"Algumas pessoas ficam furiosas porque nas rosas existem espinhos.
Outras pessoas ficam alegres, porque nos espinhos existem rosas"
"...E um fato chocou hoje a alta sociedade de Tokyo: o senhor Yuutaro Tsukayama, último ganhador da loteria e dono de uma das empresas de maior importância no mundo da biomedicina cometeu suicídio esta noite com um tiro da cabeça, dentro de sua casa..."
O velho senhor na cadeira de rodas desligou a televisão, usando o controle remoto. Passou a mão enrugada pela testa e fez um aceno negativo com a cabeça, A moça ruiva se aproximou dele e afagou seu ombro, num gesto firme de carinho e ajuda.
- Senhor Mitsumasa... Não fique assim...
- Porque não, Marin? Nós devíamos ajudar aquele homem e falhamos...
- Mas o senhor disse que ele não atingiu o objetivo que esperávamos...
Ele olhou para ela e sorriu, apertando sua mão levemente.
- Tem razão, minha querida Marin. Amanhã, começaremos a procurar uma nova pessoa para que ela conheça a felicidade.
- Sim, senhor – ela sorriu e começou a empurrar a cadeira de rodas.
oOo
Ele parou em frente à porta e suspirou. Havia sido demitido novamente. Já era a terceira vez que aquilo acontecia em dois meses. Estava molhado da chuva que caía lá fora, cansado de ficar em pé no metrô e com dor nas pernas de subir as escadas até o oitavo andar, onde ficava seu apartamento.
Os cabelos loiros respingavam as gotas de chuva e seu coração respingava o sangue do orgulho ferido.
Sabia que ia ter que abrir aquela porta alguma hora e encarar Mu novamente, que viria lhe receber com o sorriso de dentes amarelados e com os cabelos que mais pareciam pelos ouriçados de rabo de gato. Não conseguia entender... Ele era bem mais bonitinho quando haviam começado a namorar...Pelo menos não tinha barriga... ainda...
Botou a chave na fechadura e a girou, abrindo a trava. Mu correu até a porta recebê-lo, usando uma camiseta de propaganda e uns shorts um tanto curto para um homem.
- Shakaaa!!! – ele pulou em seu pescoço e lhe beijou o lábio de leve – Como vai o meu contra-regra preferido?
- Ele ficou em algum lugar do estúdio! – disse emburrado e passou reto por Mu, desfazendo o abraço.
- Oh não... de novo...
Shaka se jogou no sofá sem dizer nada.
- Bom... eu fiz um jantar especial... vamos aproveitar e...
- Não tô com saco agora – ele saiu da sala e se trancou no banheiro.
Mu baixou a cabeça e ficou olhando o chão. Shaka não tinha que lhe dar satisfações ou fazer o que ele queria. Na verdade, deveria agradecer, já que ninguém lhe dava muita atenção e Shaka o fizera.
Estavam namorando não sabia mais quanto tempo. Na verdade nem comemoravam mais os namoros, nem nada... Era apenas uma relação onde um deveria aturar o outro e seria muito bom se isso continuasse acontecendo.
Mu não se considerava uma pessoa bonita e Shaka não o considerava uma pessoa. Então, apenas a necessidade de se suportar bastava.
No banheiro, Shaka começou a chorar compulsivamente. Sua vida estava declinando mais e mais. O dinheiro tinha acabado e ele já havia mudado de emprego nem se lembrava mais quantas vezes. Sentia-se doente por dentro.
E o pior era que seu companheiro não o ajudava. Mu era um escritor fracassado, que escrevia muito sobre nada que pudesse trazer dinheiro para eles. Apesar disso era um bom companheiro e cozinhava bem.
Aquela nova situação era estranha. No começo do namoro dinheiro não era problema. Mu havia recebido uma boa quantia em dinheiro e o apartamento onde moravam como herança. Mas com o passar do tempo, o dinheiro começou a minguar e Shaka teve de por a mão na massa. Nunca soubera quanto em dinheiro ainda restava para eles. Mu nunca falava. Apenas dizia que era pouco.
Shaka agradecia por esse pouco: ele o sustentava.
Tirou a roupa e entrou em baixo do chuveiro, tentando se acalmar. Lavou todo o corpo e ficou com o rosto voltado para cima, recebendo o jato de água. Ah! Como queria voltar aos tempos de criança onde a única preocupação era se amanhã ia fazer chuva ou sol para que pudesse ir brincar na rua ou aquela maldita prova de matemática.
