaço de algodão no líquido vermelho e passou sobre a ferida, tentando ser o mais delicado possível com suas mãos grossas. Depois de algum tempo, o jovem de faces pálidas replicou:
- Você, mais do que ninguém, não deveria falar assim... Sabe perfeitamente o que é ter que enfrentar aqueles que ama.
Hyoga parou subitamente o que fazia. Baixou os olhos, cerrou os lábios e, voltando o rosto para a varanda, deixou sair um longo suspiro por entre um riso sarcástico. Shun sabia o quanto tocar naquele assunto o incomodava.
- É bem diferente... Meus oponentes sempre combateram de igual pra igual... - Interrompeu-se como para tomar coragem. - Eu nunca lutei com nenhum suicida. - O pequeno arregalou os grandes e belos olhos garços2.
- Então é isso que você acha, que sou um covarde, ou um fanático? - Não obteve resposta, o outro permanecia mudo, sem olhar para ele. - E eu imaginando que estivesse aqui durante esses dias por pura precaução. Afinal, é natural que você e o Shiryu não queiram mais correr o risco de me deixarem sozinho na fundação. Sabe-se lá do que sou capaz... - falou com uma ironia que lhe era totalmente estranha. - E pensar que, todo esse tempo, confiaram em mim como um leal cavaleiro... Quantas vezes não deixaram a deusa sozinha, sob meus cuidados? - Hyoga sobressaltou-se e o encarou admirado, com um misto de espanto e raiva.
- Por que está dizendo isso?
- Estarei mentindo? - falava tranqüilamente, como se alheio ao tom provocativo de suas próprias palavras.
- Humm... - um riso nervoso desenhou-se nos lábios do russo à medida que meneava a cabeça dourada, incrédulo do que ouvia. - Escute bem, "Senhor amado pelos deuses"... - suas palavras soavam plenas de sarcasmo - o fato de o "Senhor" estar convalescendo não te dá o direito... - não conseguia raciocinar, levantou-se para tomar fôlego e continuou. - Escute aqui, garotinho mimado, acha mesmo que eu ou o Shiryu temos obrigação de agüentar seus dramas e chiliques? Por acaso acredita que é o único que passou por dificuldades aqui? Ora, já estamos cientes de que você é bastante especial no grupo, praticamente um ser divino... - gesticulava com elegância os braços fortes, fazendo acenos de reverência. - Então, "Milord", não nos torre mais a paciência com esse seu ar de mistério e superioridade!
- Vocês estão aqui por vontade própria, não pedi que ficassem...
- Mas é óbvio que não! O que o faz pensar que poderia nos obrigar a isso, se nem mesmo seu querido irmão, que o ama tanto, não suporta sua companhia!
A tais palavras, Shun baixou instantaneamente os olhos. Sentiu uma onda de tremor subir-lhe pela coluna e apoderar-se de seu colo, pescoço e nuca. Trincou os dentes. A última coisa que queria era ceder, portar-se como alguém que precisava de ajuda ou inspirar compaixão. Engoliu em seco sua vontade de chorar, de gritar por socorro, de desaparecer. Apenas permaneceu calado, sem ter que se preocupar com as lágrimas, pois há muito já haviam secado.
Hyoga parecia não entender o que se passara. O chão fugiu-lhe dos pés. Levou uma mão gelada à testa ao se dar conta da expressão de desalento do amigo e do que havia dito. Sua visão ficara embaçada e a boca articulava no silêncio.
O som da porta abrindo desviou sua atenção, fazendo-o voltar a si, ao quarto, à realidade. Mas permaneceu imóvel, olhando sem ver a enfermeira que assistia a cena com admiração, uma mão no trinco, outra segurando um copo com água. Enquanto o loiro tentava pôr as idéias no lugar e pensava no que ia dizer, a moça reparou no peito nu do jovem de cabelos esverdeados e na maleta aberta em cima da cama. Adiantou-se, então, com voz branda, buscando ignorar a situação constrangedora:
- Vejo que já facilitaram meu trabalho - disse, gentil.
- Se você não o faz, alguém deve fazê-lo, não é mesmo? - Hyoga fuzilou-a rudemente com duas faíscas azuis. Deixou o algodão que espremia entre as mãos em cima da maleta e apressou-se até a saída, queria fugir dali o mais rápido possível. Shun continuava emudecido, com o olhar no vazio. A enfermeira, preocupada com ele, sequer deu atenção à grosseria do rapaz de pele bronzeada e porte elegante que se retirava rapidamente.