Bons tempos não voltam mais.
Os amargos parecem não acabar nunca.
Ficou um longo tempo embaixo do chuveiro até que a vontade e a lembrança de que a conta de água seria grande o fizeram sair. Ele se enxugou e vestiu as roupas de dormir, saindo do banheiro e indo para o quarto. Se jogou na cama e ficou olhando o teto, sentindo-se longe, como se tivesse abandonado o próprio corpo.
Sua angústia de vencer e crescer na vida consumia o seu coração tão humano e pequeno que pouco agüentava as constantes frustrações que sofria. E ficou ali... olhando para o teto... adormecer...
Na cozinha, Mu comeu o jantar frio sozinho, entre o sal da comida e das lágrimas que desciam por seu rosto.
oOo
No dia seguinte, levantou-se da cama cuidadosamente para que Mu não percebesse que havia acordado. Precisava arrumar emprego logo.
Não tomou café, apenas tomou banho, colocou suas melhores roupas e saiu. Ganhou a rua com um misto de autoconfiança e desespero por receber um salário bom. Embaixo do braço, trazia uma pasta com currículos, documentos e outras coisas que achou necessárias e também a folha de classificados com vários anúncios marcados em caneta vermelha.
Havia organizado uma lista de horários para passar nos locais, dos mais próximos de sua casa aos mais distantes. Depois, voltaria de ônibus.
Já havia sido garçom, balconista, vendedor, auxiliar em pet shops, trabalhado em vídeo locadoras, livrarias e o diabo! Seu último emprego havia sido como contra-regra em um estúdio de uma companhia pequena no subúrbio da cidade. Logicamente, nada funcionava bem para ele.
Mas naquele dia, estava tão confiante que acreditava que ia conseguir o melhor dos empregos.
E assim, começou sua busca incansável.
oOo
- O senhor tem alguma experiência com crianças?
- Bom, na verdade nenhuma, mas posso tentar...
- Sim, qualquer um pode tentar.
oOo
- Você é bom com letras?
- Claro!
- Qual a primeira letra? B ou C?
- B, senhor.
- Errado.
- Como assim errado?
- A primeira letra é A.
- Oh... Hehehe... Boa piada, senhor!
- Não é piada.
- Ah... sim... desculpe...
oOo
- Aqui diz que você concluiu uma faculdade...
- Duas e meia.
- ... O que quer dizer com 'duas e meia'?
- Bom, eu comecei uma outra faculdade com duração de quatro anos, mas eu fiz apenas dois e larguei.
- ...
- É uma piada.
- Não contrato pessoas que fazem piadas sem graça.
oOo
E assim, decidiu parar para descansar ao meio-dia. Estava cansado, com fome e não tinha muito dinheiro para comer em um restaurante razoável. Almoçou em qualquer lugar já se preocupando com os locais que visitaria mais tarde. Sua confiança ainda persistia, mas ele tinha outro sentimento brotando em seu interior: o de estar fadado a ser o maior azarado da face da terra.
Talvez, todos os chefes fossem assim mal-humorados, mesquinhos e com aquele ar nojento de superioridade e olhar de assassino de aluguel... Ou talvez ele apenas estivesse tendo um dia ruim... como todos os outros de sua vida.
Tentava se lembrar de alguma frase...algo que o ajudasse e lhe preenchesse com otimismo e o entusiasmasse. Foi quando um pombo passou por cima dele e o achou com cara de banheiro.
Foi a gota d'água!
Shaka jogou a pasta e o jornal no chão com raiva e pulou em cima deles, tão consumido por seu próprio ódio que estava pouco se importando se alguém o via na rua ou não.
- Olha mamãe! – uma garotinha de mais ou menos seis anos apontou para ele.
- Não fique olhando, filhinha. Esse homem deve ter problemas e é feio ficar reparando nessas pessoas.
- Merda! Merda! Merda! – Shaka gritava enquanto pisoteava a pasta. A mãe correu e tapou os ouvidos da garota que olhava tudo se divertindo com o ataque histérico daquele homem estranho.
- Merda! – e a chutou novamente...a maleta bateu contra o chão como se fosse uma pedrinha atirada no rio e acabou...atingindo a garotinha.
- BUÁÁÁÁÁÁ!!!!!!! – a menininha começou a chorar descontroladamente.
- Oh não... – disse Shaka, levando as mãos à boca e correndo para ajudar a criança.
- Desgraçado! – a mãe pegou sua bolsa e atingiu Shaka no nariz enquanto ele se dirigia até a garota, para tentar ajudá-la. O loiro caiu no chão e a mulher pegou a garota no colo – Sua corja da humanidade!
Shaka ficou ali caído no chão, até que algumas pessoas se aproximaram para ajudá-lo. Agora, além de azarado, ele era a corja da humanidade.
oOo
Mu acordou às oito horas. Viu que Shaka já havia se levantado e resmungou um pouco por ele ter saído novamente sem esperá-lo para tomar café. Foi ao banheiro e se lavou, passando a mão pelos cabelos extremamente claros e quase brancos. Tinha uma grande vontade de tingi-lo de outra cor, mas talvez ele não fosse adolescente o bastante ou idoso o bastante para fazê-lo.
Mas tinha vontade de mudar. Na verdade, uma grande urgência.
Ele sentia, por mais que tentasse não aceitar, que Shaka já não tinha tanto interesse por ele quanto antes. Começou a pensar e viu que o loiro nunca havia realmente sentido algo forte. Não se lembrava to último "eu te amo" que ele havia lhe dito, mas a sua indiferença estava lá todos os dias.
Comeu qualquer bobagem para enganar o estômago e ligou o computador, pronto para escrever. Ou pelo menos tentar.
Começou a andar pela casa, tentando sentir...imaginar...ser um novo personagem na trama que ainda ia surgir. Precisava duma idéia, brilhante e luminosa que lhe aquecesse o corpo e a mente e lhe retirasse a maldita preguiça.
Acelerou o passo enquanto entrava nos quartos, passava pelos corredores e logo, corria! Corria pela casa, tocando os objetos, as paredes, deslizando os pés pelo chão, buscando sentir a angústia de um personagem, o surgimento de um clímax, o desenrolar de uma história trabalhada cuidadosamente em sua cabeça.
Ele sempre fazia aquele ritual.
Andava, corria, pulava por cima dos sofás, da cama e se atirava no chão. Falava sozinho, imaginando a sua personagem. Mantinha os ouvidos abertos para sua imaginação, como se fosse um ator que tivesse que aprender as falas de ouvido, passadas por um diretor exigente e perfeccionista.
Já havia chorado várias vezes enquanto escrevia ao computador. Shaka sempre estranhava esse choro, e lhe perguntava o que ele tinha. E com a mesma calma de sempre, Mu lhe dizia: "Não sou eu quem está chorando... é a minha personagem".
Seu namorado balançava a cabeça negativamente e saía da sala, deixando-o sozinho com a sua máquina, a sua ferramenta que transfigurava sua criatividade em papel branco, fazendo-o ficar preto, azul, vermelho, amarelo, verde, roxo...carregado por todas as cores das emoções!
Às vezes, sentia o gosto do sangue quando uma de suas personagens morria. Afinal, ele era um criador e um destruidor, um pai e um assassino. Seria ele um deus? Sim. O deus do pequeno universo criado em seu livro, onde ele tudo decidia e tudo fazia acontecer.
Após percorrer a casa por alguns minutos, sentou-se em sua cadeira e começou a digitar rapidamente. Fazia tempo que não sentia esse desejo árduo em criar uma vida, um fato, uma alegria ou uma dor de papel. Escrevia com um sorriso nos lábios, feliz por voltar a criar.
O bater das teclas era como o som de um piano.
Ele sempre gostava de associar sua criação literária à música. Gostava de imaginar que cada letra ia produzindo um som a medida que ele a tocava. Sentia-se livre!
Quando Shaka estava por perto enquanto escrevia, não se sentia assim. Imaginava Mozart, morrendo na cama ao lado, dizendo a Salieri que escrevesse uma última nota musical...uma última harmonia...uma última canção. Ou então, ele seria Paul Sheldon, com suas pernas quebradas, atado à cama, escrevendo um livro novamente, apenas para o capricho de Annie Wilkes, que o observava, carregando o machado, ansiosa para decepar-lhe os pés.
Enfim, era um alívio escrever sem Shaka em casa.
Aquele peso de escrever pelo dinheiro sob seus ombros o fazia sentir-se mal. "Dite a música para mim, Mozart!" e os sons se confundindo em sua cabeça..."Confutatus... Maledictis..." Podia sentir o machado...ver o brilho da luz refletido na lâmina da arma..."Isso é para você se comportar melhor, Paul. Não se preocupe." E sentia a arma penetrar sua carne, destruindo seus calcanhares.