- Uma ferida desse tamanho em um garotinho tão lindo, onde poderia ter arranjado? - gracejou, dirigindo-se ao enfermo. Hyoga ainda teve tempo para fustigá-la mais uma vez:
- No inferno, onde mais? - e saiu batendo a porta com força atrás de si. O rapaz de feições delicadas, então, jogou o lençol que cobria metade de seu corpo ao lado da cama e, levantando-se com esforço, dirigiu-se até ela vagarosamente, sob as súplicas da moça para que não se esforçasse. Queria ter certeza de que o outro tinha ido embora realmente. Com a mesma expressão alheia, comentou:
- Não se preocupe. Ele está de mau-humor, não é culpa sua. - A mulher jovem franziu a testa e murmurou com ressentimento:
- Ele não simpatizou comigo desde o início. É tão arrogante... Bem diferente do outro, que é tranqüilo como um monge.
- Sim, Shiryu é bastante calmo... - expressava-se com dificuldade e de forma mansa, caminhando em direção ao banheiro. - Não se assuste, Hyoga parece frio mas, é um bom homem. Só está um pouco ansioso e cansado.
- Meu senhor, você não deveria estar em pé! - Ela acorreu para acompanhá-lo e servir-lhe de apoio já que Shun não conseguia ficar em pé sozinho por muito tempo e caminhava segurando-se vez por outra nos móveis e paredes.
- Por favor, não me chame de senhor. - A moça sorriu, condescendente. - Eu estou bem. Já posso me banhar sozinho. - Transpôs a entrada do toilette e equilibrou-se com o auxílio da pia.
- Mas meu senhor... - Shun apenas respondeu com um olhar meigo, rogando para que ela o deixasse sozinho. A enfermeira, então, saiu para pegar um pedaço de plástico higienizado na maleta e, em seguida, cobriu a perna engessada. Deu uma olhada ao redor, certificou-se de que estava tudo ao alcance do rapaz e retirou-se.
- Qualquer mal-estar, por menor que seja, me chame, por favor.
- Está bem. - Trancou a porta e virou-se, dando de cara com o espelho.
Olhou espantado seu rosto pálido, seus lábios meio roxos e as enormes olheiras. Ainda não tivera oportunidade de se ver. Na verdade, Shun era bem pouco vaidoso, ao contrário do que muitos pensavam, e freqüentemente depreciava sua beleza. Não era fácil lutar e ser levado a sério com aquela aparência. Sorriu, pensando consigo:
- Talvez agora não se lembraram de mim apenas como o cavaleiro com cara de boneca... -
Despiu vagarosamente o calção curto que vestia, tentando mover o mínimo possível o tronco e a perna engessada. Reparou atentamente na ferida que tomava metade de seu peito. Embora soubesse que tudo não passava de excesso de cuidado por parte do companheiro, sentiu-se envergonhado e humilhado ao lembrar de suas palavras.
- Ele tem razão, como sempre. -
Ligou a ducha e escorou-se na parede bem abaixo dela. Sentia o corpo e a mente totalmente debilitados. À medida que a água caía, ia se dando conta de sua condição. Não tinha sido muito justo com Hyoga, não deveria tê-lo provocado. Acabaria sozinho novamente. Tinha medo de si mesmo. No que havia se transformado? Quem era ele afinal?
- Por Atena, por que sobrevivi àquilo tudo? O que querem de mim ainda? - pensava com remorso, lembrando das almas que vira ardendo em lava a cada fluxo d'água que percorria seu corpo. - Quanta gente, meu deus. Quanto sofrimento... -
Não conseguia tirar da cabeça aquelas imagens, tantas pessoas sem consolo. Não conseguia parar de pensar na situação penosa de Seiya, que não reconhecia a irmã depois de tantos anos de espera. Não conseguia se perdoar por seu irmão, que perdera os pais por sua causa e se transformara em um adulto ainda criança, somente para protegê-lo. Não conseguia esquecer daquela nuvem negra invadindo seu corpo e apossando-se de seu espírito. Não conseguia lembrar de como era antes de ser dominado.
- Ikki, agora sei porque somos órfãos... Eu sempre soube. Ainda sou um peso para você, não é? E você sequer me odeia... Por que não acabou comigo de uma vez? -
Foi agachando-se, a perna fraturada parecia que ia trincar e as faixas que envolviam o gesso ficavam cada vez mais úmidas. Agarrou-se a seus joelhos e sentiu a força do jato d'água caindo sobre suas costas. Chorou um choro desesperado, sem lágrimas. Queria que a água lavasse todas as suas lembranças, todas as suas mágoas.
- Eu não vou mais me lamentar, eu prometo - dizia baixinho para si mesmo, com o rosto totalmente transfigurado pela dor, pela angústia e pela culpa.
0oo0oo0
Continua...
1 Na mitologia grega, as ninfas eram entidades femininas ligadas à natureza e que personificavam a fecundidade e a graça. Tinham longos cabelos verdes dispostos em tranças ornadas com flores.
2 Curiosamente, Atena é descrita por Hesíodo e pelos trágicos como "A deusa de olhos garços", que significa, literalmente, verde-azulados. A cor de seus olhos ressaltava seu aspecto calmo. Talvez Shun, por ser seu cavaleiro mais gentil e bondoso, tenha herdado essa sua característica... XDD