Já tinha escrito várias vezes sobre matar Shaka. Não sem antes torturá-lo. Cortas os dedos fora e mergulhar as mãos num bacia cheia de álcool e depois atear-lhes fogo. As suas próprias idéias o surpreendiam.
Mas ao final, sentia um grande arrependimento por pensar assim. Esquecia-se de tudo e ia ter com Shaka...até que se sentia miserável novamente e pensava numa nova maneira muito dolorosa de eliminá-lo.
oOo
Já eram cinco da tarde e Shaka não havia conseguido nada. Sempre que tentava ser agradável, o entrevistador não gostava de seu jeito. Se tentasse parecer inteligente, o chefe o achava um tanto estranho. Além do mais, estava muito mal apresentável, carregando uma maleta totalmente destruída, boca sangrando e com os cabelos já não tão bem arrumados.
O único lugar em que realmente haviam gostado dele fora numa produtora de filmes pornôs onde ele havia entrado por engano e onde lhe haviam perguntado se ele faria papéis sadomasoquistas, homossexuais, sexo anal, entre outras perguntas estranhas.
Já estava sem esperanças, quando chegou ao ponto de ônibus e viu que ele já havia partido. Começou a resmungar novamente quando a chuva começou a cair. O próximo ônibus demoraria uma hora para chegar e estava frio. Não tinha vontade de pegar um resfriado, então decidiu ir a pé. Talvez, conseguisse encontrar outro ônibus no meio do caminho ou um táxi.
Tentou correr, mas ainda estava longe de chegar em casa e a chuva piorava mais e mais. Não conseguia mais enxergar para onde ia, apenas caminhava pelas ruas, de cabeça baixa, tentando desviar dos pingos de chuva que atingiam violentamente seu corpo. Quando se deu conta, já não sabia mais onde estava. Sua única certeza era a de que estava perdido.
Era um beco escuro e várias poças de água iam se formando no chão e explodiam à medida que ele passava por elas, molhando todo seu corpo. Ele correu pelo beco escuro sem olhar para frente e foi então que bateu a cabeça em algo, caindo sentado.
Quando se deu conta, já estava totalmente molhado. Se levantou e então viu que havia batido a cabeça numa cabine telefônica. Olhou em sua volta e viu que não havia nada ali. Eram apenas as paredes escuras do beco e a cabine com um pouco de luz. Um lugar muito estranho para colocar um telefone público.
Mas decidiu entrar na cabine, esperando a chuva passar. Ainda poderia ligar para Mu e avisar onde estava e que logo chegaria em casa. E assim o fez...
Demorou muito para que o companheiro atendesse ao telefone. Ele estava quase desistindo quando Mu atendeu.
- Alô?
- Olá, querido! – disse Shaka, tapando o ouvido para que pudesse escutar. Uma raio caiu ali perto.
- Oh, Shaka... Espere um pouco... que horas são?
- E-eu não sei.
- Meu Deus! São sete da noite! O que está fazendo na rua? Onde está?
- Estou numa cabine telefônica, fugindo da chuva. Estarei em casa assim que ela passar.
- Oh, Deus...eu passei o dia todo escrevendo meu novo livro que nem reparei no horário...
- Fico feliz que tenha voltado a escrever, querido.
- Obrigado, Shakinha... Bom, se a chuva demorar a passar...
-Eu tento arrumar... – a linha ficou muda – Alô? Alô? Droga!
Ele bateu o fone no gancho e então, quando ia ligar novamente, o chão da cabine se abriu e ele caiu em cima do que parecia ser uma grande almofada de ar.
Viu o chão da cabine se fechar novamente e passou a mão pelo grande colchão azul onde havia caído. Sentou-se sobre ele lentamente e então, afundou mais uma vez, sentido-se afogar na bolha de cor azul.
Quando finalmente conseguiu sair de cima do colchão, tropeçou e caiu de costas, diante de duas pernas femininas, em cima de um salto alto vermelho. Olhou para cima e viu uma mulher com um gosto bastante peculiar para roupas, vestida com uma minissaia rosa e uma camiseta num tom claro de roxo com detalhes verdes. A bela mulher de cabelos esverdeados lhe deu um sorriso e então, estendeu-lhe a mão.
